Diferenças notáveis entre o nosso Direito Civil e a Common Law, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Entre o Direito Inglês e o Direito Romano existem muitos pontos de contato. Mas o que realmente chama atenção de um profissional que pertence à tradição jurídica de origem romanística são as diferenças.

Diferenças notáveis entre o nosso Direito Civil e a Common Law

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Finalmente terminei de ler “Roman Law and Common Law”, publicado pela Cambridge University Press. A edição que adquiri através da Amazon inglesa data de 2008. Meu interesse pelo direito inglês aumentou depois que comentei, aqui mesmo no GGN, a sentença de uma Corte inglesa no caso dos militantes do Extinction Rebellion.

O livro de W.W. Buckland e Arnold D. MacNair é dividido em 12 capítulos. Farei aqui um resumo dos temas que considero mais importantes. Entre o Direito Inglês e o Direito Romano existem muitos pontos de contato. Mas o que realmente chama atenção de um profissional que pertence à tradição jurídica de origem romanística são as diferenças.

A primeira grande diferença entre as duas tradições é quanto à fonte do Direito. Na Inglaterra predomina o “case law”, ou seja, a decisão com força de precedente. Nos países influenciados pelo Direito Romano a jurisprudência não ocupa uma posição de destaque, exceto quando a decisão é vinculante (o que ocorre em alguns casos decididos pelo STF).

“…If Roman law countries have not adopted the principle it is either because they lack our wealth of reported decisions or because they think it a bad one. We shall not here consider what it is which is binding in a case, interesting and unsettled as the question is, but will merely observe that some of the dislike of the English doctrine expressed by foreing lawyers is probably due to some misconception of its nature. On the other hand the common law has not always admitted it. The doctrine of precedent does not appear in the Year Books. Throughout the period covered by them the tendency to refer to previous decisions is growing, though usually with no precision of citation and often by memory, and the judge is apto to say something like: ‘Never mind that! Go on with your argument.’ It seems indeed that it is only in what, in the history of the nation, is a recent time that the principle has prevailed with any strictness. And even where the common law prevails, e.g. in the greater part of United States of America, local conditions have led to a certain distrust of the notion of precedent, or at least to a certain freedom in handling it, greater than that admitted by British Courts.” (Roman Law and Common Law, W.W. Buckland and Arnold D. MacNair, Cambridge University Press, UK, 2008,  p. 8/9)

Tradução:

“… Se os países adeptos do Direito Romano não adotaram o princípio, é porque não têm nossa riqueza de decisões relatadas ou porque pensam que ela é ruim. Não consideraremos aqui o que é obrigatório em um caso, por mais interessante e incerto que seja a questão, mas apenas observaremos que parte da aversão à doutrina inglesa expressa por advogados estrangeiros provavelmente se deve a algum equívoco sobre sua natureza. Por outro lado, o Common Law nem sempre o admitiu. A doutrina do precedente não aparece nos Year Books. Ao longo do período coberto por eles [1268 a 1535], a tendência de se referir a decisões anteriores está crescendo, embora geralmente sem precisão de citação e muitas vezes de memória, e o juiz está apto a dizer algo como: ‘Não importa! Continue com o seu argumento.’ Parece, de fato, que foi apenas no que, na história da nação, é uma época recente que o princípio prevaleceu com algum rigor. E mesmo onde prevalece a Common Law, por ex. na maior parte dos Estados Unidos da América, as condições locais levaram a uma certa desconfiança na noção de precedente, ou pelo menos a uma certa liberdade de manuseá-lo, maior do que a admitida pelos tribunais britânicos ”.

Na Inglaterra o Direito evoluiu de maneira distinta do que ocorreu no resto da Europa. No continente europeu a restauração do Direito Romano está relacionada à ambição dos reis de concentrar poder e autoridade.

