Elucubrações sobre a natureza da moeda IV, por Luiz Alberto Melchert

Os modelos microeconômicos tendem a tratar produtos como simplesmente produtos. A escola neoliberal trouxe considerável avanço à microeconomia.

Elucubrações sobre a natureza da moeda IV

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Enquanto Adam Smith considerava que a riqueza poderia ser medida pelo montante de trabalho que se poderia arregimentar e controlar, concomitantemente, no Brasil-Colônia dizia-se que a riqueza se media pelo número de escravos que um donatário poderia comprar e manter. Em essência, era a mesma ideia. A diferença é que o capitalismo baseia-se no trabalho assalariado que permite que os valores se destinem a remunerar capital e trabalho. Enquanto isso, no Brasil colonial posto que a terra pertencia ao rei e o que estivesse sobre ela ao concessionário de sua posse e uso, essa distinção não seria possível. Isso mostra que a economia como ciência nasceu desrespeitando o princípio da universalidade que norteia o entendimento dos fenômenos.

Supondo que um senhor de engenho nunca tenha ouvido falar em Adam Smith e, mesmo assim, entendia como riqueza a capacidade de executar trabalho produtivo, a riqueza como fenômeno foi observada, porém, não entendida cientificamente. É que capital e trabalho são indissociáveis, por mais que a automação se alastre pela atividade humana. Ora, se os fatores de produção são indissociáveis, sua remuneração se confunde de alguma forma. Ao contrário da máxima que nos é impingida nas escolas de economia, é temerário afirmar que trabalhadores ganham salários e empresários auferem lucros que, por sua vez, são o prêmio pela assunção do risco a que seu capital tenha sido submetido.

O capital, enquanto dinheiro, via juros, pode-se remunerar mesmo que não se preste à produção. Isso faz pensar que a remuneração do capital, independentemente de como obtida, seja o prêmio pela assunção de algum tipo de risco. Se há uma dissociação possível é da remuneração produtiva x remuneração não produtiva do capital. Teoricamente, a remuneração não produtiva é equivalente aos juros pagos em dado período, deduzindo-se a somatória dos lucros obtida na mesma economia, no mesmo recorte temporal. É que, em sendo o lucro a remuneração do capital produtivo e que, para medi-lo deduzam-se os juros pagos pelas atividades produtivas, o excedente em juros há de corresponder ao capital não produtivo.

A teoria monetária geralmente aceita, contrariando o argumento da matéria anterior, faz crer que a variação da taxa de juros atue prioritariamente sobre o consumo, fazendo o consumidor dirigir maior parte de sua renda à poupança. Considerando que o crédito ao consumidor seja um serviço, como todos o produto, está sujeito ao conceito de elasticidade[1] em que os juros são seu preço. Aí entra a ideia de ilusão monetária, que advém da ignorância do consumidor acerca do montante em juros que pagará pela antecipação do consumo. Isso significa que o consumidor continuará tomando empréstimos independentemente da taxa, tornando, em economês, a elasticidade do preço do financiamento muito próxima de zero. Pela lei da oferta e da demanda, em que a quantidade ofertada cresce consoante o preço, as linhas de crédito, bem como o valor disponível, tendem a crescer junto com a elevação da taxa de juros. Assim, o limitador da oferta de crédito é a taxa de risco, que também cresce com a taxa de juros, porém, não na mesma proporção. O crédito para antecipação de consumo só será restringido quando o a taxa de risco mais que compensar a taxa de juros. Isso torna extremamente discutível a ideia de que a variação de juros atue prioritariamente sobre o consumo.

Existe ainda um outro aspecto a se considerar. Os modelos microeconômicos tendem a tratar produtos como simplesmente produtos. A escola neoliberal trouxe considerável avanço à microeconomia. Foi nessa é poca que se dividiram os mercados entre os resolvidos por preço[2] e os resolvidos por diferenciação[3]. Há também os mercados definidos pela disponibilidade de financiamento, ou seja, cujo consumo não compromete a capacidade imediata de pagamento, porém a futura, afetando o consumo de outros bem que, a rigor, não têm nada a ver com o que o crédito se refere. Assim, o crédito não reduz somente a elasticidade-preço do bem financiado, como pode aumentar a mesma elasticidade de outros bens em períodos futuros.

