O nascimento do Samba urbano ganha livro definitivo, por Eduardo Pontin

Carlos Didier narra a heroica e trágica trajetória do Samba Batucado do Estácio

O nascimento do Samba urbano ganha livro definitivo

por Eduardo Pontin

Série RESENHA DE SAMBA (I)

Carlos Didier é violonista e historiador de nossa música popular, autor, entre outros, de “Noel Rosa: uma biografia” (1990), um dos maiores livros sobre Samba já publicados. A sua mais recente obra, “Negra Semente, Fina Flor da Malandragem:  Samba Batucado do Estácio de Sá” (2022, ed. do autor), nasceu do inquietamento do violonista em não acertar a batida do violão das composições de Ismael Silva. Foi quando o Caôla, apelido de juventude do autor, então com apenas 22 anos, se encontrou com Ismael em 1976 para enfim esclarecer aquele mistério. O jovem violonista percebeu, então, que a pulsação rítmica do violão de Ismael era algo muito distinto e autêntico. Era a pulsação rítmica dos sambas batucados do Estácio. E desvendar essa pulsação rítmica passou a ser a sua missão de vida.

A leitura da mais nova obra de Carlos Didier é uma verdadeira viagem no tempo. O Samba pioneiro do Estácio não é abordado logo de cara. Para chegar ao estalar de tamborins, pancadas de surdo, deslizar de reco-recos, toques de pandeiro e acordes de cavaquinho e violão, Didier apresenta 18 saborosos capítulos introdutórios, o equivalente a 150 páginas.

Os primeiros 6 capítulos são um retrato histórico das práticas perversas de prostituição do século XIX e início do século XX. Essas práticas incluíam o tráfico e a escravização de mulheres. Um tema indissociável da origem do samba carioca. Não só porque o Samba batucado do Estácio nasceu na Zona do Mangue, região do baixo meretrício da então capital federal, como também pelo fato de alguns dos sambistas dessa geração serem cafetões barras-pesadas, como Brancura e Baiaco.

Justamente pela relação perversa de Brancura com a prostituição de mulheres, o sambista é o primeiro a ser abordado na obra de Didier, com 3 capítulos que traçam o seu perfil biográfico e realçam seu talento como compositor, o que muitas vezes foi questionado. A despeito da ausência de virtudes morais de Brancura, trata-se de um grande feito alcançado por Didier, já que o que se conhecia sobre o sambista não passavam de ligeiras notas, poucos depoimentos ou anedotas. O gênio criativo de Brancura não é o mesmo de Baiaco, que, “como compositor, cultivava um único gênero: samba de extorsão”.

Didier comprova que Brancura (esq.), aqui em possível foto do sambista, era compositor dos bons.

É comum em livros que narram a história do Samba encontrar relações de suas origens com a Polca, o Lundu e o Maxixe. Porém, as mais das vezes esses gêneros são ligeiramente citados, deixando dúvidas no ar. No novo livro de Didier é possível conhecer esses ritmos de forma aprofundada, tanto historicamente quanto musicalmente. Com os estudos de Didier, finalmente há o esclarecimento necessário para compreender o vínculo do Samba com a Polca, o Lundu e o Maxixe, caldeirão de sons acrescido de um tempero até então não lembrado pela historiografia de modo geral: a Habanera, gênero afro-cubano.

Cumprindo esse trajeto introdutório, “Negra Semente” demonstra como as raízes da malandragem carioca estão diretamente ligadas aos capoeiras do Rio do século XIX. Já próximo de entrar no universo do samba batucado, Didier apresenta lista original de composições que desde o século XIX recebiam classificações diversas, mas que, na verdade, não passavam de sambas disfarçados com outras nomenclaturas.

Após o extermínio das maltas de capoeiragem do século XIX pelos republicanos, quando a malandragem era um fenômeno coletivo, nascia o “malandro solitário”. Surgiram em cena então o “sócio oculto das princesas de bordéis, o leão de cabarés e tavolagens, o senhor dos domínios da patranha, da artimanha e da arapuca”, além do “malandro da estia”.

Porém, fundamental mesmo para o Samba foi o “malandro-seresteiro”, aquele que conquistava vantagens por meio da sua arte. Descendente direto desta linhagem é o “malandro-sambista”. O capítulo 20, que descreve o nascimento do sambista-seresteiro na figura de Rubens Barcelos, “o criador do samba-canção”, “o Bilac do Mangue”, “príncipe da malandragem”, talvez seja o mais marcante para quem aprecia a história do Samba. Impossível não se emocionar com o repentino desaparecimento de Rubens, aliás, a primeira perda do time do Estácio.

Carlos Cavalcanti: testemunha ocular do Samba batucado do Estácio.

