O Outro sertão de Guimarães Rosa, por Walnice Nogueira Galvão

O Outro sertão de Guimarães Rosa

por Walnice Nogueira Galvão

Raros são os documentários sobre nosso escritor, ainda mais  versando período ignorado de sua vida, como é o caso deste Outro sertão. As diretoras, Adriana Jacobsen e Soraia Vilela, são duas brasileiras que viveram muitos anos na Alemanha. Modestas e discretas, mesmo no filme e nas entrevistas promocionais quase não falam de si.

Base do filme é o chamado Diário de Hamburgo. Como é sabido, o escritor utilizava cadernos que depois arquivava, a maioria deles já tendo rendido bons estudos. Tais cadernos integram o Fundo Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Menos este, que foi parar na Universidade Federal de Minas Gerais, onde uma equipe de especialistas carinhosamente o analisou.

O presente exemplar é dos mais pobres, sem texto corrido, com anotações lacônicas e quase telegráficas sobre esse momento fulcral na vida de Guimarães Rosa, da Alemanha e do mundo. Relicário de observações, concentra-se justamente na fase em que o escritor ainda era inédito, a Alemanha mergulhava no nazismo e a Segunda Guerra pairava no horizonte. Também é então que conhece sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho, com quem viveria até o fim de seus dias.

Período especial e definitivo na vida do médico do interior de Minas Gerais, foi seu primeiro posto diplomático.

Nomeado vice-cônsul em Hamburgo (Alemanha), para lá se dirigiu, no ano de 1938. O nazismo estava em ascensão, e temos escassos mas claros registros de Guimarães Rosa expressando seu desgosto quanto aos horrores que se avizinhavam.

A tal ponto que – o que só o honra – atrairia a atenção da famigerada Gestapo. As cineastas descobriram documentos da polícia secreta alemã que o incriminam como crítico e oponente do nazismo. Até o denunciam à embaixada brasileira, informando que era contra o regime e que fez caricatura de Hitler pendurado numa forca. Conforme consta dos mesmos papeis, em sua opinião a Alemanha perderia a guerra, porque não tinha potência para resistir à Rússia.

Outros apontamentos mostram sua preocupação com os crescentes sinais de antisemitismo, com que não compactuava.

Antes que o aparelho de estado totalitário fosse completamente instalado, ainda havia brechas para o exercício de direitos humanos e solidariedade, contrariando as instruções inequívocas do Itamaraty para recusar vistos de entrada no Brasil a judeus. O escritor, juntamente com D. Aracy, sua colega de trabalho, consegue dar vistos a um bom número dentre eles. Vemos no filme comoventes depoimentos de alguns sobreviventes, já bem idosos. Para dar uma ideia, o filme oferece uma comparação entre dois de nossos consulados: no primeiro semestre de 1939, o consulado de Berlim concedeu 0 (zero)  vistos a judeus; o de Hamburgo um total de 96. Dá para discutir?

O filme é impecável enquanto pesquisa: vasculha todos os arquivos, esgota todas as fontes, entrevista as pessoas cruciais. E não fica atrás enquanto imagem. Entre estas destacam-se as que reconstituem a época, que são maravilhosas; e as pertinentes ao escritor, com fartura de fotos até agora desconhecidas de sua pessoa, bem como de trechos do Diário de Hamburgo e de sua assinatura nos passaportes de judeus.

Coroando tudo, as cineastas fizeram uma descoberta extraordinária. Um dos contos de Guimarães Rosa, “O mau humor de Wotan”, recolhido no livro póstumo Ave, palavra, fala de um casal com quem fez amizade em Hamburgo. O amigo, recém-casado, acabaria morrendo no front. Pois elas procuraram e localizaram Frau Heubel, a viúva, agora velhinha, e a entrevistaram para o filme, em companhia do filho do casal. Vemos fotos dos Heubel com o escritor e lemos cartas que trocaram. Ela não tinha noção de que fosse personagem literária: e ficou satisfeitíssima.

Outra raridade permanecia inédita nos arquivos da TV alemã, mas elas recuperaram: a metragem de uma entrevista de Guimarães Rosa muito anos depois, em 1962, sobre sua a essa altura substancial e famosa obra.

Não há quem resista a um filme que começa e termina por duas vozes cheias de aura: no início a de Marlene Dietrich cantando “Luar do sertão” e no fim a de Antonio Candido cantando a “Canção de Siruiz”, de Grande sertão: veredas.

Walnice Nogueira Galvão – Professora Emérita da FFLCH-USP
Walnice Nogueira Galvão

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