Gente humilde, por Homero Fonseca

Quem não se comover,  perdeu ou nunca teve senso de humanidade. Deve ser o caso  dessa coach chamada Lívian, filha de um famoso

Gente humilde

por Homero Fonseca

Dona Dora já passou dos 80 e hoje, para enterrar o marido, ligou para uma ex-patroa:

– A taxa do enterro é 400 reais. A gente fez uma cota e ainda falta 110 reais. A senhora podia ajudar?

A vida inteira, enquanto teve forças, ela foi lavadeira e faxineira. O marido era pintor de parede, dos bons, mas chegado a uma cachaça. Às vezes vinha cambaleando e a insultava com palavrões horrorosos. Uma dia, ela perdeu a paciência e deu-lhe umas cacetadas com o cabo da vassoura. Virou regra. Ele diminuiu bastante as carraspanas. Ultimamente estava cego e quieto.

Dona Dora tinha duas filhas e um dia, quando foi pegar caranguejo no mangue, achou um recém-nascido berrando numa caixa de sapatos. Levou pra casa e criou o bebê. Hoje ele é um homem de quase 50 anos, há 30 trabalhando no mesmo emprego de porteiro. As duas filhas “não se desencaminharam”. Uma segue a “carreira” de faxineira da mãe, com quem mora e mais três filhos de maridos diferentes. A outra é manicure e conseguiu montar um salão na própria casa.

Há uns 20 anos, um dos netos começou andar com uns caras suspeitos. Estava metido com traficantes lá da comunidade. Aflita, d. Dora correu à casa de um desembargador pra quem ela prestava serviços. Arranjaram um jeito de mandar o rapaz para Roraima. Ele entendeu que haviam lhe salvado a vida e se endireitou. Casou e continua morando por lá.

Bem, a história de dona Dora é mais ou menos igual à de milhões de brasileira(o)s.

Quem não se comover,  perdeu ou nunca teve senso de humanidade. Deve ser o caso  dessa coach chamada Lívian, filha de um famoso que, numa palestra transmitida pela internet há uns dias, tascou:

– Todo mundo tem as mesmas 24 horas no dia, mas só alguns conseguem sair do lugar porque são produtivos.

Pobre menina rica! O que a faz pensar assim? Ignorância ou crueldade? Ela é da turma dos jovens abastados (ou não!), sem noção das coisas, que vivem a repetir o mantra neoliberal, por lavagem cerebral e/ou conveniência: ganham dinheiro simplesmente reproduzindo o discurso cínico do capitalismo financeiro. Dá raiva. Mas e daí? Precisamos aprender a falar com os humildes e descontruir essa trama.

Homero Fonseca é pernambucano, escritor e jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Foi editor da revista Continente Multicultural, diretor de redação da Folha de Pernambuco, editor chefe do Diario de Pernambuco e repórter do Jornal do Commercio. Foi também professor de Teoria da Comunicação e recebeu menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Atualmente, dedica-se à literatura e mantém um blog em que aborda assuntos culturais.

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