Os 50 anos do Comício da Central do Brasil

Do O Globo

50 anos do golpe: o dia em que Jango apostou tudo e perdeu
 
Comício da Central pelas reformas foi tentativa frustrada de garantir sobrevivência do governo
 
JULIANA CASTRO

RIO — Há exatamente 50 anos, milhares de pessoas se espremiam na Central do Brasil, no Rio, para ouvir as palavras do então presidente João Goulart, à época envolvido com a tentativa de implementar as reformas de base que vinham sendo bloqueadas pelo Congresso. Não à toa, o evento convocado para mobilizar as massas em apoio ao presidente e suas iniciativas entrou para a História como o Comício das Reformas ou Comício da Central.

O ato foi marcado para acontecer três dias antes da abertura do ano legislativo no Congresso, ocasião em que Jango mandaria uma mensagem aos parlamentares. O edital de convocação para o comício deixava claro seus objetivos: demonstrar a disposição do governo em implementar as reformas agrária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral. Há divergências sobre quantos atenderam à convocação, e a estimativa de público variou de 100 mil a 300 mil pessoas.

Autor do livro “João Goulart, uma biografia” e professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jorge Ferreira lembra que, com a legislatura que se iniciou em 1963, Jango tinha uma base que equivalia a 57% das 409 cadeiras da Câmara. Eram parlamentares do partido do presidente, o PTB, e do PSD. Quando o projeto de emenda constitucional a fim de que houvesse reforma agrária foi para o Congresso, em maio de 1963, os dois partidos não se entenderam. O PTB não queria que os proprietários de terra fossem indenizados. Já o PSD julgava que deveria haver alguma indenização. Sem o entendimento na base, a reforma foi rejeitada.

Jango, então, tentou pressionar o Congresso com a ajuda do povo. Foi programada uma série de comícios. O primeiro deles, o da Central, foi o único a acontecer. O último, agendado para o Dia do Trabalho em São Paulo, assim como os outros, ficou no papel.

— Quando ele faz o Comício da Central do Brasil, está sinalizando que vai governar com as esquerdas, e, para as direitas, isso é inadmissível. Aí, elas partem para o golpe — explica Ferreira.

Durante o processo de organização do comício, o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda, e outros tantos setores da sociedade se mobilizavam contra sua realização. Na madrugada do dia do evento, houve uma tentativa de incendiar o palanque. Ao todo, 2.500 homens da Polícia do Exército foram escalados para fazer a segurança do comício.

Em cima do palanque, estavam figuras como o deputado Leonel Brizola e os governadores Miguel Arraes (Pernambuco), João Seixas Dória (Sergipe) e Badger da Silveira (Estado do Rio). O presidente chegou ao comício às 19h44m, depois de ter assinado, no Palácio Guanabara, dois decretos: o que dava início às expropriações fundiárias e o que permitia a encampação de refinarias. Ao lado da primeira-dama Maria Teresa Goulart, Jango iniciou seu discurso às 20h daquele histórico 13 de março de 1964. Dias depois, ele seria deposto pelos militares.

— Quem foi ao comício jamais poderia imaginar que dentro de 20 dias iria ter um retrocesso. O evento foi muito bem organizado, com muita participação — afirmou o jornalista Pedro Porfírio, de 70 anos.

Em sua fala, o presidente defendeu as reformas agrária e eleitoral, além da revisão da Constituição de 1946. Vez ou outra, o chefe do Gabinete Civil da Presidência, professor Darcy Ribeiro, soprava algo no ouvido de Jango, e o presidente passava a falar sobre outro tema ainda não abordado no discurso. Jango anunciou que regulamentaria o preço extorsivo de apartamentos e residências desocupados. No dia seguinte, o presidente assinou o decreto estipulando o tabelamento do preço de aluguéis e imóveis em todo o país.

— Ele estava altamente apoiado. Ali, naquele comício, era o povo de verdade — afirmou Fernando de Santa Rosa, de 80 anos, que foi ao evento a serviço, como capitão-tenente da Marinha, quando era assessor do superintendente da Companhia Nacional de Navegação Costeira. — Foi uma pena aquilo não ter vingado porque houve uma interferência exógena — completou o ex-militar, cassado das Forças Armadas pelo AI-1 e preso por duas vezes, em 1964 e 1965.

Os setores mais conservadores reagiram com indignação às palavras e aos gestos do presidente. Poucos dias depois, em 26 de março, centenas de marinheiros liderados pelo marinheiro José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, recolheram-se ao Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio, em protesto contra restrições impostas à categoria. As autoridades civis recusaram-se a punir os sublevados, atitude que desnutriu ainda mais o governo Goulart. Em 31 de março de 1964, os militares tomaram o poder.

 

Redação

19 Comentários

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    1. Eles venceram, infelizmente.

      Eles venceram e infelizmente conseguiram o que queriam. Veja a luta dos últimos 10 anos para tirar um pouquinho deles. Hoje mesmo estão trabalhando , quer dizer falseando com sempre, desinformando, para destruir a Venezuela, numa boa. 

      Veja a maifestação irada deste participante da nobreza russa, aquela que falava francês, nunca o russo, nem sabia.

