Desafios da Política Externa do Governo Lula 3, por Pedro Txai Leal Brancher

Enquanto o embate entre Rússia e Otan domina o teatro europeu, a disputa política, econômica e tecnológica entre China e EUA permeia todas as regiões do planeta.

Ricardo Stuckert

Blog: Democracia e Economia  – Desenvolvimento, Finanças e Política

Desafios da Política Externa do Governo Lula 3

por Pedro Txai Leal Brancher

A vitória eleitoral de Lula em 2022 significou o retorno do Brasil ao cenário internacional após quatro anos de auto ostracismo bolsonarista. Mesmo antes de tomar posse, Lula roubou os holofotes da 27ª Conferência das Nações Unidas sobre a Mudanças Climáticas (COP27). Com um discurso incisivo e emocionado, declamou ao mundo que o Brasil estava de volta para combater a fome, cooperar com os países africanos, estreitar os laços com a América Latina, lutar por um sistema comercial justo entre as nações, ajudar a construir uma ordem mundial multipolar e propor a inclusão de mais países no Conselho de Segurança da ONU.  No dia 10 de fevereiro, o Presidente Lula mais uma vez demonstrou a intenção de recuperar a política externa ativa e altiva que caracterizou seus dois primeiros mandatos. Durante encontro com o presidente dos Estados Unidos em Washington, Lula propôs a criação de um grupo de países para mediar o fim da guerra Russo-Ucraniana, o conflito mais intenso no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial.

Nos dois episódios, a retórica confiante do Presidente posicionou o Brasil como protagonista em questões que ele não parece preparado para enfrentar. Ainda que a retomada de uma postura contundente e propositiva seja algo louvável, é fundamental que a inserção internacional brasileira seja realista, isto é, coerente com as capacidades materiais do país e com a distribuição de poder no sistema internacional. Do contrário, a política externa ativa e altiva do terceiro governo Lula corre o risco de reproduzir alguns dos insucessos que caracterizaram sua iteração anterior.                     

A inserção internacional do Brasil nos dois primeiros governos Lula se baseou na percepção de que o Brasil deveria exercer uma posição de destaque na ordem internacional multipolar que parecia emergir. As altas taxas de crescimento econômico e a estabilidade institucional interna gabaritavam o país a liderar um ambicioso processo de integração da América do Sul e a reivindicar um assento no Conselho de Segurança. O fortalecimento do Mercosul, a criação da União das Nações Sul Americanas (UNASUL), do Conselho de Defesa Sul-Americano, da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC),  do Fórum de Diálogo entre Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), da Cúpula América do Sul África (ASA), da Cúpula América do Sul Países Árabes (ASPA), o envio de tropas para Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), bem como a tentativa de mediação do acordo nuclear iraniano foram iniciativas orientadas por esses pressupostos.  

Não obstante, conforme ficou explicito ao longo da última década, os objetivos da política externa ativa e altiva estavam descolados dos instrumentos materiais e institucionais à disposição do Brasil para implementá-la. Diante redução da importância relativa do comércio intrarregional em função da crescente presença da China na região, os governos sul-americanos não encontraram resistências para abandonar o projeto integracionista brasileiro assim que os ventos político-ideológicos da região passaram a soprar em outra direção. Por sua vez, o colapso das grandes empreiteiras nacionais em decorrência dos desdobramentos da operação Lava-Jato deixou não apenas dezenas de obras de infraestrutura paradas, mas também uma mancha na credibilidade do capitalismo brasileiro no exterior. Como resultado, o Brasil não obteve apoio nem da América Latina, nem da África e nem da China para a tão sonhada vaga no Conselho de Segurança. Sem bases materiais sólidas, a reivindicação de liderança brasileira se tornou um projeto vazio, o país se tornou um líder sem seguidores.     

Ponderar sobre os insucessos da política externa dos dois primeiros mandatos de Lula é importante para compreender os limites da atuação do Brasil no cenário internacional atual. O sistema multilateral cedeu lugar para uma feroz e multidimensional competição estratégica entre as grandes potências. Enquanto o embate entre Rússia e Otan domina o teatro europeu, a disputa política, econômica e tecnológica entre China e Estados Unidos permeia todas as regiões do planeta.

O continente africano, área considerada prioritária pela diplomacia brasileira, é exemplar da intensidade do jogo entre esses atores. Visando assegurar o acesso à recursos minerais e a um mercado que deve alcançar 2.5 bilhões de pessoas em 2050, o fluxo de investimento externo chinês para África cresceu de US$ 75 milhões em 2003 para US$ 4.2 bilhões em 2020, enquanto os empréstimos de instituições financeiras chinesas para governos e estatais africanas superou US$ 150 bilhões no mesmo período. Para tentar se contrapor a essa tendência, Washington lançou uma nova “Estratégia para a África Subsaariana” no ano passado, comprometendo-se em investir US$ 55 bilhões no nos próximos três anos. Em comparação, o investimento externo direto total do Brasil no exterior caiu de US$ 20 bilhões em 2015 para apenas 10 bilhões em 2021. 

