Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Os palcos de Ângela, por Maíra Vasconcelos

(se dela esvaíssem grito choro e alegria, Ângela os pisava como num teatro)

– O rangido que franzira minha pele. Sempre aquilo haveria de existir comigo, estaria a vir calar a própria sede que era em mim o meu alastro de vida. Franzia e eu arrepiava, encolhia-me toda no corpo miúdo. Minha elasticidade brilhosa nasceu foi com a feição que sempre a tive bem escancarada para o teatro. Na hora de ir ao cenário tudo se tornara vago e generoso, o mundo se abria como tão lisa e impeditiva é a pele de uma flor, desliza desliza. Mas eu sempre estive de algum modo rígida rígida rígida, até que minha pele se apaziguava. Eu estava nos palcos, enfim! Eu sabia que estava sendo o fruto que devia aflorar. Somente o palco foi capaz de denegrir a natureza réptil do meu tecido.

Ângela é teatro. Ângela se fez viva pelo teatro, aquelas cortinas grandes pesadas empoeiradas e clássicas representam a sua vida. Silenciosa ou falante, ela desenhava o teatro em suas feições cambiantes, mesmo tão caseira – ao que parece frequentava a cozinha de sua casa como se fosse a sala, não saía dali, talvez fumasse ali também, mas não cozinhava grandes coisas, o ar da cozinha é contrito demais e mal arejado sem aptidão, não há predileção de gostos nem cheiros específicos – passava largas horas em casa, e ainda assim nela estava o ranço do teatro.

Seu teatro, esta vida que Ângela nunca sabe como quando irá desmembrar, talvez porque passou por fases tão decaída. Ângela é tensa. O presente, afirma cansada, é seu maior acontecimento! Cheia de quereres, porque não absurdos!, ela estala o nascimento de um fino ruído branco, como se tudo realmente fosse possível! A sua crença é invejável.

Às vezes, acredito que Ângela representa o exagero da valorização do passado das coisas, claro! ela é dual!, uma mulher sempre alerta um pouco histérica à noite, mas morta durante o dia. Sua consciência de já ter morrido faísca.

Enquanto Eu! fico quieta e sombria, e prefiro sempre colocar um pouco de preguiça na passagem dos tempos de Ângela. E se Eu! quiser teimar e me queimar, ela nunca mais voltará a ter espaços aqui. Entre todos nós. Mas Ângela cala minhas noites, equilibra e destina.

Agora Ângela finalmente encontra espaço para dizer do seu teatro, que foi o seu modo de viver, senão ela nunca se manteria: bem viva e em pé. Ângela nunca soube se suportar, nunca acostumou consigo mesma o suficiente para que não necessitasse do rabisco e corte da arte. Ela era habilidosa em se disfarçar. Dividir-se em mulheres foi sua sobrevivência, aceitando aceitando e vivendo aquilo com falso louvor. Fingindo muito também. Sei que escondida sempre brigou com seus nomes e identidade. Sua intimidade ainda é categoricamente bem desconhecida.

Mas o seu teatro.!.

Agora que Ângela vê o teatral a fechar suas cortinas, para sempre!, então ela quer declarar o que foi o seu ensejo desvelo, piso e chão artísticos. Neste presente momento, em que renasce despregando-se para contar, é quando a melancolia a retira ao estado de percepção aguda, porque Ângela sabe que nunca mais voltará a viver pelas obras de teatro – o seu apego e desapego ao passado, seus pés na madeira dos palcos… Ângela passou a este outro estágio, o nascedouro, e por isso estou com ela, nesta novidade que é ela mesma abandonando-se daquele tempo..e vindo de novo , , Ângela aprenderá a dar adeus ao que um dia foi sua latente ousadia de atriz.. sim!, ela nunca poderia haver sido mais contraditoriamente satisfeita quando virada em palcos.

– A roupa que já não era a minha, meus pés que se calçavam inchados, os ombros sustentando um personagem que tinha de mim aquilo que jamais transparecera se não fosse amando os palcos. Amava. Como fui versátil!, tudo isso propiciava este modo de incorporar os dias longos de ensaio, dias travessos esbugalhados mexidos como voltas em útero de mulher. Revirava-me. No camarim, sentada respirando abafada dentro da maquiagem, olhava todas essas aflições passarem por mim, e que ninguém as continha porque era impossível lidar com aquilo, eu sei que berrei com alguém!, mas tão nunca eles poderiam, era o teatro o dono da condução dos meus desgarros.

Ângela teve fértil espontaneidade para criar seu renascer, e talvez seja por isso que lhe dedico tanta credibilidade, por sua autêntica e bem fundamentada forma de se fazer no presente. Velha velha como foi, poderia escarnar morbosidades, mas Ângela tem uma luz doce-seca e afinada. Que luz estarrecedora para os olhos de uma criança! Os palcos de Ângela nunca ameaçaram gostar da infantilidade adulta.

Suas cores continuam a ser duras e frouxas por coerência cíclica – sim!, talvez devo a Ângela o aprendizado das voltas-e-ciclos – suas cores são abundantes e concentradas a partir do meio da escuridão, e ao fim de todas as suas cores, no final de um raio-luz tem-se o infinito humano formado por cada cor saída em linha reta e adiante sempre mais adiante. A alma de Ângela foi colorida pra sempre! Ângela é dona de um auto-retrato!

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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