    2. As reformas necessarias não

      As reformas necessarias não são as do comicio da Central, é a tributaria, a trabalhista, a sindical, a da administração publica, a politica, a educacional.  Reforma agraria no mundo atual não faz qualquer sentido, a agricultura familiar já tem 5 milhões de propriedades abastecendo as cidades e o agronegocio salva a balança comercial do Brasil, os “”assentamentos”” custaram por baixo 60 bilhões de reais para pouco ou nada.

  1. Tabelar o preço dos imoveis,

    Tabelar o preço dos imoveis, emcampar refinarias privadas, eram poucas e pequenas, como se isso tivesse algum sentido, reforma agraria sem indenização à moda cubana e ainda queriam que desse certo, é inacreditavel, é muita falta de noção da realidade.

  2. O fato do comicio ser na

    O fato do comicio ser na frente da estação da Central do Brasil tem toda uma simbologia, inves de planos realistas para recuperar a Central como ferrovia, algo que seria de grande importancia para o Pais, apela-se para a mais pura demogogia DESTRUTTIVA, desmanchar o que funciona, as refinarias por exemplo, inviabilizar a propriedade privada em imoveis urbanos e rurais, combate à inflação que já era altissima nem foi objeto do comicio, NADA QUE FOSSE CONSTRUTIVO foi abordado, só teses para desfazer o que já estava feito e ainda acham que aquilio iria dar certo.

    Naquele bloco de pessoas não tinha nenhum gestor, organizador de projetos importantes, só demagogos e delirantes como Brizola e Darcy, cercando um Presidente que detestava governar e que nunca governou coisa alguma.

     

    1. Dào o golpe e ainda se orgulham

      Em qualquer relatório dos “homes”a redação é a  mesma. 50 anos de golpe contra o povo; acham maravihoso.

    2. A trollaiada voltou, já não

      A trollaiada voltou, já não estão com medo de pegar vírus, ou não querem se arriscar a não receber o soldo no final do mês, portanto, voltam a vomitar o conteúdo do estômago da direita no Blog. Se a ditadura tivesse sido essa maravilha para o país, segundo a direita, estaria aí até hoje.

    3. ” E ainda acham que aquilo

      ” E ainda acham que aquilo iria dar certo.”

       

      Os reacionários, como voce, sempre acham que são apenas eles  que sabem sobre “aquilo que daria certo” para uma nação.

      Menosprezam o saber de todos, dos estudiosos, dos especialistas, do povo.

      Depois de destruir um pais, deixar uma inflação que chegou em seguida aos 80%, uma divida externa descomunal, a ditadura ainda encontra defensores, como voce, que se acha mais sabio que os outros.

      E sem pudor de defender um regime que torturou ate bebes, sequestrou, torturou, assassinou.

      O senhor se acha, acredita que sabe sobre “aquilo que daria certo”, mas, na verdade, não sabe nada.

      Fala de coisas que não conhece.

      O tal comicio foi na frente da Central, porque ela ficava ao lado do ministerio da guerra.

      Foi a ultima tentativa de mostrar aos militares, que preparavam o golpe, que o povo apoiava as reformas propostas pelo governo.

      E entre a sua soberba “sabedoria” e a do “demagogo e delirante Darcy Ribeiro”, não perderia um segundo para escolher.

  3. Foi roubado

    O globo é bem safado, participou ferozmente do “roubo” contra o Jango e vem dizer que ele apostou e perdeu. O pig não tem vergonha nenhuma.

    A manchete correta seria: O dia que Jango apostou e nós, o pig, roubamos do povo e o derrotamos. E a sub manchete: Não contava com a nossa corrupção e astúcia. 50 anos contra povo e estamos ai firmes. Nem imposto sonegado pagamos.

    Se um dia o pig tiver que pagar, em dinheiro vivo, o que roubou deste país, ganharemos um novo pré-sal.

    Por falar nisso, o globo já pagou o 1 bilhão sonegado? Quantas escolas e hospitais poderiam ser feitos…

    Viva a nova musa do pig: depois de cachoeira, e demostenes, agora o brilhante eduardo. Miais um eduardo.

  4. Manifestante “perigoso” será preso em BH antes da Copa

    Manifestante “perigoso” será preso em BH antes da Copa

    Danilo Emerich – Hoje em DiaImprimir   

    Samuel Costa/Hoje em DiaManifestante "perigoso" será preso em BH antes da CopaPistolas para imobilizar pessoas, capacetes com câmera e escudos foram comprados pela PM

    As forças de segurança de Minas querem tirar de circulação, na Copa do Mundo, vândalos que potencialmente podem se infiltrar em manifestações populares. Até 176 pessoas que respondem por crimes cometidos nos protestos de junho de 2013 em Belo Horizonte correm o risco de ter a prisão preventiva decretada, estratégia das autoridades para prevenir a violência.

    A medida, confirmada Nesta terça-feira (11) pelo assessor extraordinário da Copa do Mundo da Polícia Militar, coronel Antônio Bettoni, era cogitada pelo secretário de Estado de Defesa Social, Rômulo Ferraz, há pelo menos um mês.

    As prisões preventivas serão embasadas nos artigos 311 e 312 do Código de Processo Penal. Delegados, Ministério Público e juízes estaduais e federais serão acionados para viabilizar a retirada dos “alvos” das ruas.

