Elucubrações sobre a natureza da moeda I, por Luiz Alberto Melchert

Numa moeda cunhada em ouro, o valor intrínseco é o ouro, o valor extrínseco é o número de unidades nela estampado e a percepção fiduciária é a efígie do emissor

Josh Appel

Elocubrações sobre a natureza da moeda I

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Para entender bem o texto que se segue, é preciso relembrar três conceitos pertinentes a qualquer ativo  no seu sentido mais amplo, valor intrínseco, valor extrínseco e percepção fiduciária. O valor intrínseco é o que há de concreto acerca do ativo. Num contrato futuro de soja, por exemplo, a soja física prometida é o valor intrínseco, enquanto o número de unidades estampado na face do documento representa o valor extrínseco. A confiança em que esse contrato seja honrado é percepção fiduciária. Numa moeda cunhada em ouro, o valor intrínseco é o ouro, o valor extrínseco é o número de unidades nela estampado e a percepção fiduciária é a efígie do emissor, que tanto pode ser o rosto de um rei como um brasão de uma república. O valor fiduciário serve para evitar que se tenha de destruir o objeto para saber se a moeda é mesmo de ouro, ou se carrega peso condizente com seu valor extrínseco. Embora esses conceitos não sejam óbvios, não são novos. No Brasil, isso se discute desde 1688, no que resultou na carta régia de 1695, em que se legalizou a cunhagem de moedas no Brasil. Na verdade, já se cunhavam moedas em Taubaté desde a descoberta de ouro em Minas Gerais, só que não tinham curso legal, ou seja, não se consideravam como moedas oficiais, valendo muito mais pelo seu peso do que pelo seu valor de face ou a credibilidade de seu emissor. As patacas peruanas circulavam livremente na nossa economia por serem de prata e valiam pelo seu peso, pouco importando sequer seu nome ou em que unidades de medida eram referenciadas.

O mais famoso entre os economistas clássicos a admitir que a moeda não é um ativo em si mesmo, porém, uma confissão de dívida, foi o escocês e fundador do banco da França, John Law (1671 – 1729). Ainda no início do século XVIII, ele procurou demonstrar que toda a moeda tem origem em algum dispêndio do Estado e, mesmo que tenha valor intrínseco, depende de credibilidade, seja na fixação da unidade, seja pela capacidade de atuação como reserva de valor.

Foi durante a estada de John Law na França, fugindo de suas dívidas no reino Unido, que Luís XIV ficou conhecido como Rei do Nariz de Bronze. Isso se devia a que, para pagar as contas do Estado, emitiam-se moedas de bronze banhadas a ouro. A efígie do rei tinha o nariz saliente, cujo desgaste evidenciava a fraude. Mesmo assim, seu valor extrínseco continuava o mesmo e o uso de um metal menos nobre não alterou o seu poder de compra. Essa experiência não foi única. Segundo Dorival Teixeira, cem anos depois de Luís XIV, D. João VI aplicou prata oriunda da Bolívia, via argentina, à moeda emitida no Brasil para compensar a queda de produção de ouro de Minas Gerais. Resumindo, a efígie do rei valia mais do que o peso em ouro. Justamente por isso é que John Law ainda influencia os atuais teóricos de Economia Monetária que entendem que a moeda sempre teve e sempre terá âmbito fiduciário preponderante, até de forma crescente na medida em que se torna escritural, seja física, seja eletronicamente.

Metri (2012) faz uma extensa revisão bibliográfica acerca da discussão sobre o papel da moeda como confissão de dívida. Essa revisão, porém, não expõe que a circulação de moeda, que os economistas clássicos, neoclássicos, liberais, neoliberais e ultra liberais atribuem ao acúmulo de riqueza, vem de algum dispêndio do estado, cuja posição é liquidada pelos tributos, como querem os militantes da Nova Teoria da Moeda. Aliás, estes últimos costumam dizer que os tributos destroem moeda, o que é bastante bizarro, haja vista que, se destruição fosse, a circulação teria seu circuito interrompido, fazendo com que circulação deixasse de ser.

Nem mesmo os raspadores da Idade Média destruíam moeda de metal precioso puro, eles só se valiam de seu valor intrínseco estar mais elevado do que o extrínseco para gerar valor adicional, artifício de que também se valeram governantes adicionando metais menos nobres à liga. Ora, se uma libra de ouro fundido comprava mais do que uma libra em moedas cunhadas, o raspador limava as bordas até que os valores se igualassem.

 Partindo da premissa de ser destruição, a moeda teria um período de vida, nascendo pelo dispêndio do Estado e morrendo pelo pagamento de impostos. A moeda seria, portanto, um ser vivo, como tal capaz de se reproduzir, fertilizada pelas transações entre os diversos agentes econômicos. Dessa forma, haveria nascimento fora do Estado, porém, a morte viria somente pelo pagamento de impostos. Ora, como os tributos matam mais moeda do que o dispêndio do estado gerou, na medida em que se repõe o valor destruído, o endividamento público tende naturalmente a crescer.

Se o conceito for o de que o pagamento de impostos liquida a posição devedora do Estado, a ideia de circulação de moeda fica mais plausível porque não terá havido destruição, porém, uma mudança de posição contábil sem alteração do montante de valor contido na economia como um todo.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

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Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

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  1. No tempo em que eu fazia manutenção de computadores da IBM, eu viajava quase que mensalmente aos EUA para comprar placas eletrônicas. Eu frequentava o restaurante de uma família cubana e era fiel a eles. Numa das paredes havia um número grande de notas(dinheiro)expostas, oriundas de vários países, quase todos da América Latina. No momento em fui colar minha nota de hum cruzado notei que havia uma nota exposta, não me lembro de qual país, de 50 milhóes de peso.

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