A maior descoberta de Didier no universo da pesquisa é o trabalho do então repórter Carlos Cavalcanti, posteriormente artista plástico. Cavalcanti é, sem dúvida alguma, a pessoa de maior importância na documentação histórica do samba batucado do Estácio. Carlos vivenciou a coisa toda acontecendo, entrevistou os malandros na mesa do Bar Apolo e presenciou um ensaio do legendário grupo Gente do Morro.  Por isso, não há nada mais fidedigno quando o assunto é o Samba do Estácio do que as reportagens de Carlos Cavalcanti, um dos maiores trunfos do livro de Didier. José Ramos Tinhorão em suas obras havia ressaltado a importância do grupo Gente do Morro e da gravadora Brunswick. Didier na humildade de um discípulo seguiu o apontamento do mestre e no capítulo 25 destrinchou a trajetória do Gente e da Brunswick, histórias que se confundem. Didier detalha a composição do grupo Gente do Morro, bem como a instrumentação das suas gravações.

Grupo Gente do Morro em 1930: Benedito Lacerda (flauta); Dario Ferreira (saxofone); Julio dos Santos (cavaquinho); Henrique Britto e Jacy Pereira (violões de 6); Juvenal Lopes (ganzá); Gastão de Oliveira (tamborim) e Bide (tambor-surdo).

A obra é recheada de depoimentos concedidos ao autor de testemunhas oculares dos fatos narrados. Enfim perfis biográficos dignos da grandeza dos sambistas do Estácio foram traçados. Para isso, muito contribuiu a vasta ficha criminal desses malandros. Carlos Didier estudou as profundezas da complexidade do nascimento do samba batucado, sem nenhum tipo de preconceito ou temor em expor uma realidade perversa, violenta e por vezes sangrenta.

Como o autor adverte na apresentação da obra, a história descrita é para “gente grande”. Como a revelação de que Francisco Alves, o maior cantor da música popular brasileira da primeira metade do séc. XX, assim como o grande sambista Ismael Silva, foram cafetões.

Sem deixar de expor a face perversa do movimento do samba batucado do Estácio, Didier traz a lume informações musicais até então inéditas. Como a apresentação de sambas com autorias omitidas. Levando em consideração não o selo original do disco, mas o “selo da história”, temos:

1 “Fui Culpado” (1930, Bide), de autoria de seu irmão, Rubens;

2 “Vadiagem” (1929, Francisco Alves), de Bide;

3 “Mulher Venenosa (1929, Brancura), estribilho adaptado de samba de Paulo da Portela;

4 “Chora, meu bem” (1930, Benedito Lacerda), com omissão de Nilton Bastos;

5 “Orfandade” (1930, Benedito Lacerda), com provável omissão de Canuto;

6 “Isaura” (1930, Benedito Lacerda), com omissão de Juvenal Lopes;

7 “Se Você Jurar” (1930, Ismael Silva e Nilton Bastos), apenas de Nilton;

8 “Adeus” (1932, Ismael Silva e Noel Rosa), com omissão de Nilton Bastos.

O capítulo 26 narra em detalhes a breve trajetória da primeira Escola de Samba da história, fundada não em 1928, mas “em 1925 ou 1926” ainda como bloco: a Deixa Falar, do Estácio. Sustentando o canto solado, Aurélio Gomes era o gogó de ouro do time, que tinha Tibério na assistência para responder também. A Ala das Baianas vinha junto da bateria, para segurar o jogo rítmico dos batuqueiros num coral fulgurante das pastoras, entre elas Licína, Nair Jumbeba e Diva Lopes. O Diretor de Harmonia era Julio dos Santos, que tocava violão “como ninguém” e o cavaquinho, incialmente, era de Rubens Barcelos e seu irmão, Bide. A Escola possuía bateria com cerca de 40 batuqueiros, entre eles e seus instrumentos: pandeiro Francelino; tamborim Bide, Francelino, Gastão Oliveira, Julio dos Santos, Baiaco, Tibério e Bucy Moreira; cuíca João Mina e, posteriormente, Oliveira da Cuíca; surdo Benedito Lacerda. Os Mestres-Salas eram Juvenal Lopes (Nanal do Estácio) e Onofre da Silva e as Porta-Estandartes Nair Luzia dos Santos e Iracy Seixas Ferreira. Já o declínio como rancho vem a seguir, no capítulo 30: “Após o fracasso, o Deixa Falar se dissolvia”.

A geração da Escola de Samba Deixa Falar é essencial para a música popular brasileira.

Em “Negra Semente”, o que se percebe são horas de contemplação de Didier junto a cada samba analisado. Carlos não apenas escutou exaustivamente as gravações dos sambas do período. Violonista de antigos carnavais, Didier executou meticulosamente cada composição ao violão. O resultado não poderia ser mais completo. A análise poética-histórica-social que Didier realiza se junta a análise precisa do significado melódico de cada samba, numa fina interpretação que até os dias atuais passava em brancas nuvens, mesmo após cerca de 100 anos das gravações dos sambas do Estácio. Didier fez de cada samba do Estácio seu mundo, mudando o seu endereço afetivo para a Zona do Mangue.