    Não foi divulgado quantas detenções serão solicitadas. Mas manifestantes considerados “de risco” e que ficarem livres da prisão serão monitorados e detidos caso se envolvam em novo ato ilegal.

    Durante a Copa das Confederações, 176 pessoas foram identificadas e qualificadas pela Polícia Civil por cometerem crimes. Em 59 casos, os acusados foram indiciados por vandalismo, furto, formação de quadrilha e dano ao patrimônio.

    Mas o presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas (OAB-MG), Adilson Rocha, vê com ressalva a tática das autoridades.

    “A prisão preventiva só deve acontecer se houver prova de que essas pessoas, efetivamente, vão voltar à prática de vandalismo. Considerando somente o que aconteceu há um ano, um juiz dificilmente irá conceder o pedido. E, se deferir positivamente, instâncias superiores poderão derrubar a decisão”, diz o criminalista.

    TOLERÂNCIA ZERO

    As prisões preventivas fazem parte do “pacote” para prevenir e combater a violência na Copa do Mundo. Desde 2011, são investidos R$ 130 milhões na segurança do evento.

    Até o início do Mundial, serão instaladas cem novas câmeras de vigilância no entorno do Mineirão e vias de acesso ao estádio.

    Até os capacetes dos militares terão filmadoras. Dois helicópteros com raios infravermelhos, para captar cenas inclusive no escuro, também serão usados.

    Férias de todos os policiais militares e civis, em junho, foram canceladas. Haverá ainda reforço do efetivo em BH, com pessoal do interior. A tropa da PM deverá chegar a 5.500 homens só na linha de frente das manifestações. Balas de borracha, escudos e pistolas de emissão de impulso elétrico, para imobilizar pessoas, foram compradas.

    “Todos os recursos disponíveis de força serão usados, caso necessário. Mais de 10 mil militares receberam cursos diversos, como tratamento ao turista, manipulação de explosivos, identificação de suspeitos e até contra o atos de terrorismo”, diz o coronel Bettoni. l

    Treinamento com a polícia de elite dos EUA

    Exatos 1.354 policiais civis de Minas estão sendo treinados por agentes do Serviço Secreto dos Estados Unidos (EUA) e da Polícia Federal norte-americana, o FBI, para combater o crime organizado, atos de terrorismo e falsificação de moedas estrangeiras.

    Segundo o delegado Gustavo Borletta de Almeida, da Central de Flagrantes (Ceflan), espera-se um aumento de circulação de moedas falsas durante o Mundial, além de maior frequência de golpes e até sequestros-relâmpagos contra turistas.

    No ano passado, 1.114 ocorrências de crime com moeda falsa foram registradas em Minas, 127 delas na capital. Em 2012 foram 1.237, sendo 154 em BH.

    “Nossa preparação é focada no dólar, mas também receberemos orientações sobre o euro e até o peso argentino. Há, ainda, grande possibilidade de existir pessoas vendendo ingressos falsos para os jogos”, disse o delegado.

    AJUDA

    Guardas municipais também reforçarão a segurança na Copa do Mundo. Porém, segundo o secretário Municipal Extraordinário para a Copa do Mundo, Camilo Fraga, o efetivo deverá atuar prioritariamente no trânsito.

    “Nossa atenção maior é para a mobilidade urbana. Serão 500 ônibus para transportar o torcedor até o estádio. Temos planos alternativos, caso as manifestações interditem vias e inviabilizem o BRT/Move na avenida Antônio Carlos, por exemplo”.

    Já o vice-presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de BH, Anderson Rocha, não acredita em manifestações na Copa do Mundo na mesma proporção das do ano passado.

    “A proteção das lojas será individual, porém temos apenas expectativas positivas, principalmente de vendas”, disse. l

  5. Serra e o comício

    Direita e esquerda incentivavam presença militar na política, diz Serra

    FABIANO MAISONNAVE
    DE SÃO PAULO

    13/03/2014 03p0Mais opçõesPublicidade

    “A maioria dos parlamentares está comprometida com interesses antinacionais. Entretanto, compensando a não aprovação da reforma agrária, existe uma conscientização cada vez maior dos camponeses.”

    O trecho acima, recuperado pelo recém-lançado livro “1964”, de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, faz parte do discurso de cinco minutos do então presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), José Serra, no Comício da Central do Brasil.

    O evento, que completa 50 anos nesta quinta-feira (13), marcou a guinada à esquerda do governo João Goulart e contribuiu para desatar o golpe militar que o tiraria da Presidência, pouco mais de duas semanas mais tarde.

    À época com apenas 21 anos, Serra é o único orador vivo dos que discursaram naquele dia, deputados, sindicalistas e o próprio Jango.

    Leia, a seguir, trechos da entrevista concedida por Serra à Folha sobre aquele momento histórico.

    *

    PARALELO ENTRE A ÉPOCA DO GOLPE E O PRESENTE

    Não há paralelo. Você pode fazer análise da história do que aconteceu. Afinal de contas, são 50 anos, e há um mal-entendido do Brasil com a sua história em relação a esse episódio. Até hoje, é presente. Eu fico imaginando, em 1964, discutir as causas da Primeira Guerra Mundial, que havia sido 50 anos antes. É um passado mais do que transitado em julgado, mas, no nosso caso, continua presente, por incrível que pareça.

