Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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‘Ídolo de barro’: uma análise do legado de Ronald Reagan, por Valdir da Silva Bezerra

Mas afinal, qual foi o significado de Reagan para sua época e, não menos importante, para o desenrolar da Guerra Fria?

Então governador da Califórnia, Reagan perdeu para Richard Nixon a batalha pela indicação presidencial republicana, em 1968. Na foto, acena para os delegados da convenção republicana em Miami Beach, em 8 de agosto, antes de fazer uma moção para que a nomeação de Nixon fosse declarada unânime © AP Photo

no Observatório de Geopolítica

do Sputnik Brasil

‘Ídolo de barro’: uma análise do legado de Ronald Reagan

por Valdir da Silva Bezerra

Em 6 de fevereiro de 1911 nascia Ronald Wilson Reagan, o 40º presidente dos Estados Unidos, frequentemente lembrado por sua postura bastante controversa na condução da política internacional externa americana durante os anos 1980.

Mas afinal, qual foi o significado de Reagan para sua época e, não menos importante, para o desenrolar da Guerra Fria?

Antes de mais nada, é preciso lembrar que foi Reagan, enquanto presidente, quem comparou os Estados Unidos a “uma cidade brilhante sobre a colina“, significando que os olhos de todas as nações se voltariam admirados para Washington.

A frase, que tem relação com uma determinada passagem bíblica, demonstra o ufanismo da administração americana da época. Não que esse ufanismo tivesse passado, claro. Afinal, o atual presidente estadunidense, Joe Biden, continua a refletir a típica arrogância da elite política dos Estados Unidos, quando afirma, por exemplo, que o seu país é capaz de lidar com várias guerras ao mesmo tempo, por ser — segundo ele — a nação mais poderosa da história da humanidade.

Esse senso de superioridade, portanto, não era propriamente uma caraterística particular de Ronald Reagan, mas sim um elemento enraizado há décadas na mente dos tomadores de decisão na Casa Branca. Contudo, por trás dos belos chavões utilizados por Reagan e sua administração ao final dos anos 1980, escondiam-se intenções altamente beligerantes, manifestadas por intervenções militares diretas em diversas partes do globo e em guerras por procuração contra a própria União Soviética.

Tudo isso motivado por um discurso em torno do famigerado “excepcionalismo” americano (do qual Reagan gostava muito) e também pela ganância do complexo militar-industrial, que muito lucrou com a beligerância da administração americana no período final da Guerra Fria. Tornando-se um dos principais e mais influentes setores da economia estadunidense, o segmento de defesa começou a ganhar cada vez mais força na política doméstica e externa americana justamente sob a égide de Reagan.

O presidente dos EUA, Ronald Reagan (terceiro da esquerda para a direita), a primeira-dama, Nancy Reagan, e o general soviético Dokychaev (com chapéu) andam por rua em Moscou durante uma curta caminhada pública, em 29 de maio de 1988 - Sputnik Brasil, 1920, 06.02.2024
Reagan, a primeira-dama, Nancy Reagan, e o general soviético Dokychaev (com chapéu) andam por rua em Moscou durante uma curta caminhada pública, em 29 de maio de 1988

Afinal, fora ele quem tachou a União Soviética de “Império do Mal“, termo esse que viria a ser repaginado anos depois por George W. Bush para se referir ao Iraque, ao Irã e à Coreia do Norte, chamando-os, por sua vez, de “Eixo do Mal“. Seja como for, tanto o primeiro termo (usado na década de 1980) como o segundo (utilizado nos anos 2000) serviam para justificar as intervenções militares dos Estados Unidos nos assuntos internos de outros países, sob o pretexto de defender a segurança nacional dos Estados Unidos da América.

Portanto, desde Reagan até hoje está claro que os tempos não mudaram. Em pleno século XXI, continuamos observando essas desculpas e justificações, vide a participação ativa de Washington nos conflitos tanto do Leste Europeu quanto do Oriente Médio. Difícil mesmo é convencer as pessoas de que tudo não passa de uma grande farsa e de um grande teatro, orquestrados por meio do casamento entre o liberalismo americano e o internacionalismo militarista da Casa Branca.

O então presidente dos EUA, Ronald Reagan (atrás do homem sentado à direita), e o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev (ao lado de Reagan), na assinatura de uma declaração comum no final da cúpula de dois dias entre as superpotências, em 21 de novembro de 1985 - Sputnik Brasil, 1920, 06.02.2024
O então presidente dos EUA, Ronald Reagan (atrás do homem sentado à direita), e o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev (ao lado de Reagan), na assinatura de uma declaração comum no final da cúpula de dois dias entre as superpotências, em 21 de novembro de 1985

Diante desse contexto, Ronald Reagan foi apenas mais um dos presidentes estadunidenses a embarcar em aventuras agressivas no exterior, movido por um falso senso de missão especial que recaía sobre os ombros dos Estados Unidos. Embora aplaudido domesticamente por sua postura com relação à União Soviética, a estratégia de confrontação direta empregada por Reagan durante seu mandato apenas aumentou as tensões internacionais em seu período.

