Alita: um anjo de Rousseau?, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Numa sociedade civilizada o que distingue o crime da ação legítima é a Lei, nunca a moral ou a crença pessoal

Alita: um anjo de Rousseau?

por Fábio de Oliveira Ribeiro

“Essa cidade é capaz de corromper qualquer um” – diz numa cena o Dr. Dyson Ido, personagem que achou Alita no lixo e a reconstruiu. Essa frase é fundamental para entender a estrutura profunda do filme. A heroína do filme Alita (2019) é uma antítese perfeita do anti-herói do filme Chappie (2015).

Chappie é um sofisticado programa capaz de aprender (IA) baixado num robô policial defeituoso que acaba sendo roubado por uma gangue de ladrões. Ele cresce num ambiente corrompido, aprende a gostar das pessoas com as quais convive e se ajusta perfeitamente à realidade. Em pouco tempo Chappie começa a agir como um bandido. Ele comete crimes como se isso fosse natural. 

Alita tem um imenso coração e está sempre pronta a doá-lo a qualquer pessoa. Sua programação não pode ser modificada nem mesmo pelo ambiente corrupto em que ela foi lançada com amnésia após ter sido reconstruída. Programada para combater, Alita é naturalmente boa e impelida a se opor ao mal.

Em algum momento tanto Chappie quanto Alita são obrigados a desafiar a autoridade paterna. A diferença qualitativa que existe entre o Dr. Dyson Ido e o marginal que educou Chappie acarreta soluções dramáticas diferentes.

Mente sã em corpo são. Reconstruída uma segunda vez num corpo mais adequado após ter sido destruída em combate, Alita volta a se relacionar bem com o pai. O rompimento entre Chappie e seu padrasto também é temporário. Ao final, ele consegue se transferir para um novo corpo.

A luta de classes é um elemento importante no filme Alita. A separação entre a cidade pobre em que ela vive na terra e a cidade rica que existe suspensa no céu é total. A riqueza sobe, o lixo de Zalen desce e é consumido por pessoas como o Dr. Dyson Ido. Ancorada na terra, Zalen é semelhante à cidade espacial de Elysiun (filme de 2013). Em ambas, a entrada dos pobres é proibida sob pena de morte.

Tanto Zalen quanto Elysium podem ser consideradas representações fictícias dos EUA, país rico em que as pessoas pobres também estão sendo impedidas de entrar por políticos como Donald Trump. Não por acaso a imigração também desempenha uma função dramática importante no filme Alita. O namorado da protagonista morre tentando subir para Zalen. Ela trocaria sua obrigação de combater o Dr. Nova (governante de Zalen) pelo amor. A morte de Hugo recoloca Alita em rota de colisão com a cidade dos ricos.

Rousseau disse que o homem nasce naturalmente bom e a sociedade o corrompe. As sociedades decadentes em que os filmes de ficção científica são produzidos e consumidos podem ser melhoradas por obras como Alita? Sim e não.

Sim porque a ficção sempre teve um importante papel pedagógico. Não porque Alita simplifica relações sociais que são muito mais delicadas. As barreiras ideológicas e físicas que impedem os imigrantes pobres de entrar nos EUA também se destinam a impedir que os cidadãos miseráveis daquele país possam fugir.

O abismo entre ricos e pobres nos EUA já é imenso. Desde 2008 a pobreza cresceu assustadoramente entre os norte-americanos. Dezenas de milhões deles perderam suas casas e foram obrigados a viver em minas abandonadas e em favelas de tendas. Portanto, a crença de que aquele país continuará atraindo ondas de imigrantes miseráveis é ilusória.

Outro problema evidente de Alita é a violência. A ideia de que existe uma violência que é justificável está na raiz dos problemas das sociedades pós-modernas. Qualquer policial, segurança ou cidadão comum pode acreditar que, como se fosse Alita, fez o bem ao executar dezenas de pessoas suspeitas num tiroteio, ao sacar sua arma e matar um motorista de táxi na rua ou ao estrangular um jovem negro e matá-lo num supermercado. Nos três casos citados (todos ocorridos no Brasil nos últimos dias) a violência foi excessiva e, portanto, criminosa.

Numa sociedade civilizada o que distingue o crime da ação legítima é a Lei, nunca a moral ou a crença pessoal. Ao contrário do que ocorre nos filmes de ficção, na realidade não existe nenhuma violência que possa ser considerada intrinsecamente boa. Todos os sistemas criminais civilizados tratam a violência como algo indesejável. Ela só é tolerada em alguns casos porque o Estado tem o dever de proteger os cidadãos e porque estes não devem ser impedidos de se defender quando são atacados.

Há quase 100 anos o cinema tem explorado o amor e o ódio entre pessoas de países diferentes, entre civilizados e índios, brancos e negros, policiais e bandidos, seres humanos e alienígenas, clones e robôs. Até mesmo as relações entre personagens de épocas e/ou dimensões diferentes já se transformaram em filmes.

Alita valoriza o amor, mas no universo do filme a coexistência entre os ricos de Zalen e pobres da Cidade do Ferro é uma impossibilidade geográfica que não existe no mundo real. Em Chappie, apesar de pertencerem a comunidades distintas, todos os personagens partilham a mesma cidade.

As versões simplificadas da sociedade, do sistema criminal, da moral, da ética, da filosofia, do amor, do urbanismo e da religião que são fornecidas pelos filmes de ficção violentos apenas reforçam a crença equivocada de que existe uma violência que pode ser considerada boa em si mesma. Esse é o maior problema de Alita, Chappie, Elysium e de todos os filmes semelhantes.

Fábio de Oliveira Ribeiro

6 Comentários

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  1. Quero dar os parabéns pra Fábio de oliveira ribeiro..que nota espetacular,eu já vi esses três filmes e jamais conseguiria essa percepção entre eles..
    E impressionante como tudo que vc escreveu e verdadeiro e se encaixa perfeitamente dentro desse contexto..Mentes Sá num corpo são. Amei simplesmente amei..???

  2. Gunnm “Gun-Mu”, algo como ‘A arma dos Sonhos’ ou Battle Angel Alita é um mangá de ficção científica lançado em 15 de dezembro de 1990. Sua analogia é interessante, mas naquela época não existia Chappie, Elysium ou as barreiras do Trump. A história em que o filme é baseado tem muito mais informações sobre a origem dos personagens, principalmente dos vilões. O filme só mostra o início da história e só as experiências da Alita. Além da questão social, também existe a questão do que deve ser considerado humano em meio a toda essa tecnologia. O Ido quando descobriu a verdade sobre os cidadãos de Zalém, ele se matou. Visualmente o filme é uma ótima adaptação do mangá, mas com relação ao roteiro nem tanto. Eu discordo que filmes de ficção, que descrevem uma realidade totalmente diferente da nossa possam reforçar qualquer tipo de ideia de que a violência é justificável. Na minha opinião, os filmes que reforçam essa ideia, são filmes como “Tropa de Elite”.

    1. O mangá não foi objeto de comparação.
      Comparei dois filmes para facilitar a compreensão de Alita.
      A violência supostamente virtuosa que tem sido espalhada por filmes como Alita é extremamente perigosa justamente porque parece inofensiva.
      Macaco vê, macaco faz.
      Ninguém copiou a violência do filme Tropa de Elite (que denuncia a violência policial). Mas teve gente que matou pessoas sob a inspiração do filme Terminator inclusive no Brasil.
      O que o filme não mostra do mangá não me interessa. Cometei o filme que foi feito e está sendo projetado.

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