    Mas o contexto histórico é completamente diferente, as forças em jogo também são diferentes, enfim, o processo é outro. E também não há mais a presença do fator militar, que era uma constante na história brasileira no século 20 até a redemocratização. Quer dizer, dominou o século 20. E hoje a presença militar não existe na política.

    Presença militar que era incentivada tanto pela direita como pela esquerda. Eu, aliás, muito cedo, quando me mudei para o Rio, em meados de 1963, me incomodava um pouco isso. Sempre achei que, se você politiza o militar, eles acabam arbitrando.

    O COMÍCIO E O GOLPE

    Eu acho que o comício acelerou a preparação do golpe. Agora, qual foi o principal efeito nesse ponto de vista? Foi a Marcha da Família, no dia 19 de março, em São Paulo. A marcha foi um ingrediente essencial porque deu confiança de que havia respaldo popular para o golpe. Dizem que a marcha tinha 500 mil, como dizem que o comício tinha 200 mil.

    Digamos que cada um teve metade disso: é muita gente. Só a mobilização da classe média alta não explica. Não havia só 250 mil, 300 mil pessoas de alta classe média pra desfilar na rua. A classe média baixa também saiu pra desfilar.

    DISCURSO COMO PRESIDENTE DA UNE

    Por causa do comício da Cinelândia [em agosto de 1963, quando Serra criticou Jango], Jango estava receoso do meu discurso naquele dia. O Hércules Corrêa, do Partidão [PCB], estava dirigindo o comício todo e me falou nas tratativas: “Vamos apresentar você para a multidão, você diz ‘boa noite’ e pronto”. Eu disse que sim. Mas, na hora, comecei a falar, e era impossível me interromper na frente da multidão, até porque era um discurso muito aplaudido. Então esses cinco minutos foram assim.

    Eu estava convencido de que viria o golpe. Não confiava em que o esquema militar do Jango pudesse frustrá-lo nem achava que as forças populares teriam condições de resistir. Isso é o que tinha dentro do meu pensamento e me dominava. Claro que fiz um discurso pra levantar, e não pra puxar pra baixo. Mas a questão básica era da mobilização antigolpe. A ênfase principal no discurso foi que havia um golpe em andamento, que tínhamos de nos mobilizar.

    Eu também saudei uma medida do Jango referente às universidades. A grande batalha que a UNE tinha era com relação à ampliação do número de vagas das universidades. Tínhamos menos de 1% da população em idade universitária estudando no ensino superior. Então a grande batalha era para turbinar isso. Era uma grande bandeira que eu mesmo levei ao Jango logo que tomei posse. E o Jango já tinha avançado nisso, tanto que aumentou o número de vagas. Eles caminhavam para dobrar o número de estudantes no primeiro ano.

    DECRETO DA REFORMA AGRÁRIA

    Durante a tarde, fui chamado pra uma reunião na Supra (Superintendência de Política Agrária) com o seu presidente, João Pinheiro Neto. O Jango ia anunciar o decreto à noite e havia um impasse. O que era o decreto? Permitia desapropriar terras ao lado de estradas federais. O problema era a distância em relação à estrada. Havia duas distâncias. E eles queriam saber a nossa opinião. O CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) estava lá, eu não me lembro quem mais.

    Obviamente, eu optei distância maior, pela ampliação. Mas era um assunto sobre o qual não tínhamos a menor ideia. Essa medida da Supra foi extremamente improvisada. O decreto tinha várias ressalvas e exceções. Eu disse: “Aqui, tem dois problemas. São tantas ressalvas, como isso vai ser implantado? Segundo, e onde não tem estrada federal?” Aí alguém ponderou que, politicamente, o decreto era importante.

    TENSÃO NO COMÍCIO

    A primeira coisa que me impressionou no comício era que toda a segurança, todo o aparato era militar. Sempre era muito complicado na Guanabara porque a polícia era do [governador oposicionista Carlos] Lacerda. E era truculenta.

    O CGT, nesse dia, eles colocaram o Oswaldo Pacheco Ele era marítimo, estivador. Era o mais carismático do CGT. E era impressionante, um homem de grande carisma. Como havia receio de um atentado contra o Jango de algum prédio lá da Central do Brasil, ele ficou do lado do Jango, pra ser anteparo.

    Ficaram a [mulher de Jango,] Maria Thereza, que estava deslumbrante, o Jango e ele. Do meu ângulo, eu via mais de perto da Maria Thereza, e eles estavam um pouco acima. E quem fazia o discurso ficava um pouco mais alto.

    E estava lá o Pacheco de proteção do Jango. Está em todas as fotos. Pouca gente deve saber disso, mas o que passou para o país era que o CGT estava tutelando o Jango, quando na verdade o estava protegendo. Acho que foi o melhor discurso que o Jango fez na vida. Inclusive com improviso, o que não é fácil.

    JANGO E AS ESQUERDAS

    A Frente de Mobilização Popular (FMP) hoje serve colocar todo mundo junto. Mas, na verdade, era só para reuniões, não era uma coisa orgânica. A composição era variável, mas tinha sempre a UNE, o CGT, o [então deputado gaúcho, Leonel] Brizola e a Frente Parlamentar Nacionalista, com gente de todos os partidos, até da UDN (União Democrática Nacional, de direita).