“La revivificación del Derecho Romano, de su estudio y su enseñanza, se inició alrededor de 1100 gracias al celebrado jurista Irnerio de Bolonia. Separó el estudio del Derecho del de la retórica, una de las artes liberales tradicionales, y con ello estableció la jurisprudencia como disciplina independiente.” (Que es la Historia?, Erich Kahler, Fondo de Cultura Económica, México, 1992, p. 117)

“El efecto más profundo, con mucho, de esta reactivación del Derecho romano fue la ayuda que proporcionó a los príncipes seculares en sus intentos de subyugar a sus señores feudales y convertir sus potencias territoriales en Estados nacionales. El Derecho romano fue el potente instrumento para luchar contra el derecho feudal y las libertades municipales. El emperador Federico Barbarroja fue el primero que se refirió a él, con asistencia de los juristas boloñeses, en su pretensión de supremacía sobre las ciudades lombardas, Gradualmente los ‘legistas’ fueron a parar al servicio permanente de príncipes e monarcas, y finalmente se volvieran sus ministros más leales, que los ayudaban a establecer sus regímenes absolutos y burocracias administrativas. Por este método, podría decirse, el Derecho romano tuvo una parte decisiva en la formación de las naciones europeas y de la estructura política de un mundo secularizado.” (Que es la Historia?, Erich Kahler, Fondo de Cultura Económica, México, 1992, p. 118/119

A evolução distinta da Inglaterra pode estar relacionada a um fato histórico importante: a conquista normanda a partir de 1066. O sucesso da campanha de Guilherme, o Conquistador inaugurou um período de centralização do poder e de exclusão da sociedade local que provocou sangrentas rebeliões camponesas na Inglaterra.

No período em que o Direito Romano começou a ser utilizado como uma ferramenta para reforçar estruturas de poder centralizadas no continente ele passou a ser visto como o instrumento de dominação externa na inglaterra. Portanto, a opção inglesa pela Common Law pode ter sido o resultado não da “riqueza de decisões relatadas” na Inglaterra e sim da rejeição de um método considerado incompatível com os interesses locais numa situação de conflito permanente entre o povo inglês e os nobres de origem normanda.

A segunda distinção importante entre a Common Law e o Direito Romano diz respeito ao direito de propriedade. Nos países de tradição jurídica romanística, existe uma distinção entre a propriedade e a posse.

Enquanto a posse é definida como uma relação de fato entre o possuidor e a coisa (art. 1196, do Código Civil), a propriedade é um direito real registrado em Cartório (art. 1227, do Código Civil) que outorga ao proprietário a faculdade de usar, gozar, dispor e reaver a coisa de quem injustamente a possua ou detenha (art. 1228, do Código Civil). O proprietário tem à sua disposição diversas ações para defender seus direitos, sua boa fé é sempre presumida até prova em contrário. Alguns destes remédios são outorgados ao possuidor, mas a boa fé dele tem que ser demonstrada.

Na Inglaterra as coisas parecem ser um pouco mais complicadas.

“Apart from the complications introduced by the notion of tenure and its varieties, which we shall not consider, they are dominated by the important conception of seisin. It would be beyond the writers’ competence to discuss this conception and its history. We are told that ‘Seisin is possession’. And there are a mass of actions, novel disseisin, mort d’ancestor, writs of entry, in which the primary question whether a party was or is seised or not. Possession is always involved, but the remedies and the rights vary according as there is or not some kind of titulus behind it, and with the nature of that titulus.

This leads to the main contrast between the two systems in this matter. So far is the common law from the sharp distinction of the Roman law between ownership and possession that we learn that there is a hierarchy of actions, a sort of descending scale from the purely proprietary to the purely possessory. ‘Possessoriness’ has become a matter of degree, all very different from the rule that possession has nothing in common with ownership. And this leads to another contrast equally significant. When, in our ancient courts, two persons were disputing about land, both might have some sort of seisin and the question was, which had the better seisin. The question was never simply which of these two is owner, but which has the better right of the two, which has maius ius. ‘No one is ever called on to demonstrate an ownership good against all men; he does enough even in a proprietary action if he proves an older right than that of the person whom he attacks.’ It is a relative ownership’: ‘I own it more than you do’. This is very different from the Roman way of thinking. For the Roman lawyers ownership was absolute, subject to the very limited exception of the bona fide possessor with a titulus. Apart from this there was no question of an ownership good against one but not against another. It is worth observing that in this matter Roman law stood alone; in Greek systems of law the conception was relative, like our own, and it may possibly have been so in the early procedure by legis actio.” (Roman Law and Common Law, W.W. Buckland and Arnold D. MacNair, Cambridge University Press, UK, 2008, p. 66/67)