Diante de tais cifras e da relativa estagnação de nossa economia, a capacidade do Brasil despontar como um player relevante no continente africano se mostra bastante limitada. Além disso, o desprezo demonstrado pelo governo Bolsonaro e a estreita margem da vitória de Lula em 2022 diminuem a credibilidade do Brasil na percepção das lideranças africanas. Qual governante optará por uma parceria de longo-prazo com um país com tão pouco a oferecer e cuja postura internacional é tão volátil?      

Reconhecer as limitações do Brasil para liderar transformações profundas na ordem internacional não significa negligenciar que o país pode desempenhar um papel positivo no mundo ou mesmo defender uma espécie de recrudescimento do complexo de vira-lata. Significa sim advogar a necessidade da compatibilização entre os objetivos declarados da política externa com as prioridades de desenvolvimento nacional, as oportunidades estratégicas oferecidas pela estrutura do sistema internacional e os instrumentos materiais à nossa disposição.   

Nesse sentido, imperativo de primeira ordem consiste na reconstrução das capacidades produtivas nacionais com base nos princípios da transformação digital e da sustentabilidade ambiental. O aproveitamento consciente dos recursos naturais para uma inserção estratégica do Brasil nas cadeias produtivas da biotecnologia e ciências da vida precisa estar em sintonia com a superação dos gargalos de infraestrutura e capital humano que limitam a produtividade da indústria nacional. Para tanto, a atração de investimentos externos com potencial para gerar transbordamentos tecnológicos e transferência de tecnologia é imprescindível. As decisões relativas ao alinhamento com Washington ou Beijing devem estar condicionadas às oportunidades de desenvolvimento que cada um dos polos oferecer.   

A segunda prioridade da política externa brasileira atual é a recuperação da credibilidade brasileira como um parceiro confiável e comprometido com o desenvolvimento do Sul Global. Nesse caso, assumir a liderança do G20, grupo formado pelos Ministros das Finanças e Presidentes dos Bancos Centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, em 2024, apresenta-se como uma janela de oportunidade importantíssima para nossa diplomacia.

Atualmente, 24 países africanos, incluindo Nigéria e Egito, deparam-se com severas crises de endividamento externo que inviabilizam suas economias. Diante do surto da pandemia de Covid-19 em 2020, o G20 e o Clube de Paris coordenaram o lançamento emergencial da Iniciativa para Suspensão do Serviço da Dívida. Não obstante, a lenta recuperação da economia global e o aumento nas taxas de juros internacionais produziu uma drástica piora na situação, com Gana sendo o terceiro país africano no pós-pandemia a declarar moratória da dívida externa no início de janeiro de 2023. Embora propostas de reestruturação já estejam na pauta do G20, os avanços têm sido lentos em função de discordâncias entre credores multilaterais, europeus, americanos e chineses.   

Sem direito a um assento na mesa de discussões do G20, a capacidade das nações africanas influenciarem as negociações com instituições financeiras internacionais é extremamente reduzida. Essa é uma das razões pelas quais a União Africana (UA) pleiteia uma posição permanente na instituição, proposta que recebeu o apoio de França, China, Estados Unidos e Japão nos últimos meses.

Uma vez na direção do G20, o Brasil estará em posição para definir os temas e eixos centrais das discussões. Além de defender a ascensão da UA no G20, nossa diplomacia deverá utilizar esse instrumento institucional para pautar uma agenda de reformas na arquitetura do ecossistema financeiro internacional que vise assegurar aos países do Sul Global os recursos necessários para a realização de suas metas de desenvolvimento sustentável.   

Em suma, conquanto os cenários externos e internos sejam menos favoráveis do que os que Lula encontrou em seus dois primeiros mandatos, ainda há espaço para o Brasil contribuir positivamente na comunidade internacional. Contudo, é fundamental reconhecer que a situação exige que nossa diplomacia opere com cautela, evitando ser vítima do fogo cruzado entre as grandes potências, elencando prioridades estratégicas claras e atuando coletivamente com o Sul Global nas escassas janelas de oportunidade que se apresentam. De fato, uma pitada da doutrina “esconder a força e aguardar o momento”, implementada pelo líder chinês Deng Xiaoping na década de 1980, mereceria consideração por nossos ativos e altivos formuladores de política externa.   


Pedro Txai Leal Brancher – Pós-doutorando pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED). Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Pesquisador associado do Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP. Professor de Desenvolvimento Econômico e Social na Universidade Metodista de Angola.

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