    O Jango, a partir de janeiro, pendeu muito mais para a linha da FMP. Não fez mudanças no ministério, mas resolveu partir pra diante na estratégia de pressionar Congresso, a bandeira das reformas e tudo o mais. O comício veio no contexto disso. Agora, a proximidade maior dele nesse período era com a linha do PCB (Partido Comunista Brasileira), que era também o CGT. Dentro da FMP, o Jango se aproximou muito mais da linha do Partidão.

    Havia uma disputa implícita com o pessoal do Brizola. A UNE era mais neutra, embora houvesse Partidão na UNE. Mas era uma entidade estudantil, não era alinhada. Em geral, na FMP, havia esse tipo de polarização. Mas não havia sempre briga, era uma coisa de tendência. Nessa mesma época, prosperava a Frente Progressista do San Tiago Dantas. Ele era moderado para o contexto da época, até porque pressupunha a participação do centro, do PSD e de outras forças para segurar o processo. Mós não combatemos, mas o Partidão rejeitou a proposta do San Tiago.

    Por trás de tudo, havia uma inflação que, em janeiro e fevereiro, já era de mais de 7% ao mês, o que, anualizado, dava mais de 100%. A situação sempre ameaça escapar do controle quando tem isso. E o Jango radicalizava no sentido de que, para deter a inflação, precisava das reformas. Na verdade, eram níveis diferentes, porque uma inflação alta não se combate no curto prazo com reforma agrária.

     

  6. “poderia imaginar que dentro

    “poderia imaginar que dentro de 20 dias iria ter um retrocesso”

    Para mente revolucionária , o futuro utópico é um objetivo que será inexoravelmente atingido, o futuro utópico é uma certeza; não pode ser mudado.

    Por outro lado, a mente revolucionária considera que o passado pode ser mudado (e ferozmente denunciado!) através da reinterpretação da História por via do desconstrucionismo ideológico.

    Por isso todo dia tem uma nova carga para mudar o passado.

    Em 1964 a corrida era quem dava o golpe primeiro.

    Uma das táticas dos comunistas é afirmar que não são comunistas, mas eles se denunciam antes de tudo pelo desprezo pela propriedade privada que é o mau primevo do mundo de acordo com sua crença.  

  7. Discurso de Jango na Central do Brasil em 1964

    Discurso de Jango na Central do Brasil em 1964

    Na sexta-feira, 13 de março de 1964, o presidente João Goulart defendeu as reformas de base propostas por seu governo em um grande comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Cerca de 200 mil pessoas participaram do ato político.

    Foto: Arquivo Nacional / Correio da Manhã

    Confira a íntegra do discurso:

    Devo agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício, ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.

    Dirijo-me a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a grandeza deste país.

    Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.

    Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios, mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente.

    Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.

    Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.

    Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reinvindicações.

    A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

    A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.

    Ainda ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.

    Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.

    Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reinvindicações.

    Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

    Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

    O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

    É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

    O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

    Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

    Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços.

    Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.

    Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.

    Não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação.

    Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.

    Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.

    Está nisso o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da nossa emancipação.

    É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.

    São certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de seu povo brasileiro.

    De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas do progresso.

    E podeis estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo – operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e social deste país.

    O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.

    A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.

    Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos frutos deste desenvolvimento.

    Não, trabalhadores; sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo. Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.

    O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.

    Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.

    Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.

    Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.

    Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro.

    O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável.

    Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve bemeficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

    Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.

    Reforma agrária com pagamento prévio do latifundio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.

    Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

    Graças à colaboração patriótica e técnica das nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação.

    E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.

    No Japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?

    Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.

    No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.

    Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.

    Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.

    Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.

    A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.

    A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.

    Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.

    Assim, a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e melhor remuneração ao trabalhador urbano.

    Interessa, por isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.

    Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?

    O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.

    Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo daprodução, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social.

    No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele trabahou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso país.

    A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um miseravel padrão de vida.

    E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente aproveitáveis. E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária, para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.

    Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não forem efetuadas as reformas de estrutura de base exigidas pelo povo e reclamadas pela Nação.

    Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo.

    Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou. Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.

    Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo. Espero que os senhres congressistas, em seu patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é, pelo caminho reformista.

    Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reinvindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas destes país. Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares.

    A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.

    Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.

    Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.

    O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particurlamente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.

    Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.

    Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.

    Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

    Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando outras providências de fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes populares.

    Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.

    E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder, perante a lei, pelo seu crime.

    Aos servidores públicos da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso afirmar que suas reinvindicações justas estão sendo objeto de estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para com o país.

    Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei que o povo também apertará sua vontade contra aqueles quenão reconhecem os direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.

    Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista.

    Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.

    Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.

  8. Reformas de Base, o Brasil interrompido

    COMÍCIO DA CENTRAL DO BRASIL, 50 ANOS – Repasso este belíssimo e certeiro discurso do então Presidente João Goulart, na íntegra, que deveria ser lido e relido por todos os cidadãos e cidadãs deste país. Se as Reformas de Base não tivessem sido interrompidas pelo golpe de estado, o Brasil de hoje seria muito mais justo com o seu povo. Este discurso é uma verdadeira aula magna de história, de economia e de política. Viva João Goulart! Viva as Reformas de Base! 