Tradução:

“Além das complicações introduzidas pela noção de posse e suas variedades, que não consideraremos, elas são dominadas pela importante concepção de se apoderar. Estaria além da competência dos escritores discutir essa concepção e sua história. Dizem que ‘Se apoderar é posse’. E há uma massa de ações, desapoderar, morte do ancestral, mandados de entrada, nos quais a questão principal se um partido foi ou é apreendida ou não. A posse está sempre envolvida, mas os remédios e os direitos variam de acordo com a existência ou não de algum tipo de ‘titulus’ por trás disso e com a natureza desse ‘titulus’.

Isso leva ao principal contraste entre os dois sistemas nesta questão. Tão longe está a Common Law da nítida distinção do Direito Romano entre propriedade e posse que aprendemos que existe uma hierarquia de ações, uma espécie de escala descendente do puramente proprietário ao puramente possessório. ‘Posse’ tornou-se uma questão de grau, tudo muito diferente da regra de que a posse nada têm em comum com a propriedade. E isso leva a outro contraste igualmente significativo. Quando, em nossas Cortes antigas, duas pessoas disputavam terras, ambas podiam ter se apoderado delas de alguma maneira e a questão era: qual deles melhor tinha se apoderado das terras. A questão nunca foi simplesmente qual dos dois é o dono, mas quem tem o melhor direito dos dois, quem tem ‘maius ius’. ‘Ninguém é jamais chamado a demonstrar uma propriedade boa contra todos os homens; ele faz o suficiente, mesmo em uma ação de propriedade, se provar um direito mais antigo do que o da pessoa a quem ataca. ‘É uma propriedade relativa’: ‘Eu o possuo mais do que você’. Isso é muito diferente do modo de pensar romano. Para os advogados romanos, a propriedade era absoluta, sujeita à exceção muito limitada do possuidor ‘bona fide’ com um ‘titulus’. Além disso, não havia dúvida da propriedade de um bem contra um, mas não contra outro. Vale a pena observar que nesta questão o Direito Romano era o único; nos sistemas jurídicos gregos, a concepção era relativa, como a nossa, e pode ter sido assim nos primeiros procedimentos por ‘legis actio’.”

Ao que parece o autor ignora os problemas oriundos do registro dos títulos de propriedade nos países de tradição romanística como o Brasil. Em nosso país, por exemplo, é possível várias pessoas disputarem o mesmo imóvel com base em títulos de propriedade distintos todos com a aparência de legitimidade. A dúvida resultante nesses casos é semelhante àquela que ocorre na Common Law: quem tem o melhor direito?

O art. 1247, do Código Civil permite ao interessado requerer a retificação ou a anulação do registro público que não exprime a verdade. Numa disputa como a mencionada, o melhor título será obviamente aquele que não for declarado nulo. Todavia, não é impossível que todos os títulos apresentados para comprovar a propriedade de um imóvel disputado sejam considerados nulos. Nesse caso, não seria possível aplicar a Súmula 487, do STF (Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada).

As dúvidas resultantes dos conflitos possessórios não são menores nos países vinculados à tradição do Direito Romano. Há uma distinção clara entre posse e detenção (art. 1198, do Código Civil), mas é possível existir controvérsia sobre a existência ou não da relação de dependência entre o detentor e o possuidor. A posse de um imóvel pode também ser disputada por duas pessoas. A justiça ou não da posse é um fato importante para solucionar essas disputas (art. 1200, do Código Civil).

