Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Os Estados Unidos e a guerra na era da informação, por Eduardo Barros Mariutti

A tendência dominante tem sido a combinação entre a automação da percepção e os sistemas de projeção remota de dano

do Observatório de Geopolítica

Centralização e Descentralizacão no Campo de Batalha: os Estados Unidos e a guerra na era da informação

por Eduardo Barros Mariutti

A tensão entre a centralização e a descentralização do comando sobre a guerra é uma característica importante do sistema-mundo moderno. Há períodos em que preponderam a centralização e a hierarquia por oposição a formas mais descentralizadas de conduta da guerra. Neste caso, além da pressão pela interoperalidade entre as forças, para poder explorar vantagens táticas que se revelam no calor dos acontecimentos, as unidades de combate tendem a ganhar muito mais autonomia. Essa forma mais descentralizada de conduta da guerra, entretanto, complica a gestão da cadeia de informações que perpassa o campo de batalha. A concepção mecânica de guerra centrada na noção de feedback negativo cede lugar a conceitos como não-linearidade, auto-organização e emergência.

Esta tensão se sobrelevou durante a Guerra Fria. As décadas de 1950 e 60 foram marcadas pela cristalização de vastos complexos de comando e controle que, embora tecnicamente capazes de operar de forma descentralizada, dependiam de um comando central para gerir o sistema, especialmente no que diz respeito aos armamentos nucleares. E, além disso, todo o arcabouço era organizado de acordo com uma estratégia geral pensada no antagonismo com sociedades urbano-industriais baseadas em uma forma de combate similar. No entanto, a Guerra do Vietnã mostrou que este modo de organização era ineficaz contra um inimigo mais frágil, mas que lutava no seu próprio território usando táticas de guerrilha. A derrota de Washington não colocou em xeque a ênfase na busca da superioridade tecnológica, mas lançou dúvidas sobre a eficácia do tipo de planejamento muito centralizado que organizou a ofensiva contra os vietcongues.

O fato é que a integração cibernética entre veículos, projéteis, comunicações, radar e contra-medidas eletrônicas que deu o tom do cenário da Guerra Fria entrou em simbiose com as transformações no desenhodos projetos militares e da própria base produtiva da economia estadunidense. A ideia de projetar armas de forma discreta deu lugar à criação de sistemas de armamentos que não podiam ser planejados separadamente, isto é, fora de um todo que os integre (Antoine Bousquet – The Scientific way of warfare). Tais sistemas espelham uma estrutura produtiva organizada pelos princípios do taylorismo, isto é, suscetível a microgerenciamentos capazes de responder tanto às pressões militares inesperadas quanto às oscilações das demandas civis.

No entanto, a despeito de toda a retórica, os EUA ainda possuem como viga mestra de seu sistema de defesa uma orientação centrada na grande estratégia, destinada a prevenir a formação de hegemonias regionais e orientada essencialmente na contenção pela dissuasão nuclear de potências militares apoiadas no imbricamento entre a indústria e sofisticados sistemas de inovação. Porém, desde a década de 1990, quando a suposta necessidade de “mudar regimes” se combinou com a alegada luta contra o terror, os EUA começaram a implementar uma organização militar mais híbrida, capaz de preservar a preeminência no campo da dissuasão nuclear com a superioridade em intervenções tópicas com armamentos convencionais contra Estados adversários e em conflitos de baixa intensidade contra forças hostis não estatais, uma combinação supostamente mais próxima dos princípios da teoria do caos e propagandeada como “network-centric warfare”.

Como já foi apontado nas colunas anteriores, a tendência dominante tem sido a combinação entre a automação da percepção e os sistemas de projeção remota de dano que combinam a granularidade da seleção de alvos com um alcance cada vez mais global. Contudo, é importante destacar o caráter heteróclito destes agenciamentos. Eles se consubstanciam muito mais pela convergência fugaz – embora pontuada por zonas de tensão – entre sistemas de vigilância e controle discretos do que por formas mais centralizadas de comando, tal como ocorre no panóptico e nas visões distópicas influenciadas por George Orwell. Não há um centro, não existem zonas estáveis. Como destaca Antoine Bousquet (The Eye of War), por meio da decomposição dos corpos e dos fluxos em informação manipulável, estamos testemunhando a emergência de um complexo de vigilância e de projeção de poder que perpassa os aparelhos do Estado e as instituições não-estatais de forma rizomática, formando “coletivos heterogêneos de entidades que atravessam os estratos orgânicos, mecânicos e sociais da realidade.” Este cenário exige uma mudança radical na forma como se concebe a geopolítica: a dimensão informacional da realidade está no centro tanto da disputa estratégica no sistema interestatal quanto da rivalidade intercapitalista.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

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