Um livro que se faz entender como música, com frases compostas por expressões que bem poderiam dar em samba. Com estilo sintético, Didier com a presente obra lega à posteridade máximas que não devem ser mais esquecidas, passando a compor os esforços de nosso projeto de nação:

“sua história contava a de muitas”; “na mão direita, a África, na esquerda, a Europa”; “a malandragem era flor antiga, nascida da sementeira da capoeiragem”; “Porque o encanto do samba batucado vinha da mistura de dor melódica e virilidade rítmica”; “samba em nome apenas de Francisco Alves se faria samba de autor desconhecido”; “Porque no samba do Gente do Morro, com seus naipes de choro e percussão, a alma do malandro estava inteira”; “Criação de malandros-sambistas, gente dura de encarar na mão, o samba batucado era viril”; “Os malandros amavam apenas a si mesmos”.

“Na mão direita, a África, na esquerda, a Europa”, obra de Leandro Joaquim, séc. XVIII.

Didier recolheu todos os rastros e pistas deixados pelos depoimentos dos sambistas ou por outros historiadores e, na reunião desses fragmentos, reconstituiu um mosaico histórico admirável. Tudo com extremo cuidado e perícia no exame dos dados que se apresentavam. Com tantas informações e depoimentos para serem analisados e ordenados, somente uma engenharia bem engendrada poderia dar conta do recado.

Fora todos os méritos culturais do livro, é preciso levar em consideração que Didier é o próprio editor de sua obra: revisou e diagramou tudo. Importante destacar que Didier fez tudo às próprias custas, sem incentivo financeiro da iniciativa pública ou privada. Da pesquisa, passando pela elaboração do livro até sua publicação, tudo foi pago com o seu próprio suor.

Com um português pra acadêmico nenhum botar defeito, o livro de Didier é uma aula de prosa histórica. Embora seja escrito inteiramente em texto corrido, com citações sem recuos acadêmicos ou precisão de página, todo depoimento e toda informação têm sua fonte devidamente identificada.

Mas o melhor do livro de Didier não são os novos dados e descobertas apresentados, e sim a entrega do autor na confecção da obra. Didier contemplou cada samba, cada sambista, cada rua, cada comércio, cada mulher, cada homem, cada som e cada ritmo que estivessem presentes nas narrativas da origem do samba batucado. Muita reflexão, devoção e carinho, gestos dignos de quem almeja historiar a trajetória de uma expressão cultural e artística. Tudo isso demonstra ser “Negra Semente” uma obra madura de Didier, que com este livro se candidata ao posto de maior historiador de música popular brasileira em atividade, vaga deixada por José Ramos Tinhorão em 2021 após sua passagem.

Quase ao término da obra, o por vezes triste fim dos sambistas do Estácio é descrito em contraste com o recomeço de Ismael Silva nas rodas de intelectuais. Era o fim do movimento do Samba Batucado do Estácio de Sá, uma negra semente plantada pela fina flor da malandragem que semearia muitos frutos na música popular brasileira.

São pequenos retratos dos sambistas do Estácio que tornam o livro de Didier emocionante. Tomar minimamente conhecimento dos encontros entre Bide e Marçal, sem dúvida alguma a maior dupla de compositores de nossa música de toda história, quando papéis voavam pra todos os lados em meio as fagulhas intensamente criativas daqueles bambas, é algo marcante. Como não se emocionar com o grande sambista Armando Marçal que, após dar uma das suas gargalhadas, caía do sofá já sem vida? Ou a forma com que a cuíca artesanal de Oliveira da Cuíca era produzida e consumida pelas mãos ágeis do sambista em 2, 3 dias?

A obra de Didier não apenas narra o nascimento do Samba urbano brasileiro, como nos deixa íntimos de seus protagonistas. E para quem sente o Samba, não há como não derrubar lágrimas com tamanho esforço e sensibilidade. O livro de Didier pode ser encomendado sob demanda, por isso, o mais prudente é garantir um exemplar de “Negra Semente, Fina Flor da Malandragem:  Samba Batucado do Estácio de Sá” o quanto antes. E, garanto, vale cada centavo.

Neste livro de Didier, renascem os dois maiores estudiosos de nossa música popular: Mário de Andrade e José Ramos Tinhorão. Talvez esse seja o livro que Mário gostaria de ter escrito sobre o samba carioca. Com exemplos musicais em partitura, graças ao “ouvido atento” de Didier, a pulsação rítmica percebida pelo jovem violonista foi enfim desvendada. Tinhorão aparece não só no senso crítico de Didier, na afirmação de que Sinhô, até 1926, não havia produzido nada que justificasse o seu trono de “Rei do Samba”, mas também no rigor historiográfico e sociológico, bem como na paixão pelo Samba do Estácio. Nesta obra de Didier, vivem também Carlos Cavalcanti, Juarez Barroso, Francisco Duarte, Humberto Franceschi e todo o time de  sambistas-malandros do Estácio! Quem duvidar, que leia o livro e vá pra balança com Carlos Didier.

 

SERVIÇO

LIVRO: “NEGRA SEMENTE, FINA FLOR DA MALANDRAGEM: SAMBA BATUCADO DO ESTÁCIO DE SÁ”

ONDE COMPRAR: Site da Amazon (clique aqui)

AUTOR: Carlos Didier

ANO: 2022

EDITORA: Edição do autor

 

Eduardo Pontin

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