Os conflitos possessórios algumas vezes são complicados. Já advoguei num caso que envolvia várias pessoas em que tanto a propriedade quanto a posse do imóvel era controvertida. Uma das partes defendia seus interesses com base num contrato, mas o título em que se baseava a propriedade do vendedor era objeto de impugnação por outra pessoa que se dizia proprietário e havia apresentou outra escritura registrada. A pessoa que estava no imóvel alegava que era posseiro do mesmo e não detentor dele em nome do vendedor da coisa ao comprador cujo contrato de compra e venda se tornou controvertido.

Uma coida é certa. Existem diferenças históricas importantes na evolução do direito imobiliário no Brasil e na Inglaterra que merecem atenção.

Os indígenas brasileiros não tinham qualquer noção abstrata do direito de propriedade. Como eram nômades, eles disputavam apenas a posse transitória de territórios de caça e de coleta. Os conflitos violentos pela posse, porém, não eram entre os indivíduos de uma mesma tribo e sim entre tribos rivais. No interior de cada grupamento indígena a terra era um bem de uso comum, como os rios e lagos.

A violência intertribal era possível, mas não necessária. Pindorama era vasta e generosa. Uma tribo que não quisesse ou não estivesse em condições de enfrentar outra que estava se mudando para o seu território podia simplesmente se deslocar para outra região. Isso de fato ocorreu à medida que os portugueses começaram a invadir e ocupar o litoral.

A chegada dos portugueses interferiu diretamente nas relações que existiam entre as tribos indígenas e nas relações que elas tinham com a natureza.  O rei de Portugal reclamou para si a propriedade do país e começou a distribuir imensas glebas de terras aos seus lugares tenentes. Ao chegar em Pindorama os donatários começaram a explorar economicamente suas capitanias hereditárias, subdividindo-as e vendendo ou arrendando lotes de acordo com suas necessidades.

Os colonos não eram nômades. E eles sempre usavam a violência quando queriam expulsar os índios que estivessem nas “suas terras” ou que tentassem voltar a ocupá-las. As guerras indígenas duraram mais de um século. Durante aquele período os colonos firmaram vários Tratados de Paz com os índios, mas nenhum deles foi cumprido por muito tempo. A ganância dos colonos pela apropriação de novos territórios era insaciável.

É evidente que os conceitos de propriedade e de posse oriundos do Direito Romano foram transplantados de Portugal para o Brasil. Eles substituíram as noções tradicionais de posse que os índios tinham. Os direitos tradicionais dos índios obviamente não foram reconhecidos. Com o tempo esse processo violento de apropriação dos territórios indígenas foi soterrado pela história oficial.

A legitimação da propriedade e sua transmissão segundo das regras do Direito Romano ganharam uma dinâmica própria. O que existia antes dela se tornar uma realidade consumada não é objeto de estudo dos juristas brasileiros. Na verdade, o impulso colonial original voltou a ganhar força na região amazônica desde a eleição de Jair Bolsonaro. Na região norte os grileiros, madeireiros e mineradores estão invadindo e explorando territórios indígenas sem qualquer interferência das autoridades federais.

Além de demonstrar desdém pelos diteitos, necessidades e reivindicações dos indígenas, legitimando as violências praticadas contras eles, o Estado brasileiro parece estar predestinado a consolidar a apropriação violenta da terra que deu origem ao nosso direito de propriedade. Isso fica evidente quando levamos em conta o descaso com a reforma agrária e a repressão policial aos sem terras. Não há dúvida de que a súmula 354, do STJ (A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária) funciona como uma proteção adicional ao latifúndioimprodutivo.

No caso da Inglaterra o percurso de sedimentação do Direito foi mais longo e resultou em instituições diferentes.

Roma invadiu a Inglaterra no século I dC. Apesar de seus esforços, os romanos não conseguiram romanizar totalmente as tribos locais. Com o declínio do império, as legiões romanas foram evacuadas daquela província. Aos poucos, os saxões começaram a chegar e ocupar o território inglês a partir do século VI dC. Em algumas regiões os colonos saxões se estabeleceram pacificamente, em outras eles foram repelidos pelos nativos. No século IX dC os vikings invadiram violentamente a Inglaterra e começaram a se estabelecer no país. A resistência à invasão viking foi maior e mais violenta do que aquela que havia ocorrido quando da chegada dos saxões. Por fim, no século XI ocorreu a invasão normanda.

