Desmistificando mitos neoliberais, por Juliano Giassi Goularti e Alcides Goularti Filho

do Brasil Debate

Desmistificando mitos neoliberais

por Juliano Giassi Goularti e Alcides Goularti Filho

A modelagem neoclássica, ao tratar ‘contradições’ enquanto ‘falhas pontuais no equilíbrio geral’, divorcia-se do mundo real e concreto, permanecendo em níveis de abstração. O mito mais lapidado é a argumentação de que um aumento nos salários automaticamente significa queda na taxa de lucro

O mito exerce “uma inegável influência sobre a mente dos homens que se empenham em compreender a realidade social”, escreveu Celso Furtado. Tratemos de desmistificar alguns dos principais mitos da corrente neoclássica que dá sustentação teórica e política ao neoliberalismo.

Em particular, as profecias dos neoliberais foram consagradas pelo Consenso de Washington. Tomadas como verdades absolutas e incontestáveis, tais medidas têm governado a economia política.

Operando como faróis de milha que iluminam caminhos obscuros, a doutrina neoliberal, valendo-se dos princípios da economia clássica de Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill e da neoclássica de William Stanley Jevons, Alfred Marshall, Léon Walras, Carl Menger – que centraram sua análise no indivíduo isento de relações sociais, que busca atender ao seu próprio interesse e que se orienta por suas preferências subjetivas – sustentam os seguintes mitos: i) equilíbrio geral (oferta = demanda); ii)concorrência perfeita (mercado atomístico, homogeneidade do produto, livre entrada e saída e não-rivalidade); iii) mão invisíveliv) agentes racionais (que preveem o futuro para antecipar riscos); v) aumento do salário significa queda nos lucros; e, vi) laissez-faire. Em princípio, estas são “camisas de força” da abordagem neoliberal (1).

Por meio do desenvolvimento da produtividade social do trabalho, do progresso técnico e do desdobramento do sistema financeiro, a estrutura econômica e social foi revolucionada, deixando para trás todas as épocas anteriores.

Percorrendo uma sequência de transformações correntes e condicionadas umas pelas outras, em perspectiva histórica, haja vista que o capital é uma estrutura em movimento, podemos identificar alguns traços gerais da evolução do capitalismo ao longo de suas etapas, tais como: i) crescente concentração e centralização do capital; ii) socialização das esferas industrial e financeira; iii) égide do capital financeiro; iv) constituição das sociedades anônimas; v) aumento da diversificação e internacionalização das empresas;vi) progresso técnico (inovação tecnológica); vii) propensão à mobilidade do capital; viii) crescimento da produtividade social do trabalho; e, ix)constituição do mercado mundial. Para tanto, um dos traços mais marcantes do capitalismo contemporâneo são a crescente complexidade e diversidade de situações no âmbito das empresas (indústria e bancos), dos mercados (real e fictício) e das relações de trabalho (abstrata e concreta).

Na forma que acabamos de tratar, o afã do arcabouço teórico neoclássico apresentava incapacidade de lidar com a rivalidade existente nos mercados (concorrência), com o processo de inovação técnica (destruição criativa) e com as crises perturbadoras (ex. 1929 e 2007).

Dito de outra maneira, qualquer um destes três fatores (concorrência, inovação e crise) desmorona o arcabouço teórico neoliberal como um castelo de cartas. O capital é “uma contradição viva”, é uma “contradição em processo” que tem um duplo caráter; um “progressivo” e outro “antagônico” (2).

Isto equivale dizer que a modelagem neoclássica ao tratar “contradições” enquanto “falhas pontuais no equilíbrio geral” divorcia-se do mundo real e concreto, permanecendo em níveis de abstração. Por ser um “organismo vivo” e “contraditório”, a economia, que é política, não se enquadra dentro de uma modelagem econométrica perfeita e estática. Destarte, na atualidade, o mito mais lapidado resume-se à argumentação de que um aumento nos salários automaticamente significa queda na taxa de lucro, isto é, há uma equivalência entre baixos salários e taxa lucro.

É certo que o capital tende a negar constantemente trabalho pelo seu constante progresso técnico e pela socialização das forças produtivas promovidos pela grande indústria monopolizada. O trabalho tende a “aparecer como uma base miserável” (3), mas em hipótese alguma significa uma equivalência entre baixos salários e taxa de lucro.

