Francisco Celso Calmon
Francisco Celso Calmon, analista de TI, administrador, advogado, autor dos livros Sequestro Moral - E o PT com isso?; Combates Pela Democracia; coautor em Resistência ao Golpe de 2016 e em Uma Sentença Anunciada – o Processo Lula.
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Lembrar para não esquecer, lembrar para não repetir, lembrar para reparar, lembrar para fazer justiça, por Francisco Celso Calmon

Sem justiça não haverá a reconciliação da história do país e a impunidade continuará como marca da biografia brasileira.

Lembrar para não esquecer, lembrar para não repetir, lembrar para reparar, lembrar para fazer justiça

por Francisco Celso Calmon

Anistia não é esquecimento! Não é possível esquecer as ignomínias do autoritarismo e do terror do Estado. O eixo da campanha pela anistia foi o do retorno dos exiliados e o da denúncia dos crimes da ditadura – exigindo esclarecimento das mortes e dos desaparecimentos dos opositores da ditadura, com a devida responsabilização do Estado e de seus agentes.

O contexto histórico da lei da anistia de28 de agosto de 1979, lei nº 6.683.

Inquestionável que a Ditadura Militar surgiu com um golpe (1964), rasgou o diploma legal, cometeu monstruosa ilegalidade e com o tempo as ilegalidades se multiplicaram, sobretudo a partir do AI5, quando o Estado se tornou terrorista, fechou o Congresso, cassou parlamentares e ministros do STF, sequestrou, aprisionou, estuprou, torturou, julgou, condenou, baniu, matou, desapareceu com os corpos, cometeu todos os tipos de barbárie com os brasileiros que se insurgiram contra a sua tirania, e o fez com base em leis, tribunais e órgãos de exceção e repressão – era o terrorismo de Estado.

Toda lei é obra da política, da correlação de forças da época de sua gênese. A lei da anistia foi aprovada por 50,61% de um Congresso no qual figurava os senadores biônicos (não eleitos pelo povo e sim indicados pelo ditador e escolhidos indiretamente), os quais constituíam 32% do Senado Federal, mesmo assim a diferença fora de apenas 5 votos a favor do projeto do governo.

As baionetas ainda calavam a nação. A restrição à livre manifestação de opinião e à liberdade de imprensa permaneciam. Nesse clima restritivo, os juristas, cúmplices da tirania, fizeram uma corruptela jurídica quanto ao conceito de crime conexo.

Em primeiríssimo lugar há de se afirmar: o Estado não pode se autoanistiar!

A corruptela jurídica também não se sustenta. O conceito do Art.76 do CPC não agasalha em nenhuma hipótese a anistia ao torturador. E mesmo que admitisse tal corruptela, há o 2º parágrafo, excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, portanto, assim como foi aplicado a alguns militantes que permaneceram prisioneiros após a lei, também em tese atingiriam os agentes da ditadura.

Destarte, seja pelo conceito inusual de crime conexo por essa lei, sem força para derrogar o conceito do artigo 76 do CPP, seja pelos “crimes de qualquer natureza”, não recepcionados pela Constituição (EC 26/1985), a Lei 6.683, de 23 de agosto de 1979, não anistia os agentes do Estado que cometeram os crimes de lesa-humanidade.

Outrossim, a existência de duas propostas de lei desconstrói a existência de pacto, como afirmara Eros Grau, ex-ministro do STF, relator da matéria.

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Se houve algum pacto, foi firmado numa sala escura e secreta.

Um acordo não escrito, tácito, para ter legitimidade é preciso ter testemunhas. E não há. O voto do Ministro Eros Grau fica desmoronado! E o STF está obrigado a reinterpretação.

Há ainda os crimes de lesa-humanidade praticados após a Lei da Anistia, como o da carta-bomba que matou a secretária da OAB, em 27 de agosto de 1980, e o atentado ao Riocentro, em 30 de abril de 1981, portanto, mesmo admitindo a interpretação capciosa do STF, a lei não anistia os crimes de terrorismo ocorridos após 1979, como o do atentado no Riocentro, o da secretária da OAB e ataques com explosivos às bancas de jornais, inclusive pregado à época pelo atual genocida que ocupa o planalto.

O caminho inaugurado pela Lei da Anistia iria determinar o viés da vitimização. A tragédia humanitária tornaria o centro da justiça de transição no país, em vez da memória e verdade que levaram 33 anos para assumir um novo eixo, com a constituição da Comissão Nacional da Verdade, entretanto, sem chegar ao âmago, qual seja: a criminalização daqueles que cometerem os crimes de lesa-humanidade.

A lei da Anistia (depois da Constituição de 1988 e do Regime do Anistiado Político) obrigou a União à reparação a todos que foram prejudicados profissionalmente pela ditadura, voltando às suas carreiras como se na ativa estivessem permanecidos. Contudo, esses diplomas não diferenciaram o sofrimento daqueles que, independentemente do prejuízo profissional, sofreram as arbitrariedades do regime. A lei não indeniza pelos tempos de prisão, tortura, humilhação, sevícia e sequelas, mas, unicamente pelo dano profissional.