A sofisticação da Commow Law no que se refere às disputas de terra parece ser uma decorrência das sucessivas invasões que a Inglaterra sofreu. Ao longo dos séculos, obrigados a coexistir num mesmo território, povos de origens distintas e com tradições diferentes, foram aos poucos criando os instrumentos necessários para resolver pacificamente suas disputas territoriais. O transplante do Direito Romano de Portugal para o Brasil é um fato consumado há séculos, mas ele continua produzindo conflitos violentos. Os instrumentos jurídicos criados e outorgados aos indígenas para que eles possam defender seus territórios dos invasores são ineficazes ou simplesmente sabotados pelas autoridades que deveriam cumprir e fazer cumprir a Lei.

Em decorrência das peculiaridades do desenvolvimento direito na Inglaterra, dois outros institutos chamaram minha atenção. Um é chamado “trespass” o outro “tort”.

“It is further to be noted that trespass to lands was not an actionable wrong in Roman law: the owner had a right to exclude, and to remove, a trespasser, but no more. If, however, he had expressly forbidden entry or if it was an enclosure, such as a dwelling-house, into which everyone knew  that free entry would be forbidden, the entry would in the law of the Empire be an actionable wrong. But it is a wrong against personality, not against property. Under the wide conception of insult outrage, which had then a man’s right was an actionable iniuria. There was no ownership in wild animals, and thus, as there was no law of trespass and no special game law, if a man entered my land and trapped game there, I had no claim to it; and, so far as the question of property was concerned, the result was the same even though the land was an enclosed wood, unless indeed it was an actual vivarium, in which case the animals, while still in my control, were private property. There is thus no room for the complex doctrines which have been developed in our law as to the property in wild animals killed on another’s land. But our law as to wild animals is fundamentally the same as the Roman, and is probably derived from it.” (Roman Law and Common Law, W.W. Buckland and Arnold D. MacNair, Cambridge University Press, UK, 2008, p. 102/103)

Tradução:

“Além disso, deve-se notar que a invasão de terras não era um erro acionável na lei romana: o proprietário tinha o direito de excluir e remover um invasor, mas não mais. Se, no entanto, ele tivesse proibido expressamente a entrada ou se fosse um recinto, como uma casa de habitação, em que todos soubessem que a entrada gratuita seria proibida, a entrada seria pela lei do Império um erro processável. Mas é um erro contra a personalidade, não contra a propriedade. Sob a concepção ampla de insulto ultrajante, o homem tinha então uma ação de iniuria. Não havia propriedade de animais selvagens e, portanto, como não havia lei de transgressão e nenhuma lei de caça especial, se um homem entrasse em minha terra e prendesse a caça lá, eu não tinha direito a ela; e, no que diz respeito à questão da propriedade, o resultado foi o mesmo, embora a terra fosse um bosque cercado, a menos que fosse realmente um viveiro, caso em que os animais, enquanto ainda sob meu controle, eram propriedade privada. Portanto, não há espaço para as doutrinas complexas que foram desenvolvidas em nossa lei quanto à propriedade de animais selvagens mortos em terras de terceiros. Mas nossa lei quanto aos animais selvagens é fundamentalmente a mesma que a romana, e provavelmente deriva dela.”