Mas duas observações requerem atenção para desconstruir este mito: i)dentro do ciclo do capital-dinheiro [D-M (FT, MP) … P … M`-D`], do ciclo do capital-produtivo [P … M`-D`. D-M (MP, FT) … P] e do ciclo do capital-mercadoria [M`- D-M (MP, FT) … P … M`] o valor do capital não se valoriza porque o capitalismo é uma permanente “contradição em processo” (lei de valorização do capital produz inexoravelmente a destruição a desconexão da metamorfose do valor em valorização, mais-valor) (4); e, ii) que por hipótese alguma não é por causa do aumento dos salários que os lucros despencam, até porque um aumento nos salários faz aumentar a massa de consumo do trabalhador, que, consequentemente, ampliará a margem de lucro do capital.

Já advertia Marx, o “capital é o limite de si mesmo”. Assim, a acumulação capitalista que caminha na frente dos lucros esbarra na sua própria “anarquia”, isto é, pela força ou fraqueza da concorrência, pelo descompasso do investimento, pela incerteza quanto ao futuro, pela acumulação de capacidade ociosa não planejada e pela ausência de crédito (5).

Neste sentido, a produção de “mais-valia” é o objeto imediato e o motivo determinante da produção capitalista. Portanto, se a “mais-valia” não for consumada na venda da mercadoria, seja qual for o motivo, terá o trabalhador sido explorado, porém sua realização nula (6). A acumulação e a formação da taxa de lucro não se esbarram nos salários, esbarram em si mesma e no seu movimento “progressivo” e “antagônico”.

A essa altura do século, o homo oeconomicus, dotado de pleno conhecimento e saber notório, calculista e ao mesmo tempo egoísta, insiste em negar a presença do Estado na economia, confunde desenvolvimento com intervencionismo e cultiva o mito dos mitos de que a circulação de mercadorias condiciona um equilíbrio entre as vendas e compras (porque cada venda é compra e vice-versa).

Em verdade, se isso significa que o número das vendas de mercadorias efetivamente realizadas é igual ao mesmo número de compras, tal postura é equivocada, porque estamos falando de uma economia capitalista sofisticada de instituições monetárias, financeiras e de uma elevada complexidade industrial que por sua natureza é uma “contradição viva em processo”.

Como já advertiu a professora Maria da Conceição Tavares, o equilíbrio no capitalismo é cada vez mais “regulável” por relações de poder, e não pela tautologia da oferta = demanda.

Se os agentes “que povoam os mercados sabem exatamente qual é a estrutura da economia e, usando a informação disponível, são capazes de antecipar sua evolução provável” (7) são racionais, por que não previram a crise de 2007? Por que quando a rainha Elizabeth II ousou perguntar aos acadêmicos e professores da London School of Economics por que não se anteciparam da crise eles se calaram? (8) Embora simples, estas perguntas expõem as fraturas dos mitos.

Pois bem, os neoclássicos “vêem árvores mas não vêem florestas” e ignoram que a desvalorização do capital diz respeito a sua própria natureza. Em todo o caso, o futuro é incerto, o que por si só desmistifica por terra seus mitos, o que prova que o capitalismo é uma “contradição em processo” e ao mesmo tempo regado de “incerteza”. Para tanto, dada a incapacidade de lidar com o tempo e a incerteza, é uma blasfêmia afirmar que o futuro já está determinado.

Do mesmo modo, o Estado não serve apenas para garantir ações corretivas, como defendem. É impossível pensar o capitalismo sem a coerção estatal. Aqui somos obrigados a fazer outra pergunta aos devotos da ideologia neoclássica: como o capitalismo por si só, isto é, sem a intervenção do Estado, teria se reestruturado da crise e do trauma de 1929 e 2007 – dentre outras? Como nos ensinou Braudel, “O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado” (9). Desse modo, fica resolvida a questão de que sem a presença estatal seria praticamente impossível o desenvolvimento do capitalismo.

Dado o avanço do processo de desenvolvimento contraditório do regime do capital, deve ser cômico se não trágico estar fora da realidade. A economia, por se uma estrutura em permanente movimento, não se prende a “camisa de força” nem muito menos se reduz a mitos que estão desconectados do plano material.

Notas:

(1)Austeridade fiscal (isto é, superávit primário – corte de gastos), desregulamentação dos mercados (comercial e financeira), privatizações, flexibilização das relações trabalhistas (terceirização) também compõem o conjunto dos mitos neoliberais.

(2)Frederico Mazzucchelli, A contradição em processo (1985). Sempre que mencionarmos “contradição em processo”, “progressivo” e “antagônico” estamos nos referindo ao professor Mazzucchelli.

(3)Karl Marx, Grundrisse (2011).

(4)Karl Marx, O Capital – livro II (2014).

(5)Maria da Conceição Tavares, Ciclo e Crise (1998).

(6)Karl Marx, O capital – livro III (1989).

(7)Luiz Gonzaga Belluzzo, O capital e suas metamorfoses (2013).

(8)David Harvey, O enigma do capital (2011).

(9)Fernand Braudel, A dinâmica do capitalismo (1987).