Quanto vale um choque elétrico? Um pau de arara, uma solitária? Uma simulação de fuzilamento? Ter a mãe ameaçada de tortura caso não entregue seus companheiros? E a namorada seviciada? E seus camaradas assassinados ao seu lado? E outros suicidados por suas mentes não mais lhes pertencerem? E os seus pertences virados butim? E como quantificar ficar impedido de trabalhar por conta do atestado de bons antecedentes? E a vida monitorada pelo SNI por 22 anos?

O Superior Tribunal de Justiça publicou no ano passado, 15/3/2021, a Súmula 647 que declara “serem imprescritíveis as ações indenizatórias por danos morais e materiais decorrentes de atos de perseguição política com violação de direitos fundamentais ocorridos durante o regime militar”. Com isso, reabre-se a possibilidade para os atingidos por atos de perseguição política ocorridos durante a ditadura, que lhes causaram danos morais ou materiais, proporem ações indenizatórias. Se a pessoa já teve deferida a indenização por dano profissional na esfera administrativa decorrente da Lei de Anistia, pode utilizar a documentação que instrui o processo administrativo para requerer judicialmente a indenização por dano moral.

Muitos estados criaram leis para reparar àqueles que em seus territórios foram atingidos pela ditadura, sendo que essas leis levaram em conta os danos morais e materiais de cada um alvejado pelas forças da repressão da época.

Mas não foram todos os estados, no Espirito Santo, por exemplo, entra governo e sai governo, mesmo com o PT participando, não houve a reparação e nem mesmo abertura dos arquivos dos órgãos de repressão e divulgação dos centros de tortura e os nomes dos criminosos das graves violações dos direitos humanos.

O STF e a reinterpretação da lei

É imprescindível ir além do drama humanitário das vítimas. É preciso criminalizar os agentes estatais que cometeram os crimes imprescritíveis de lesa humanidade.

Sem justiça não haverá a reconciliação da história do país e a impunidade continuará como marca da biografia brasileira.

A CNV em relatório final, entregue em 10/12/2014, pediu a revisão/revogação da Lei da Anistia, por considerar que ela tenha gerado impunidade a crimes cometidos que lesaram toda uma sociedade. E acentua que a norma vai de encontro à CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) que, em dezembro de 2010, afastou os dispositivos da lei nº 683/79, condenando o Brasil no caso da Guerrilha do Araguaia.

Houve duas provocações ao STF, visando reverter a interpretação anterior. Coube a ministro Fux matar nos peitos e há 12 anos engavetar.

Não havendo Justiça de Transição os vermes do passado permanecem a corromper a sociedade, como atualmente com o bolsonarismo, que representa o lixo dos remanescentes da linha dura da ditadura militar.

O presidente miliciano, ex-capitão, Bolsonaro, o vice, gal. Mourão, e os mais próximos ajudantes, como o ex-porta-voz da presidência, gal. Floriano Peixoto, o Chefe do GSI, general Augusto Heleno, eram oficias do Exército na década de 70 e ardorosos defensores da linha dura da ditadura militar, na época e no presente, constituindo um perigo para o que resta de democracia no Brasil.

Quando o povo der uma basta a este Estado policial de milicianos, militares e togas fascistas e o Estado democrático de direito for recomposto, a pauta memória/verdade/justiça deverá ser retomada com a instalação de uma Comissão Estatal Permanente de Memória e Reparação, conforme a proposta que fizemos na plataforma de programa de governo do Lula, bem como, o Supremo Tribunal Federal, tomar tenência e o ministro Fux devolver a matéria para finalmente a lei da anistia ser reinterpretada corretamente.

Afinal, pedir vista e ficar 12 nos para analisar, depõe contra o STF e é uma demonstração de que pedido de vista não é para ter tempo de exame minucioso, mas para postergar, empulhar, transgredir, empurrar, não mais nos peitos, mas com a barriga.

Seguramente Bolsonaro e outros militares do seu governo devem ter informações a prestar à futura COMISSÃO ESTATAL PERMANTE DE MEMÓRIA E REPARAÇÃO, quanto aos mortos e desaparecidos pela ditadura militar e a responder pelos seus delitos atuais.

O governo bolsonarista não conseguiu apagar o passado. A verdade histórica é mais forte e sobrepujará sempre as mentiras. E virá cada vez mais ao conhecimento da sociedade para assombrar àqueles que terão que prestar contas à História e à Justiça.

Ousar lutar, ousar vencer, sempre!

Francisco Celso Calmon é advogado, administrador; membro do canal Resistência Carbonária; Coordenador do Fórum Memória/ Verdade do ES; ex-coordenador nacional da Rede Brasil Memória Verdade e Justiça.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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