Centro que armazena e analisa as ossadas de Perus recebe ‘ordem de despejo’

Local que abriga material descoberto em vala clandestina deve ser desocupado até junho. Audiência busca solução

Até agora, foram identificados os restos de dois militantes políticos, ambos assassinados pela ditadura em 1971 – Leo Ramos/Caaf

da Rede Brasil Atual

Centro que armazena e analisa as ossadas de Perus recebe ‘ordem de despejo’

São Paulo – Criado em 2014, a partir de uma demanda de familiares de mortos e desaparecidos políticos, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf) se notabilizou pela análise das ossadas da vala clandestina descoberta em 1990 no cemitério Dom Bosco, em Perus, região noroeste da capital paulista. No final do ano, o Caaf, vinculado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), recebeu um aviso para deixar o local onde está instalado, na Vila Mariana, zona sul paulistana, até meados de junho, porque o imóvel foi vendido. Ameaçado de despejo, ainda não tem para onde ir.

O assunto seria tema de audiência pública na tarde desta sexta-feira (11), mas o juiz federal Eurico Zecchin Maiolino considerou melhor remarcar a discussão para a próxima sexta (18), às 14h. A reunião de hoje acabou sendo um breve balanço das atividades. Os trabalhos relativos às ossadas estão em fase final. Uma última leva deverá enviada para a Holanda, diz o professor Edson Teles, coordenador do Caaf.

Até aqui, foram identificados dois desaparecidos políticos. Há quatro anos, em fevereiro de 2018, os peritos identificaram os restos mortais de Dimas Casemiro, assassinado pela ditadura em 1971. Meses depois, foi a vez de Aluízio Palhano Ferreira, que foi morto no mesmo ano. As últimas amostras encaminhadas para análise de DNA não deram match, como observou o coordenador científico do Grupo de Trabalho Perus, o perito Samuel Ferreira, que participou da reunião de hoje, virtual – ele está com covid.

Preocupados, familiares e ativistas de direitos humanos encaminharam documento ao juiz federal, pedindo uma solução para o caso, “deforma a assegurar um local para o armazenamento e tratamento dos remanescentes ósseos”. Eles lembram que esse local, além de armazenar as ossadas, deve ser também um lugar de memória, em homenagem às vítimas daquele período. No primeiro ano do atual governo, foi feita uma tentativa para tirar as ossadas de Perus de São Paulo para Brasília.

Confira o documento.

Exmo. Sr. Juiz Federal Eurico Zecchin Maiolino

A ditadura sequestrou, torturou, matou e também fez desaparecer pessoas, negando às famílias o milenar direito ao luto. Um dos momentos emblemáticos que comprova esses crimes de lesa-humanidade foi a abertura da Vala de Perus. Ela é o local no Cemitério Dom Bosco, em São Paulo, onde clandestinamente foram enterrados desaparecidos políticos, vítimas da epidemia de meningite (que a ditadura também tentou esconder), e do Esquadrão da Morte.

Da Vala de Perus, cuja abertura ocorreu em 1990, no governo da prefeita Luíza Erundina foram retirados 1049 remanescentes ósseos. Na Câmara Municipal, foi aberta , de imediato, tal a importância e gravidade da situação, uma CPI que concluiu seus trabalhos no ano seguinte, exigindo a abertura dos arquivos da ditadura.

Desde então, o Estado brasileiro foi adiando seu dever de identificar os desaparecidos e investigar e punir os responsáveis por aqueles crimes. Em 2007, transitou em julgado sentença da justiça brasileira que o condenou a fazê-lo. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou o mesmo no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil. As duas ações foram movidas pelos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

O Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) tem realizado o trabalho de identificação das ossadas, apesar das condições materiais insuficientes para a tarefa, com base em acordos de cooperação técnica, homologados pela Justiça Federal de São Paulo, entre a Unifesp, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.

No entanto, em dezembro de 2021 a Unifesp foi notificada pelas empresas Novara Incorporação Ltda e da Gregório Empreendimento Imobiliário Ltda de que imóvel onde funciona o CAAF/Unifesp, em contrato de comodato, foi comprado e de que deve ser desocupado até 25 de junho de 2022.

Em razão da iminente desocupação e da falta de um espaço onde armazenar as ossadas, nós Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, pedimos que, na audiência de conciliação a ser presidida pelo Juiz Federal Eurico Zecchin Maiolino ino dia 11 de fevereiro de 2022, às 14 horas, no âmbito da ACP numero 85.2009.4.03.6100, tal matéria seja tratada e devidamente sopesada de forma a assegurar um local para o armazenamento e tratamento dos remanescentes ósseos.
Subscrevemos a demanda da Unifesp de que “o local de destinação, tanto deve servir a armazenamento e eventuais retomadas de análises, quanto a um lugar de memória da sociedade brasileira”. Esta é uma reivindicação histórica dos Familiares e da sociedade brasileira em sua demanda por memória, verdade e justiça, sem a qual não se pode realmente viver em uma sociedade democrática.

São Paulo, 03 de fevereiro de 2022

Redação

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