Juliano Giassi Goularti – É doutorando em Desenvolvimentismo Econômico, IE-Unicamp

Alcides Goularti Filho – É professor da UNESC e doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp

Redação

5 Comentários

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  1. É preciso inventar teses para

    É preciso inventar teses para convencer a sociedade que não estão sendo roubados. Se estas medidas fossem simples e lógicas, ficaria clara a subversão da ordem. Mas como as medidas são complexas, com muitas nomes e contextos.. Fica fácil enganar o cidadão comum e convencê-los da “sabedoria” dos ecnomistas. Um cirurgião que fosse cortar a pele de um paciente e desejasse “se mostrar” para uma platéia; não faria simplesmente o corte. Daria passos detalhados desde o material utilizado, os cuidados com higiene… os nomes científicos da camada superficial da pele que iria cortar (epiderme)… E se quisesse enganar a plateia da necessidade do corte daquela pele para ganhar dinheiro além das palavras difíceis de objetos simples, teria de embasar os motivos diante de naturezas complexas do corpo humano e de formação da pele e sua consequente cicatrização… A necessidade do corte limpo e bem-esterelizado e etc… Meu irmão foi em um denstista japonês uma vez… Digo japonês pois meus pais acreditaram na idoneidade do mesmo devido a descendência nipônica e a fama dos orientes de seres esforçados e honestos… O japonês convenceu meus pais diante de uma cárie… Que era necessário fazer o tratamento do canal dentário em todos os dentes inferiores para “garantir” que não fosse acometidos pela cárie. Meus pais ingenuinamente acreditaram na lorota e providenciaram diante do plano médico o procedimento. Meu irmão é muito higiênico e escova os dentes muitas vezes e forçando a escova sobre os dentes, ocasionando até o “estrago” das escovas precocemente. Uma cárie em um dente ocasionou em um caro tratamento de todos os outros dentes com outros procedimentos de limpeza e tudo mais. Meus pais hoje se arrependem do ocasionado… mas o que se pode fazer agora? Isso para ver como um “especialista” pode enganar alguém para aumentar seus lucros e levar dinheiro, até prejudicando os outros para isso.

  2. O neoliberalismo nunca existiu no Brasil

    O neoliberalismo é conceito dos EUA de Reagan e da Inglaterra de Thatcher, e atualmente o termo já se encontra em desuso, exceto na Amérila Latina, onde tornou-se sinônimo de tudo o que há de ruim no mundo. O neoliberalismo nunca existiu por aqui, e de modo geral chama-se de neoliberalismo os inevitáveis cortes que devem ser feitos por qualquer economia que gasta mais do que arrecada.

    Se você define a priori o neoliberalismo como tudo o que há de ruim, então nada mais fácil do que reunir argumentos para provar que o neoliberalismo é ruim. É uma variante da conhecida falácia do espantalho, onde o espantalho, ao invés de um interlocutor, é um conceito,

  3. Pelo que me lembro, meus pais

    Pelo que me lembro, meus pais disseram que o dentista informou que o tratamento era novo e era praticamente um corretivo contra as cáries. Conseguiu convencer meus pais a fazer esta maudade… E isso podemos ver na economia… A mídia que também está por trás ou a mídia vai com as outras, informam que estas medidas são feitas em outros países e completamente naturais… Ocasionando um rombo em nosso país aonde um pouco mais de 3% vai para educação, o mesmo para saúde e 50% do orçamento para o bolso destes “entendidos” no assunto. Mas o pior que nem está abordagem podem mais fazer, pois temos uma das piores taxas do mundo, completamente abusiva e mesmo assim conseguem justificação… A questão aqui no Brasil é a mais pura maldade mesmo. Como uma das 10 maiores economias do mundo, não é possível estarmos nas piores colocações em educação, saúde, ciência e tecnologia do mundo. É uma maudade sem tamanho mesmo. E coloco mau com “u”, pois é completamente intecional.

  4. Pra mim a economia

    Pra mim a economia neoclássica nunca passou de uma tremenda fraude. Só acredita nela os muitos primários, toscos, mal intencionados, desonestos e ignaros. Para acreditar na eficácia dos seus dogmas tem que ter fé, muita fé mesmo.

     

    1. no topo da piramede

      Todos as pessoas que conheci e que tem simpatias pelo neo liberalismo ou liberalismo classico têm uma coise em comum: estão np topo da piramede. Assim é facil ser a favor.

      Como não estou no topo, mas no meio, não tenho grandes simpatias nem razões para apoiar. Pouco tenho a ganhar e muito a perder!

      O Chile é vendido como um exemplo, pelo contrario, entendo que o Chile é um caso para se ficar desconfiado com essas teorias e praticas. 

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