Quando alguns militares entraram no samba, por Daniel Costa

Para relembrar também que as Forças Armadas nem sempre tiveram apenas figuras desprezíveis como Bolsonaros, Helenos e Bragas Nettos.

A memória de personagens que em um momento de grande disputa política utilizaram da música popular para tecer críticas sociais. | Fotomontagem: Reprodução

Quando alguns militares entraram no samba

por Daniel Costa*

Quem acompanha as notícias apontando o envolvimento de altos oficiais das Forças Armadas na tentativa de golpe, orquestrada por Jair Bolsonaro e seus asseclas, talvez esqueça ou nem saiba que em um passado não muito distante, essas forças viviam um processo de disputa interna de projetos. Como resultado dos ecos da guerra fria, ao longo da década de 1950 até o golpe civil-militar de 1964 as Força Armadas enfrentavam uma renhida disputa política entre aqueles tidos como nacionalistas, e aqueles vistos como entreguistas.

Enquanto o primeiro grupo esteve na linha de frente apoiando o projeto de desenvolvimento soberano do país, como no momento em que Vargas decide criar a Petrobras, o segundo estava intrinsecamente ligado aos interesses dos Estados Unidos. Infelizmente sabemos qual o desfecho dessa luta política, com a vitória do segundo grupo e o início de uma terrível ditadura civil-militar que deixou marcas em nossa sociedade até hoje.

Foi nesse cenário que um grupo de oficiais decidiu – de forma consciente ou não- entrar nessa batalha por meio da música, lançando principalmente marchinhas carnavalescas com forte teor social. O quinteto formado pelos coronéis Antônio de Pádua Vieira da Costa, conhecido no meio musical como Luiz Antônio; Klecius Pennafort Caldas; Joaquim Antônio Candeias Junior, ou simplesmente Jota Junior; Ruthnaldo de Oliveira Silva, o Rutinaldo; e por fim o general Armando Cavalcanti deixaram suas marcas na música popular brasileira.

Apesar de ficarem conhecidos principalmente pelas músicas de carnaval, todos transitaram pelos mais variados gêneros: do samba canção ao baião, da dor de cotovelo a jovem guarda, passando pelo choro e pelo sambão joia dos anos 1970 não era difícil ver o nome de algum desses combatentes da canção popular no repertório de algum disco recém-lançado. Agora convido o leitor a passar de forma resumida pela trajetória dos nossos personagens.

O carioca Klecius Caldas, é considerado até hoje por estudiosos de música popular como um dos mais ecléticos compositores da nossa música. Sua obra é importante na história do carnaval, com sucessos como “Maria Candelária“, “A lua é camarada” e “Primeiro clarim“. A história do samba-canção também não poderia ser escrita sem passar por seu nome, autor de clássicos como “Somos dois” e “Neste mesmo lugar“, canções com melodias e letras sofisticadas. Como se não bastasse, compôs com Armando Cavalcanti o clássico “Boiadeiro“, que seria um dos prefixos do seu lançador, o rei do baião Luiz Gonzaga.

Klecius Caldas, como já observado, foi coronel do Exército, e o fundamental de sua obra foi escrita com um dos integrantes desse informal quinteto, o general Armando Cavalcanti. Outros dois parceiros importantes foram Rutinaldo e Luiz Antonio, ambos coronéis. As primeiras gravações de músicas de Klecius foram feitas no início da década de 1940, primeiro por Francisco Alves, mas já em 1948 ele lançaria “Somos dois” na voz de Dick Farney contribuindo para o nascimento do samba-canção e lançando as bases para a bossa nova. Klecius tinha como marca principal a versatilidade que pode ser comprovada através dos sucessos criados para datas especiais como o Natal com “Noite azul“, ou o Dia das Crianças com “Sua majestade, o neném“.

Já o pernambucano Armando Cavalcanti, nascido em 1914, interessou-se pela música desde criança. Ingressou na carreira militar e foi reformado como general. Considerado um dos expoentes do grupo dos capitães da MPB, faleceu precocemente em 1964. Na data de sua morte, o jornal O Globo, optou por destacar seu lado compositor, relegando a segundo plano sua atuação política em oposição ao regime que começara a se consolidar, vejamos: vitimado por um enfarte do miocárdio, morreu ontem de noite, aos 50 anos de idade, o compositor e general reformado do Exército Armando Cavalcanti, autor de dezenas de músicas carnavalescas de sucesso feitas em parceria com Klecius Caldas, entre as quais “Marcha do gago” e “Maria Candelária” e a já citada “Boiadeiro”.

Como poucos compositores, a dupla conseguiu apresentar ao ouvinte a dureza da lida do sertanejo e a beleza da vida longe da metrópole, no mesmo árido sertão retratado por Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e toda uma geração de autores. Vejamos: “Vai boiadeiro, que a noite já vem. Guarda o teu gado e vai pra junto do teu bem. De manhãzinha quando eu sigo pela estrada. Minha boiada pra invernada eu vou levar. São dez cabeça é muito pouco, é quase nada. Mas não tem outras mais bonita no lugar. De tardezinha quando eu venho pela estrada. A filharada tá todinha a me esperar. São dez filhinho é muito pouco, é quase nada. Mas não tem outros, mais bonitos no lugar  E quando eu chego na cancela da morada. Minha Rosinha vem correndo me abraçar. É pequenina, é miudinha é quase nada. Mas não tem outra mais bonita no lugar”.