O conceito de “trespass” é importante, porque ele atribui aos proprietários ingleses o direito de exigir providências judiciais, inclusive penais, mesmo quando não ocorreu dano ou esbulho possessório. A sentença que eu comentei no GGN (mencionada no início) diz respeito a um caso de “trespass”. O militante do Extinction Rebellion foi condenado por ter cometido esse crime porque colou a mão na porta de vidro de um hotel para impedir as pessoas de participar de um evento que ocorreria no local. A condenação recebeu o seguinte fundamento:

“Se ele causou ou não uma obstrução não importa. Ele aceita que formou uma ‘intenção de se posicionar como um elemento de obstrução’. Nesse sentido, diferentemente de alguns outros, ele pensara conscientemente sobre as consequências de se colar no vidro e formou uma intenção de obstruir, e as pessoas ‘precisariam contorná-lo’ se quisessem usar a entrada.”
https://jornalggn.com.br/artigos/militantes-do-extinction-rebellion-sao-condenados-em-the-westminster-magistrates-court/

Vejamos agora o outro instituto.

“At a first step in the comparison of the English tort and the Roman delict it is reasonable to describe the two institutions, i.e. to provide answers to the questions: What is a tort? What is a delict? But this is a difficult business. Common lawyers are not yet clear on the question whether there is a general conception of tort and still endeavour to frame their definition after examining all the phenomena known to be torts and searching for a quality common to these and not found elsewhere. The result is not as yet very satisfying. That it is a breach of a duty primarily fixed by law, that it is a breach of a ius in rem, that ir is wrong which can be brought within the purview of certain ancient writsm all these have been maintained and rejected.

The procedural difficulty in defining tort, namely, the fact that there are certain wrongs remediable elsewhere than in common law jurisdictions and otherwise than by an action in tort, need not detain us, for it did not arise in Roman law. But there is a difficulty or apparent difficulty of substance which requires a few words. Sir Percy Winfield tells us that he has reluctantly abandoned the definition of a tort as ‘a civil wrong which infringes a right in rem and is remediable by an action for damages’, and that his substantial reasons for doing so are that there are some  torts  which are not breaches of iuria in rem, and that the definition ‘will not include some wrongs which are, or ought to be, reckoned as torts, but which are breaches of rights in personam.” (Roman Law and Common Law, W.W. Buckland and Arnold D. MacNair, Cambridge University Press, UK, 2008, p. 338)

Tradução:

“Num primeiro passo na comparação do delito inglês e do delito romano, é razoável descrever as duas instituições, ou seja, fornecer respostas às perguntas: O que é um dano? O que é um delito? Mas este é um negócio difícil. Os advogados ingleses ainda não estão certos sobre a questão de saber se existe uma concepção geral de dano e ainda se esforçam para enquadrar sua definição depois de examinar todos os fenômenos conhecidos como danos e procurar uma qualidade comum a eles e não encontrada em outro lugar. O resultado ainda não é muito satisfatório. Que é uma violação de um dever principalmente fixado por lei, que é uma violação de um ius in rem, que é um erro que pode ser colocado sob a alçada de certos escritos antigos, tudo isso foi mantido e rejeitado.

A dificuldade processual em definir dano, ou seja, o fato de que existem certos erros remediáveis ​​em outro lugar que não nas jurisdições de Common Law e de outra forma que não por uma ação de dano, não precisa nos deter, pois não surgiu no Direito Romano. Mas existe uma dificuldade ou aparente dificuldade de fundo que requer algumas palavras. Sir Percy Winfield nos diz que ele abandonou relutantemente a definição de dano como “um delito civil que infringe um direito real e é reparável por uma ação de indenização”, e que suas razões substanciais para fazê-lo são que existem alguns danos que não são violações de iuria in rem, e que a definição ‘não incluirá alguns erros que são, ou deveriam ser, considerados danos, mas que são violações de direitos in personam.”

Entre nós ato ilícito é definido no art. 186, do Código Civil:

“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

O abuso de direito é equiparado ao ato ilícito pelo art. 187, do Código Civil.

É evidente que o conceito de “ato ilícito” abrange os atos praticados contra qualquer tipo de direito, não fazendo distinção entre in personam e in rem. Desde que cause dano, a ação ou omissão voluntária acarreta o dever de indenizar. Entre nós o dano resultante de uma ação involuntária não é indenizável. Mas o resultado involuntário de uma ação voluntária pode ser indenizável tanto entre nós (ato ilícito decorrente de imprudência, imperícia ou negligência) quanto entre os ingleses (tort). Esse seria o caso de uma gravidez indesejada ocorrida após a realização do procedimento de esterilização realizado por um médico.