A partir do momento em que o Banco Central eleva juros, o Estado precisará lançar mais papéis de risco zero para rolar sua dívida, seja para remunerar com a nova taxa os títulos pós-fixados, assim como os novos destinados a quitar os anteriores que estão vencendo. Isso deixa o Estado num dilema, ou mantém a oferta de serviços públicos e lança novos papéis, ou mantêm o dispêndio e reduz a oferta de serviços públicos. Na primeira opção, cresce a exposição à variação da taxa de juros; no segundo caso, haverá escassez de capital, impulsionando para cima a taxa de juros, criando um ciclo vicioso que, em dado momento, transforma-se em recessão. Aceitando como verdadeira a tendência de a variação da taxa de juros afetar mais rápida e profundamente a oferta do que a demanda, há um risco considerável de o resultado ser uma estagflação[4]

A ideia de controlar o nível da atividade econômica via taxa de juros vem sendo contestada há algumas décadas, mas o Banco Central continua trabalhando como se a moeda tivesse quantidade determinada em circulação, como se fosse uma mercadoria passível de ser estocada. Seja pelos argumentos aqui expostos, seja por outros já conhecidos que não constam deste texto, seja pelos que ainda não foram discutidos com a profundidade necessária a serem considerados como sérios, o assunto não pode sair dos departamentos de pesquisa, não importando se das escolas ou das empresas. Assim como o láudano era vendido como remédio e hoje é proibido por ser veneno, pode ser que as futuras gerações de economistas vejam com uma certa graça o que hoje discutimos com tamanha seriedade.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.


[1] Variação percentual da quantidade consumida em função da variação de uma variável como preço, renda do consumidor entre outras.

[2] Mercados em que a quantidade consumida varia consoante o preço, entre eles, o mercado de comodities.

[3] Mercados em que qualidade e marca definem o preço do produto, como automóveis, smartphones, roupas etc.

[4] Quando a economia fica estagnada num ambiente inflacionário.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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  1. A PREOCUPAÇÃO QUASE PARANOICA DO MERCADO EM RELAÇÃO A INFLAÇÃO NÃO DECORRE DA BUSCA PELO EQUILÍBRIO DAS CONTAS PÚBLICAS, OBJETIVAMENTE, O QUE INTERESSA AO MERCADO FINANCEIRO, É QUE A INFLAÇÃO NÃO SE DISTANCIE DAS METAS PROJETADAS, E ACABE AFETANDO, POR UM LADO, AS EXPECTATIVAS DE LUCROS E POR OUTRO, O PERIGO, AINDA QUE REMOTO, DE CALOTE DA DÍVIDA. ESTAS SÃO AS RAZÕES QUE LEVAM O MERCADO A CONTROLAR O BCB E SUA DIRETORIA(NO CASO DO BRASIL). PERDOEM-ME OS NOSSOS SÁBIOS ARTICULISTAS QUE CONSIDERAM QUE EXISTE UMA VISÃO EQUIVOCADA DOS NEO-LIBERAIS SOBRE O COMBATE AO AUMENTO DA INFLAÇÃO, O QUE EXISTE EFETIVAMENTE É UM MÉTODO BEM ARTICULADO PARA OBTENÇÃO DE GANHOS FÁCEIS USANDO COMO DESCULPA, O COMBATE A INFLAÇÃO. BASTA VERIFICAR SE NAS ÚLTIMAS 3 DÉCADAS, O MERCADO FINANCEIRO JÁ AMARGOU ALGUM PREJUÍZO USANDO ESTE MÉTODO. NO DIA QUE TAL OCORRER ELES VÃO MUDAR RAPIDAMENTE PARA OUTRA TEORIA. O BRASIL PODE SAIR PERDENDO PRO NÃO CONSEGUIR RESOLVER SEUS PROBLEMAS CRÔNICOS, MAS O FAMIGERADO MERCADO SEMPRE SAIRÁ GANHANDO, DOA QUEM DOER OU MORRER.

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