    Discurso de João Goulart no comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, Rio de Janeiro:

    “Devo agradecer em primeiro lugar às organizações promotoras deste comício, ao povo em geral e ao bravo povo carioca em particular, a realização, em praça pública, de tão entusiasta e calorosa manifestação. Agradeço aos sindicatos que mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros que, neste instante, mobilizados nos mais longínquos recantos deste país, me ouvem pela televisão e pelo rádio.

    Dirijo-me a todos os brasileiros, não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas, mas também aos milhões de irmãos nossos que dão ao brasil mais do que recebem, que pagam em sofrimento, em miséria, em privações, o direito de ser brasileiro e de trabalhar sol a sol para a grandeza deste país.

    Presidente de 80 milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam bem entendidas por todos os nossos patrícios.

    Vou falar em linguagem que pode ser rude, mas é sincera sem subterfúgios, mas é também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente.

    Aqui estão os meus amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país.

    Chegou-se a proclamar, até, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda fosse a dona da democracia, e a proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a democracia se tiver que ser defendida por tais democratas.

    Democracia para esses democratas não é o regime da liberdade de reunião para o povo: o que eles querem é uma democracia de povo emudecido, amordaçado nos seus anseios e sufocado nas suas reivindicações.

    A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia anti povo, do anti-sindicato, da anti-reforma, ou seja, aquela que melhor atende aos interesses dos grupos a que eles servem ou representam.

    A democracia que eles querem é a democracia para liquidar com a Petrobrás; é a democracia dos monopólios privados, nacionais e internacionais, é a democracia que luta contra os governos populares e que levou Getúlio Vargas ao supremo sacrifício.

    Ainda ontem, eu afirmava, envolvido pelo calor do entusiasmo de milhares de trabalhadores no Arsenal da Marinha, que o que está ameaçando o regime democrático neste País não é o povo nas praças, não são os trabalhadores reunidos pacificamente para dizer de suas aspirações ou de sua solidariedade às grandes causas nacionais. Democracia é precisamente isso: o povo livre para manifestar-se, inclusive nas praças públicas, sem que daí possa resultar o mínimo de perigo à segurança das instituições.

    Democracia é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do seu dever, não só para interpretar os anseios populares, mas também conquistá-los pelos caminhos da legalidade, pelos caminhos do entendimento e da paz social.

    Não há ameaça mais séria à democracia do que desconhecer os direitos do povo; não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo e de seus legítimos líderes, fazendo calar as suas mais sentidas reivindicações.

    Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que de norte a sul, de leste a oeste levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria.

    Ameaça à democracia não é vir confraternizar com o povo na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo explorando seus sentimentos cristãos, mistificação de uma indústria do anticomunismo, pois tentar levar o povo a se insurgir contra os grandes e luminosos ensinamentos dos últimos Papas que informam notáveis pronunciamentos das mais expressivas figuras do episcopado brasileiro.

    O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

    É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particularmente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

    O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

    Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranquilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

    Perdem seu tempo os que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou pessoais; como perdem igualmente o seu tempo os que esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra os interesses do povo. Ação repressiva, povo carioca, é a que o governo está praticando e vai amplia-la cada vez mais e mais implacavelmente, assim na Guanabara como em outros estados contra aqueles que especulam com as dificuldades do povo, contra os que exploram o povo e que sonegam gêneros alimentícios e jogam com seus preços.

    Ainda ontem, trabalhadores e povo carioca, dentro da associações de cúpula de classes conservadoras, levanta-se a voz contra o Presidente pelo crime de defender o povo contra aqueles que o exploram nas ruas, em seus lares, movidos pela ganância.

    Não tiram o sono as manifestações de protesto dos gananciosos, mascarados de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas esperanças e seus propósitos de restabelecer a impunidade para suas atividades anti-sociais.
    Não receio ser chamado de subversivo pelo fato de proclamar, e tenho proclamado e continuarei a proclamando em todos os recantos da Pátria – a necessidade da revisão da Constituição, que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento desta Nação.

    Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.

    Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.

    Está nisso o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que presta, neste instante, manifestação ao Presidente que, por sua vez, também presta conta ao povo dos seus problemas, de suas atitudes e das providências que vem adotando na luta contra forças poderosas, mas que confia sempre na unidade do povo, das classes trabalhadoras, para encurtar o caminho da nossa emancipação.

    É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional.

    São certamente, trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta surdez e tanta cegueira, ser os responsáveis perante a História pelo sangue brasileiro que possa vir a ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos ao progresso do Brasil e à felicidade de seu povo brasileiro.

    De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que o processo democrático siga um caminho pacífico, para que sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas do progresso.

    E podeis estar certos, trabalhadores, de que juntos o governo e o povo – operários , camponeses, militares, estudantes, intelectuais e patrões brasileiros, que colocam os interesses da Pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e social deste país.

    O nosso lema, trabalhadores do Brasil, é “progresso com justiça, e desenvolvimento com igualdade”.

    A maioria dos brasileiros já não se conforma com uma ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também pelos mais humildes.

    Vamos continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas estradas, pela implantação de mais fábricas, por novas escolas, por mais hospitais para o nosso povo sofredor; mas sabemos que nada disso terá sentido se o homem não for assegurado o direito sagrado ao trabalho e uma justa participação nos frutos deste desenvolvimento.

