Fukushima x Eletrobras, o que temos a ensinar e a aprender, por Luiz Alberto Melchert

Desde que se começou a falar em privatização da Eletrobras que se vem denunciando a rasteira estratégica que se daria na soberania nacional

Fukushima x Eletrobras, o que temos a ensinar e a aprender

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Enquanto a Netflix leva o heroísmo de funcionários civis na série “Três Dias que Mudaram Tudo” e o historiador Serhii Plokhy publica Átomos e Cinzas, o Brasil amarga a privatização da Eletrobras, talvez a maior demonstração de falta de pensamento estratégico mesclada com negação do amor à Pátria. Esse assunto deve ser alvo de uma reflexão profunda, seja por este ou por outro meio de comunicação. Ter acedido a essas duas fontes concomitantemente não foi coincidência. Tratou-se do espírito investigativo do cientista social. Se um fenômeno chama a atenção via fonte popular, é preciso confirmá-lo por outra de cunho mais acadêmico, hábito este nem sempre encontrado na produção de material jornalístico.

Desde que se começou a falar na possibilidade de privatização da Eletrobras que se vem denunciando a rasteira estratégica que se daria na soberania nacional. É que não se pode dar a um gaiato qualquer o poder de desligar os linhões como chantagem para elevar tarifas ou qualquer atitude selvagem de proteção aos interesses capitalistas. Se esse gaiato tiver dado um tombo no mercado para amealhar o valor destinado à compra da estatal, a coisa fica ainda mais séria.

Tendo assistido a extremamente bem produzida série de vídeos, algumas coisas chamaram a atenção, algumas em âmbito tecnológico, outras no campo político.

No âmbito tecnológico, considerando tratar-se de um projeto dos anos 1950, quando se acreditava que o átomo estaria sempre sob controle e que a energia nuclear seria o futuro, o projeto falhou em alguns pontos. Os principais foram o fato de as bombas destinadas à circulação de água no núcleo de fissão, que produz o calor destinado à geração de eletricidade, serem alimentadas pela energia produzida pela própria usina, contando com geradores a diesel, seja para emergências, seja para manter a usina potencialmente funcional em caso de desligamento programado. A segunda falha crítica de projeto é que os geradores estavam abaixo do nível do mar, portanto, sujeitos a inundações catastróficas para um motor à combustão interna.

Quando houve o terremoto as usinas desligaram-se e os geradores começaram a funcionar automaticamente, mantendo o sistema em condições seguras, até que o vagalhão – tsunami como está na moda – provocado pelo maremoto devastasse o local. Por estarem abaixo do nível do mar, os geradores pararam, provocando o desastre. É que, por tratar-se de unidade autônoma, a eletricidade desviada de outras usinas só chegou às bombas vinte dias depois.

Em âmbito político, tanto a série como o livro evidenciam o fato de o sistema elétrico japonês ser composto por unidades de geração e distribuição autônomas, tanto que o desligamento daquela usina afetaria diretamente o fornecimento a Tokio levando dias para que a energia proveniente de outras regiões fosse alternada para lá. Some-se a isso o fato de a TEPCO ser uma empresa privada, apesar de crítica como o acidente veio a demonstrar. Como a investigação parlamentar japonesa de 2012 demonstrou, a usina continuava no mesmo padrão tecnológico de quando foi construída, inclusive no que tangia aos métodos de controles, excessivamente manuais. Isso contraria a premissa de que o investimento flui mais facilmente na iniciativa privada. Na verdade, o investimento reduz o retorno imediato, o que não coaduna como rentismo preponderante na economia mundial moderna.

É claro que existe um órgão regulador estatal, assim como nós temos o ONS (Operador Nacional do Sistema), mas o livro e a série mostram com clareza o conflito entre o público e o privado.

É nesse ponto em que entra a Eletrobras como  aula de estratégia. Como nossa geração de energia é basicamente hidrelétrica, o país viu-se obrigado a interligar todo o sistema elétrico para manter o fornecimento independentemente da alternância das chuvas, hora no norte, hora no sul de um país com extensão continental. Essa necessidade fica ainda mais evidente com a adoção de fontes como a eólica e a solar, igualmente sujeitas aos ciclos das estações. Assim, exceto as microgeradoras, todas as demais entregam energia à rede, incluindo as usinas nucleares de Angra dos Reis. Nesse caso, a energia que move as bombas de água vem prioritariamente da rede nacional, para onde também vai a produzida pelas usinas em questão. O funcionamento das bombas é mantido pela rede mesmo que as usinas nucleares sejam desligadas, seja por problemas técnicos, seja por manutenção programada. É preciso que também a rede seja cortada para que o sistema de backup tenha de ser acionado.

 Assim, geradores a diesel, também presentes nas instalações brasileiras só entram em funcionamento em emergência muito mais raras que no modelo das equivalentes japonesas. É isso que nos permite dormir sossegados, apesar de as usinas estarem numa região com mais de quarenta milhões de habitantes contando com a Grande São Paulo, bem como o corredor que o une ao Grande Rio. A privatização da Eletrobras pode pôr nosso modelo em risco na medida em que o fornecimento de energia para as usinas nucleares passe a ser fruto de negociação, que pode não ser bem sucedida, obrigando a adoção do modelo japonês, apesar de evidentemente falho.

Temos a aprender o que a Lava a Jato fez não passou de um crime de lesa pátria. Ao contrário do que se fez aqui, a administração pública japonesa, com a TEPCO obrigada a pagar os danos causados pelo desastre, o parlamento japonês aprovou a Lei do Fundo de Facilitação da Responsabilidade por Danos Nucleares em 2012 para proteger a TEPCO da falência. Sim, cabe preservar as empresas e os empregos punindo as pessoas, ao contrário do que se fez com a hecatombe promovida pela República de Curitiba.

Só resta trabalhar pela reversão da privatização da Eletrobras, se não pelos absurdos introduzidos nos seus estatutos, pelo menos, pelas questões estratégicas cuja importância o desastre de Fukushima contribuiu para evidenciar.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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