Foi a partir justamente dessa estratégia que os americanos, apesar de sua retórica pró-democracia, apoiaram diversos regimes autoritários na América Latina, por servirem de contraponto à expansão da influência soviética sobre o continente. A administração Reagan viu a América Latina como um campo de batalha na luta contra o comunismo, resultando, portanto, no apoio a governos militares bastante violentos e que contaram com diversas violações aos direitos humanos.

Ora, o apoio financeiro e militar estadunidense a regimes como os de Augusto Pinochet no Chile e de Ríos Montt na Guatemala demonstrou a clara falta de compromisso com os chamados princípios democráticos que os Estados Unidos afirmavam defender.

Além disso, temos o apoio político de Reagan a grupos insurgentes no Afeganistão durante os anos 1980, que visava enfraquecer a posição soviética na Ásia Central. Tais medidas tiveram, por sua vez, consequências trágicas a longo prazo, contribuindo para a instabilidade na região e alimentando o surgimento de grupos extremistas como o Al-Qaeda de Osama bin Laden, que atacaria os próprios Estados Unidos algumas décadas depois.

Para além disso, Reagan contribuiu para o acirramento de tensões no âmbito do controle das armas nucleares. Durante sua administração, os Estados Unidos aumentaram seu arsenal nuclear, provocando uma nova escalada na corrida armamentista entre as duas superpotências da Guerra Fria. Sua retórica inflamada e por vezes até mesmo irreal (como no caso do programa Star Wars, que visava utilizar o espaço para fins militares) trouxe consequências catastróficas para a segurança global.

O ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, em 9 de junho de 1989, em seu escritório em Century City, perto de Los Angeles. Reagan comandou o país de 1981 a 1989 - Sputnik Brasil, 1920, 06.02.2024
Reagan, em 9 de junho de 1989, em seu escritório em Century City, perto de Los Angeles. Ele comandou o país de 1981 a 1989

Em suma, a política externa de Ronald Reagan foi marcada por uma abordagem simplista e pouco elaborada, que não compreendia as complexidades por trás do sensível cenário da Guerra Fria. Sua ênfase na confrontação direta com a União Soviética, seu apoio a regimes autoritários ao redor do globo e sua falta de consideração pelos efeitos a longo prazo que suas ações poderiam acarretar resultaram em problemas sérios não só para o mundo, como para os próprios Estados Unidos.

Reagan, aliás, aumentou o risco de um conflito nuclear entre as superpotências (algo que parecia impensável desde a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962), desviando recursos da economia para alimentar o complexo militar estadunidense e o segmento de defesa. Foram esses erros em política externa que fizeram de Reagan um presidente que, apesar de adorado por neoliberais, se mostrou na verdade incapaz de enxergar o impacto futuro de suas decisões.

Apoiadores do ex-presidente dos EUA e candidato à presidência em 2024, Donald Trump, posam para fotos em frente a pôster com sua foto e uma foto do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, do lado de fora de um comício do Commit to Caucus em Las Vegas, Nevada, em 27 de janeiro de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 06.02.2024
Apoiadores do ex-presidente dos EUA e candidato à presidência em 2024, Donald Trump, posam para fotos em frente a pôster com sua foto e uma foto de Reagan, do lado de fora de um comício do Commit to Caucus em Las Vegas, Nevada, em 27 de janeiro de 2024 – © Patrick T. Fallon / AFP

Ora, pode-se dizer que foi justamente Reagan quem contribuiu não somente para o nascimento de grupos terroristas como o Al-Qaeda como também para a crise financeira de 2008, em vista de suas políticas de liberalização altamente controvertidas de finais dos anos 1980. Ao final, a história deverá ser crítica ao avaliar o legado de Ronald Reagan, considerando que suas falhas tiveram muito mais peso nos rumos do mundo do que os seus sucessos.

Valdir da Silva Bezerra é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estatal de São Petersburgo, na Rússia. Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais sobre Ásia da Universidade de São Paulo (NUPRI-GEASIA). Pesquisador do Grupo de Estudos Sobre os BRICS da Faculdade de Direito da USP (GEBRICS-USP). Colaborador do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS) da Universidade Federal de Santa Catarina. O autor também é colunista oficial da Sputnik Brasil. Desde o ano passado, Valdir Bezerra vem atuando em paralelo como comentarista político convidado para os canais Jovem Pan, Band News e Record News. Algumas de suas matérias e opiniões podem ser encontradas em publicações como: Folha de São Paulo, Valor Econômico, O Antagonista, Crusoé e Jornal GGN, no qual também escreve como colunista convidado.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

1 Comentário

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  1. De certa forma Reagan e os Bushes pavimentaram o caminho para um Trump.

    Eles que criaram este GOP tacanho.

    Eram democratas mas abriram o caminho para a “idiocracia”.

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