    Não, trabalhadores; sabemos muito bem que de nada vale ordenar a miséria, dar-lhe aquela aparência bem comportada com que alguns pretendem enganar o povo. Brasileiros, a hora é das reformas de estrutura, de métodos, de estilo de trabalho e de objetivo. Já sabemos que não é mais possível progredir sem reformar; que não é mais possível admitir que essa estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação nacional para milhões de brasileiros que da portentosa civilização industrial conhecem apenas a vida cara, os sofrimentos e as ilusões passadas.

    O caminho das reformas é o caminho do progresso pela paz social. Reformar é solucionar pacificamente as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pelas realidades do tempo em que vivemos.

    Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que sofre no interior de nossa Pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual lutamos.

    Ainda não é a reformulação de nosso panorama rural empobrecido.
    Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.
    Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema agrário brasileiro. 

    O que se pretende com o decreto que considera de interesse social para efeito de desapropriação as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes públicos federais e terras beneficiadas por obras de saneamento da União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso e intolerável. 

    Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

    Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.

    Reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. É negócio agrário, que interessa apenas ao latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o decreto da SUPRA não é a reforma agrária.

    Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária. Sem emendar a Constituição, que tem acima de dela o povo e os interesses da Nação, que a ela cabe assegurar, poderemos ter leis agrárias honestas e bem-intencionadas, mas nenhuma delas capaz de modificações estruturais profundas.

    Graças à colaboração patriótica e técnica das nossas gloriosas Forças Armadas, em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus patrícios espero que dentro de menos de 60 dias já comecem a ser divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios aos lados das ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o sacrifício da Nação. 

    E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reivindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.

    No japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?

    Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.

    No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal.

    Na índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses. 

    Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo. 

    Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.

    A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reivindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.

    A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.

    Os tecidos e os sapatos sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo em que isso acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças, porque não tem dinheiro para comprar.

    Assim, a reforma agrária é indispensável não só para aumentar o nível de vida do homem do campo, mas também para dar mais trabalho às industrias e melhor remuneração ao trabalhador urbano.

    Interessa, por isso, também a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa progredir, em sua indústria e no bem-estar do seu povo.

    Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando dos quinze milhões de brasileiros que trabalham a terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são proprietários?

    O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária, não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo. É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e que haveremos de conquistar.

    Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo da produção, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente subordinado às relações entre o homem e a terra. Num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50 por cento da produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranquilidade social. 

    No meu Estado, por exemplo, o Estado do deputado Leonel Brizola, 65% da produção de arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras para plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele trabalhou para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano é medieval é o grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o custo de vida para as classes populares em nosso país.

    A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a Nação submetida a um miserável padrão de vida.

    E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras economicamente aproveitáveis. E é claro que não poderíamos começar a reforma agrária, para atender aos anseios do povo, nos Estados do Amazonas ou do Pará. A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.

    Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja seu esforço, e até mesmo o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não form efetuadas as reformas de estrutura de base exigida pelo povo e reclamadas pela Nação.

    Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta reforma é indispensável e porque seu objetivo único e exclusivo é abrir o caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem o nosso povo. 

    Não me animam, trabalhadores – e é bom que a nação me ouça – quaisquer propósitos de ordem pessoal. Os grandes beneficiários das reformas serão, acima de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles, trabalhadores, desejo entregar uma Nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, pacificamente, os graves problemas que a História nos legou. Dentro de 48 horas, vou entregar à consideração do Congresso Nacional a mensagem presidencial deste ano.

    Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo. Espero que os senhores congressistas, em seu patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é pelo caminho reformista.

    Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do povo brasileiro, em nome destas 150 ou 200 mil pessoas que aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional para que venha ao encontro das reivindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da Nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente para melhores dias. Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas destes país. Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares.

    A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas, e Destilaria Rio Grandense passam a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.

    Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n. 2.004, lei que foi inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.

    Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do nosso povo, o grande e imortal Presidente Getúlio Vargas.

    O imortal e grande patriota Getúlio Vargas tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado pelos seus ideais. E eu, particularmente, vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo brasileiro.

    Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas pelo monopólio do petróleo. O povo estará sempre presente nas ruas e nas praças públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da emancipação nacional.

    Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional, estão igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio democrático fundamental, de que todo alistável deve ser também elegível.

    Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária, reclamada pelos estudantes brasileiros. Pelos universitários, classe que sempre tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares nacionalistas.

    Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando outras providências de fundamental importância para a defesa do povo, especialmente das classes populares.

    Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da Nação. É o que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares. Apartamento no Brasil só pode e só deve ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam tranquilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.

    E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para seja cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos, não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil. Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem o tamanho de seu poder, esteja ele em Olaria ou na Rua do Acre – hão de responder, perante a lei, pelo seu crime.

    Aos servidores públicos da Nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público, que também não me têm faltado com seu apoio e o calor de sua solidariedade, posso afirmar que suas reivindicações justas estão sendo objeto de estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja cumprir o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu para com o país.

    Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento de nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei que o povo também apertará sua vontade contra aqueles que não reconhecem os direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a Nação.

    Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e não faltará com seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista.

    Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas que preocupam a Nação e afligem todos os nossos patrícios. Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e gloriosas Forças Armadas da Nação.

    Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil.”

  9. Para historiadora, sociedade brasileira ainda cultiva silêncios

    Para historiadora, sociedade brasileira ainda cultiva silêncios sobre a ditadura

    Em sua exposição no seminário “1964: 50 anos depois”, em São Paulo, a historiadora Heloisa Starling, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), listou o que ela classifica como “silêncios” da sociedade atual a respeito do período ditatorial. 

    A reportagem é publicada pelo jornal Diário de Guarapuava, 11-03-2014.

    O primeiro desses silêncios, segundo ela, diz respeito à participação dos empresários no golpe e nas estruturas que sustentavam a ditadura, como o aparato repressivo. O segundo é sobre as ações dos militares contra alguns setores específicos da sociedade: “Sabemos pouco sobre o que aconteceu com os camponeses e nada sobre o que fizeram com os índios”, afirmou.

    Outra lacuna são os arquivos documentais de órgãos de segurança e inteligência daquela época, “material que os militares até hoje se recusam a entregar”. O último silêncio, segundo ela, é com relação ao alcance e as estruturas do próprio aparato de repressão.

    Ao lado do também historiador Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Starling participou da quarta mesa do seminário, que é promovido pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em parceria com o Sesc São Paulo.

    A historiadora aproveitou a ocasião para apresentar dados já apurados de uma pesquisa que está conduzindo sobre o aparato de repressão. Para tentar desfazer a ideia de que a tortura só teria começado a ser usada de forma sistemática após 1968, com o AI-5 (Ato Institucional nº 5), ela reuniu todos os registros em jornais de denúncias de tortura feitas em instituições militares entre 1964 e 1968.

    Conforme seu levantamento, os casos já eram constantes e numerosos em todos os anos pesquisados. Começou com 168 registros em 1964, caiu para 35 em 65, mas pulou para 66 no ano seguinte, 50 em 67, e foi a 85 no último ano pesquisado.

    Essas ocorrências ocorreram em 36 quartéis ou outras instalações militares em sete Estados, pelo que conseguiu mapear até agora. E com modos sempre muito parecidos: pau de arara, afogamento e choques elétricos entre as principais modalidades de violação.

    “A repressão pode ter se expandido ou se modificado durante os anos, mas a matriz dessa repressão foi a mesma desde 1964”, afirmou.

    Utopia autoritária

    Carlos Fico fez uma explanação sobre o que ele chama de “utopia autoritária” dos militares: a ideia de que o Brasil poderia se transformar numa potência se alguns obstáculos como a corrupção e os políticos demagogos fossem removidos, segundo sua definição. Essa utopia, disse, é o que serviu de motivação para a repressão.

    O historiador divide os militares em dois grupos: o dos saneadores, os radicais que queriam “fazer uma operação limpeza para prender, exilar e até matar, se fosse preciso”; e o dos pedagógicos, os que defendiam o desenvolvimento de projetos para suprir o que eles julgavam como deficiências do país.

    O projeto saneador, segundo ele, é o que explica a tortura e outros instrumentos que inicialmente eram ocultados, como a censura à imprensa. Seus pilares eram a espionagem e a polícia política. Em documentos, tratavam dessas iniciativas como atos “revolucionários”, afirmou. Esse projeto cresceu com a chegada de Costa e Silva à presidência, em 1967, e foi “vencedor” com o AI-5, disse.

    Já o projeto pedagógico, diferentemente de seu concorrente, era orgulhosamente assumido. “Para esses, o brasileiros eram despreparados, não sabiam votar, não tinham noções básicas nem de higiene”, afirmou, lembrando do Sugismundo, personagem de um desenho animado criado para campanhas educativas na TV. Seus instrumentos eram a censura moral e a propaganda política, explicou.

    Fico criticou também o que ele chama de “discurso de vitimização” em relação à ditadura, um comportamento que, segundo ele, simplifica a história em uma mera disputa entre militares e opositores que tentaram combater o regime. “Esse discurso deixa de incluir no rol das vítimas muitas pessoas que foram atingidas e que nem sabem disso”, afirmou.

    O historiador citou um exemplo vivenciado por ele mesmo anos atrás. Contou que ao pesquisar arquivos da época, encontrou o caso de um engenheiro da Petrobras que deixou de ser promovido para um importante cargo graças a um relatório confidencial sobre ele produzido internamente por agentes da empresa que colaboravam com a repressão. “Esse engenheiro foi uma vítima, mas nunca soube disso. E ele nem era militante de esquerda, era até bastante discreto, só que era homônimo de um militante”, explicou.

    Fico contou que procurou o tal engenheiro para mostrar aquela documentação. “Me arrependi muito de ter feito isso”, afirmou. “Ele viu aquilo, ficou em silêncio por uns 30 segundos e aí começou a chorar”, afirmou.

    Em outra mesa de debates realizada, os pesquisadores Marcos Napolitano (USP) e Ismail Xavier (Cebrap e USP) discutiram as manifestações culturais de contestação ao regime militar.

    As exposições, que ocorrem no Teatro Anchieta, região central de São Paulo. No dia 25 haverá uma sessão especial com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e os sociólogos Francisco de Oliveira e José Artur Giannotti.

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