Por sua vez, o carioca Luiz Antônio vê sua vocação musical começar a surgir ainda dentro do quartel, quando aos 14 anos compõe os hinos cantados nas competições esportivas dos cadetes. Gradua-se tenente em 1945 e no mesmo ano viaja com a Força Expedicionária Brasileira para a Europa, onde participa da Segunda Guerra Mundial.

Começa a carreira como compositor profissional em 1948, com o já citado samba-canção “Somos dois”,parceria com Klecius Caldas e Armando Cavalcanti. Em 1951 emplacaria um dos grandes sucessos do carnaval, a marchinha “Sapato de pobre, parceria com Jota Junior, e gravada pela cantora Marlene.

Segundo o pesquisador Ricardo Cravo Albin, nesse período: “Muitas de suas composições expressam a preocupação com os menos favorecidos e retratam a dura vida nos subúrbios da cidade do Rio de Janeiro. “Lata d’Água” é inspirada por uma cena de morro presenciada pelos autores, na ocasião capitães do exército”.

Mantendo a forte crítica social, Luiz Antônio repetiria o êxito no Carnaval de 1953, quando a cantora Marlene grava com sucesso a Marchi a “Zé Marmita” (parceria com Brasinha). Cravo Albin relembra que: “o samba aborda o drama dos operários da construção civil que se levantam de madrugada para viajar para o trabalho pendurados nos vagões dos trens e, além de tudo, têm de comer a comida que sobrou do jantar. Essa é a música mais cantada e executada do ano”.

Dessa confraria de compositores, Luiz Antonio foi o que mais se engajou politicamente, inclusive atuando no gabinete militar de João Goulart. De acordo com o jornalista e escritor Ruy Castro, seja pelo teor de suas composições ou pela proximidade com Jango, “quando veio o golpe, em abril de 1964, não foi imediatamente atingido, mas teve a certeza que não gostavam dele, porque quiseram transferi-lo para Manaus”. Como não concordará com tal decisão restou-lhe o pedido de reforma, e assim aos 43 anos passava para a reserva como coronel.

Quanto ao coronel que entraria para os anais da música brasileira como Jota Junior, sabemos que ainda menino em Belém, capital do Pará costumava fazer pequenas canções, com quadrinhas que falavam do seu dia-a-dia. Aos 12 anos, compôs o primeiro samba, “Agora é tarde”. Joaquim Antonio Candeias Junior nunca estudou música formalmente, porém de forma autodidata tornou-se exímio violonista.

Como compositor de grandes sucessos, especialmente no carnaval, destacamos as marchinhas “Sassaricando” (com Luiz Antônio), lançada pela vedete Virgínia Lane e as já citadas “Sapato de pobre” e “Lata D`água“. Lançaria ainda as maliciosas “Mamãe, eu levei bomba” (com Oldemar Magalhães), lançada por Dircinha Batista, “Garota de Saint-Tropez” (com Braguinha), gravada por Jorge Veiga, e a clássica “Confete” (com o jornalista David Nasser), lançada por Francisco Alves.

A produção de Jota Junior especialmente os sambas e marchinhas de carnaval são segundo especialistas, “por vezes temperados com aquela pimentinha inerente à folia, que são registros expressivos da observação social e política (como na crítica de “Favela amarela“) e da transformação dos costumes no país”. O compositor seguiu em paralelo à atividade como compositor a carreira militar, formando-se na Academia Militar de Agulhas Negras, em 1945, e encerrou a carreira como coronel-professor.

Por fim cabe relembrar a figura de Rutinaldo, nascido em São Gonçalo em 1947, Ruthnaldo de Oliveira Silva passaria para a reserva como coronel. Em 1946, teve sua primeira composição gravada, o samba “Ela não me esquece”, parceria com Alcebíades Nogueira, lançado por Gilberto Alves.

Em 1953 emplacaria a marcha “Catumbi encheu”, parceria com o portelense Norival Reis, gravada para o carnaval daquele ano pela cantora Emilinha Borba. No carnaval do ano seguinte teve os sambas “Dinheiro de pobre”, com Norival Reis, gravado por Jorge Goulart, além de “Vai fazer um mês”, novamente na voz de Emilinha Borba.

Em 1970, venceria o festival de Músicas de Carnaval promovido pela TV Tupi com a marcha-rancho “O primeiro clarim”, parceria com Klecius Caldas, grande sucesso criado por Dircinha Batista e consagrado por um júri de alta respeitabilidade integrado por membros do Conselho Superior de MPB do Museu da Imagem e do Som, a canção seria regravada pela cantora Marília Medalha no álbum “Caminhada”, lançado pela paulistana RGE. Em 1976, ainda emplacaria na voz de Cauby Peixoto o samba “Perdão Mangueira”, composta com Adelino Moreira.

Ao relembrar esses cinco compositores busquei trazer aos leitores a memória de grandes personagens que em um momento de grande disputa política utilizaram da música popular para tecer críticas sociais enquanto setores entreguistas buscavam conspirar contra o país. E para relembrar também que as Forças Armadas nem sempre tiveram apenas figuras desprezíveis como Bolsonaros, Helenos e Bragas Nettos.

*Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

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