A principal distinção feita pelos autores entre os dois institutos diz respeito às consequências:

“… Various as are the many suggested definitions of tort, a frequently recurring element is the statement that the remedy for a tort is an action for unliquidated damages. Here the important word for us is ‘damages’. In the law of tort it is the primary aim of the action to give the aggrieved party compensation for damage wrongfully inflicted on him. It is true that in some cases there may be vindictive or exemplary damages, i.e. that in some cases the action has a definitely penal aspect, e.g. in cases of aggravated trespass to property, and in defamation, where the damages awarded by the jury are often obviously penal, but in principle an action in tort is an action for compensation, an action, to use Roman language, ad rem persequendam. For the Roman actions on delict we must reverse these propositions. Delict is imbued with the idea of vengeance and the action is primarily not for damages but for penalty, though this is usually unliquidated; the primary aim is not compensation.” (Roman Law and Common Law, W.W. Buckland and Arnold D. MacNair, Cambridge University Press, UK, 2008, p. 344)

“… Diversas como são as muitas definições sugeridas de dano, um elemento frequentemente recorrente é a declaração de que o remédio para um dano é uma ação por prejuízos não liquidados. Aqui, a palavra importante para nós é “prejuízos”. Na lei do dano, o objetivo principal da ação consiste em indenizar a parte lesada pelos prejuízos indevidamente infligidos a ela. É verdade que em alguns casos pode haver danos vingativos ou exemplares, ou seja, que em alguns casos a ação tem um aspecto definitivamente penal, por exemplo, nos casos de invasão de propriedade agravada e por difamação, em que as compensações concedidas pelo júri são muitas vezes obviamente penais, mas em princípio uma ação de dano é uma ação de indenização, uma ação, para usar a linguagem do Direito Romano, ad rem persequendam. Para as ações romanas de delito, devemos reverter essas proposições. O delito está imbuído da ideia de vingança e a ação principalmente não é por prejuízos, mas por penalidade, embora isso geralmente não seja liquidado; o objetivo principal não é a compensação.”

O predomínio entre nós da noção de “punição” tem uma consequência importante. Ela acarreta a fixação da indenização levando em conta a capacidade do ofensor e a situação econômica do ofendido. A pena deve ter uma função educativa e não acarretar a falência do devedor ou o enriquecimento do ofendido.

Esse critério parece ser adequado. Mas ele tem produzido distorções importantes provocando um excesso de ações de indenização no Brasil. Digo isso pensando nas empresas que sistematicamente causam danos aos seus clientes. Ao receber punições brandas (porque a indenização não pode acarretar o enriquecimento de cada ofendido) as companhias telefônicas, de transporte coletivo, instituições bancárias e convênios médicos estão sendo estimulados a continuar a cometer atos ilícitos. Afinal, os empresários estão em condições de calcular o que lhes custará menos: pagar indenizações mixurucas ou fazer investimentos de vulto para deixar de prejudicar seus clientes.

Quando se leva em conta apenas a compensação pelo dano causado, a contumácia do empresário que viola sistematicamente os direitos dos seus clientes pode ser tratada como uma situação agravante. Nesse caso o valor da indenização a ser fixado será sempre maior. Se compararmos os valores fixados pelas Cortes inglesas a título de indenização por “tort” com aqueles que são arbitrados pelos Tribunais brasileiros em decorrência do ato ilícito podemos concluir que Common Law é bem mais benéfica para a economia em geral e para os cidadãos/consumidores em especial do que a tradição de origem romanística. No caso do Brasil, se os empresários realmente temessem ser obrigados a pagar indenizações vultosas aos consumidores lesados ocorreria uma substancial diminuição das ações de indenização.

PS: No detalhe uma ilustração de Matheus Ribs https://twitter.com/o_ribs/status/1317801948201029632?s=19

Fábio de Oliveira Ribeiro

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