A santa loucura de Dona Purcina, por Eduardo Pontin

Comecei a folhear “Dona Purcina - A Matriarca dos Loucos”, do professor, editor, escritor, livreiro e agitador cultural Cineas Santos.

Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (VIII)

A santa loucura de Dona Purcina

por Eduardo Pontin

Dona Purcina foi uma sertaneja arretada nascida em 1914 no sertão onde hoje se encontra o município de São Braz do Piauí. A santa loucura de Dona Purcina foi criar, além dos 4 filhos naturais, outros tantos sem que houvesse condições financeiras aparentes para isso, entre outros sacrifícios, nunca em benefício próprio, sempre a favor de alguém. Acontece que Dona Purcina não vivia de aparências e fazia acontecer, pois tinha uma missão em sua passagem na Terra e não havia quem a tirasse da cabeça: cuidar.

Muitos caem bêbedos na noite de terça-feira de Carnaval, outros tentam se recuperar da ressaca dos dias de folia e alguns mais prudentes dormem cedo, à espera da chegada da triste quarta-feira de cinzas. Por mero acaso comecei a folhear “Dona Purcina – A Matriarca dos Loucos”, do grande professor, editor, escritor, livreiro, agitador cultural, entre muitos outros atributos Cineas Santos. Iniciei no penúltimo texto, para conferir se o livro seguia uma ordem cronológica. Como essa cronologia era sutil, prossegui lendo a obra de trás para frente, como a fazer jus ao título.

Li numa sentada, sem querer parar, com vontade de saber qual seria o próximo ensinamento nada metódico de Dona Purcina que, mesmo após ser acometida com o Mal de Alzheimer, dava nó em pingo d’água com sua linha de raciocínio particularíssima, pra não dizer única.

A leitura do livro de Cineas me deixou imbuído de uma paz celestial, ainda que momentânea. Compartilhar do relato de quem procurou fazer a coisa certa, mesmo em condições bem adversas que testassem a própria sanidade é algo certamente inspirador. Acompanhar o enorme amor e carinho com que o professor e seus irmãos dedicaram a mãe é uma grande lição que aquieta o coração.

Senti enorme empatia pelo drama de Cineas e sua família, pois em minha juventude também convivi de perto com uma pessoa querida que sofria com esta doença. Embora nunca tenha sido diagnosticada, havia a desconfiança de que minha vó materna, Édene Salvio Pontin (Piracicaba,1926-2010, São Paulo) tivesse Alzheimer. Lendo o relato de Cineas, hoje tenho certeza disso.

Quantas não foram as tardes que ela ficava aflita, querendo ir para a sua casa e eu, já com carta de motorista, a levava para dar uma volta pelo bairro. Dez minutos de carro bastavam pra que ela se acalmasse e nós regressássemos à mesma casa onde ela não reconhecia ser a dela. Também inúmeras foram as vezes em que eu entrava no jogo dela e contracenava, apenas para não contrariá-la, como Cineas e Dona Purcina.

Certa vez ela precisou ir ao médico e montamos uma verdadeira operação para convencê-la a sair de casa. Estou pelejando para lembrar os detalhes da negociação, porém, em vão, já se vão mais de 15 anos. Sei que a negociação coube a mim e durou cerca de uma hora, sem que eu perdesse a calma ou tentasse convencê-la de que vivia uma realidade paralela. O tempo todo me mantive firme no jogo até dobrar a sua convicção, tal qual o também ator Cineas.

Enfim, como o próprio Cineas fala no livro, esta obra também atua como bálsamo para quem está vivendo com uma pessoa com esta doença (e para quem já viveu, também!).

A vida do bem-sucedido Cineas Santos não foi nada fácil.  Sua família passava por grande dificuldade material e lutava para ter água no dia a dia. Dona Purcina segurava firme e milagrosamente efetuava a multiplicação do nada, como seu filho muito bem definiu.

O professor Cineas Santos apresenta uma visão divertida do drama que ele e sua família enfrentaram. Por vezes, apresenta um ceticismo inescapável em relação aos métodos de sua mãe, sem que isso configure falta de respeito. Pelo contrário, seu texto é repleto de humanidade, nos pequenos detalhes, nas mínimas coisas, no silêncio do não dito, no retrato estampado. Os próprios títulos de cada texto são uma aula de leveza literária. Com boa dose de bom-humor, é impossível não se sensibilizar e se arrepiar com o cenário descrito pelo filho de Dona Purcina.

As peripécias de Dona Purcina podem soar pouco ortodoxas aos olhos pracianos. Entretanto, o que o filho de Dona Purcina revela é uma senhora com o coração que transbordava bondade, compaixão e empatia. Uma sábia que dominava saberes e fazeres que somente os que vivem num lugar tão esquecido e tão remoto podem conhecer. Certamente seus métodos soam estranhos para os que vivem nas grandes cidades, porém, ninguém há de negar os seus resultados. O que dizer da cura do menino desenganado feita com o cururu? E a acauã pisada, transformada num líquido pastoso que levantou a sua neta acamada?

Um sutil jogo editorial se torna metáfora da doença de Alzheimer que Dona Purcina sofria: os textos são alternados com duas fontes. Uma representa os tempos em que Dona Purcina já havia sido acometida pela doença, ou seja, seus últimos anos de vida. A outra fonte retrata o passado da matriarca, tão repleto de encantos e desencantos. Entre o presente e o passado desta nobre sertaneja, a obra vai se costurando, o leitor é pego e, sem perceber, não desagarra mais do livro até terminá-lo, numa leitura saborosa.

Dona Purcina é uma daquelas santas que só existem sertões adentro, daquelas pessoas que a todos ajuda sem querer nada em troca, a bondade pela bondade. Daquelas figuras humanas que em seu torrão natal é uma verdadeira lenda, que todos têm algo a dizer, sempre uma boa história, um relato de ajuda caridosa. Uma daquelas santas que o Vaticano nunca vai ter notícia, mas que em sua terra não morre nunca, permanecendo viva na memória e no coração daqueles que puderam privar de sua fé inabalável e de seu sábio convívio.

Dona Purcina ao inteirar 80 anos.

SERVIÇO:

Livro: Dona Purcina – A Matriarca dos Loucos

Autor: Cineas Santos

Ano: 2012

Edição: 3ª, 2019

Editora: Oficina da Palavra

Local de edição: Teresina (PI)

Onde comprar: Livraria Entrelivros

(Av. Dom Severino, 1045 – Fátima, Teresina | (86) 3234-1471)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Eduardo Pontin

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