Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Guerra e Sociedade antes do capitalismo, por Eduardo Barros Mariutti

A formação do sistema-mundo moderno transformou radicalmente o imbricamento entre guerra e sociedade.

MONTY PYTHON’S SPAMALOT.

do Observatório de Geopolítica

Guerra e Sociedade antes do capitalismo.

por Eduardo Barros Mariutti

            A guerra deve ser pensada em seu imbricamento com a vida social. Todas as suas manifestações particulares revelam aspectos do conjunto social de que fazem parte. Tomemos como primeira imagem as sociedades ameríndias “primitivas”, no sentido que Pierre Clastres atribui ao termo, isto é, sociedades políticas onde o poder não se cristaliza em um aparelho que tenta se diferenciar das demais instâncias a vida social. Como toda ação militar ofensiva exige a persuasão, a chefia indígena era esvaziada de poder coercitivo. Os combatentes só seguiam uma liderança se acreditassem que o conflito era necessário e o “chefe” era o mais adequado para conduzir o conflito. O caso de Gerônimo, o grande guerreiro apache, é ilustrativo. Uma guarnição mexicana atacou a sua tribo e massacrou mulheres e crianças, matando inclusive toda a sua família. Como forma de vingança, ele organizou uma ofensiva bastante eficaz que eliminou a guarnição. Mesmo com todo o prestígio decorrente da sua liderança no combate, ele não conseguiu convencer a sua tribo a continuar a vendeta contra os mexicanos. A coletividade julgou que a situação foi resolvida. Gerônimo não foi mais capaz de liderar nada. Vencer a guerra não cristaliza o poder em uma pessoa ou em uma instituição.

            Outro aspecto importante neste tipo de sociedade é que todo o aprendizado ocorre na prática, isto é, sem diferenciação entre vida afetiva, trabalho, lazer etc. Depois de muita vivência o guerreiro encarna a sua função, sendo capaz inclusive de forjar os seus próprios armamentos, engendrando uma forma de guerra que, com as devidas ressalvas, pode ser qualificada como artesanal e, no final das contas, operava como um mecanismo centrífugo e dispersivo. A chefia sem poder coercitivo evitava a concentração de poder no interior da sociedade e as escaramuças entre as tribos restringia área e a demografia das sociedades indígenas. Eventualmente, frente a inimigos dotados de vastos recursos e organizados de forma mais centralizada, as tribos podiam formar grandes confederações, como foi o emblemático caso da resistência iroquesa à ofensiva dos colonos americanos no século XIX.

            Os povos nômades pastores – objeto de fascínio de Gilles Deleuze e Félix Guattari – representam outra forma peculiar de imbricamento entre guerra e sociedade. Longe de constituírem hordas errantes, os nômades possuíam complexos padrões sazonais de migração que garantiam um tipo peculiar de articulação entre a técnica, a organização social e o meio natural, operacionalizado pelo uso intensivo do gado transumante e de códigos de identidade e de diferenciação social bastante dinâmicos. A mobilidade e a ampla possibilidade de combinação entre os clãs resultavam em um poder militar significativo, especialmente eficaz para pilhar povos sedentários centrados na agricultura. No combate o predomínio era da cavalaria ligeira: os cavaleiros, geralmente muito hábeis e utilizando o estribo, circulavam a infantaria inimiga com velocidade atirando flechas e lanças, para reduzir o número e tentar quebrar a organização do adversário. Na sequência entrava a cavalaria pesada, munida de espadas e machados para o combate corpo a corpo. Trata-se, portanto, de uma organização social que migrava de forma organizada, aproveitando as variações climáticas sazonais, ao mesmo tempo em que pilhava de forma sistemática povos sedentários. A técnica, os sistemas de propriedade, as armas e artefatos eram todos compatíveis com a mobilidade que, por sua vez, foi a forma encontrada para mitigar o problema da proporção de terra destinada à pecuária e à produção de cereais.

            O guerreiro medieval, por sua vez, era a encarnação de uma forma muito peculiar de guerra, cuja conduta estava organicamente articulada a um mundo marcado pela centralidade das relações de cunho pessoal e uma visão de mundo religiosa e transcendental, que separava radicalmente a dimensão sagrada da profana. Assim, o conflito contra os inimigos espirituais ficava a cargo dos sacerdotes, enquanto os inimigos encarnados da cristandade – pagãos, infiéis e todos que caíram em felonia – estavam sob a alçada da nobreza secular, que exercia de forma privada a violência (cada cavaleiro era, na prática, uma unidade de combate), mas respeitava um código de honra que emanava das relações de suserania e vassalagem. Essas relações difusas definiam, de acordo com as circunstâncias, a dimensão das forças envolvidas e o formato da sua organização em combate. Tal como nas sociedades ameríndias, a pressão de um inimigo organizado e numeroso articulava as redes de suserania e vassalagem, retirando os cavaleiros de seu isolamento relativo. Findo o combate, as forças centrífugas voltavam a preponderar. Por fim, a despeito de sua destreza, os cavaleiros não produziam as suas próprias armas e dependiam da coerção sobre os camponeses presos à terra, que forneciam os alimentos e boa parta da energia que nutria a sociedade medieval.

            A formação do sistema-mundo moderno transformou radicalmente o imbricamento entre guerra e sociedade. A indústria atrelada à valorização incessante do capital altera significativamente o modo de produção dos meios de violência, convertendo a guerra em uma atividade tridimensional: o combate deixa de se localizar exclusivamente no solo e passa a envolver o espaço aéreo e as profundezas das vias aquáticas. O alcance e a precisão dos armamentos começam a aumentar aceleradamente. Contudo, do ponto de vista das formas anteriores de combate, o fato mais saliente da “guerra capitalista” é que a habilidade individual dos combatentes deixa de ser decisiva. Armas de fogo exigem muito menos destreza do que a espada, arco e flecha e os armamentos anteriores. Precisamente por conta disto é possível mobilizar multidões de conscritos para o campo de batalha, fato que pressupõe a mão de ferro do Estado. Logo, a guerra no capitalismo é sempre total, dado que ela se assenta na mobilização do conjunto da capacidade produtiva da sociedade, isto é, ela se consubstancia na agregação da finança, da indústria, da propaganda, do recrutamento e da (tecno)ciência como suportes da conduta da guerra.

Eduardo Barros Mariutti – Professor do Instituto de Economia da Unicamp, do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas da UNESP, UNICAMP e PUC-SP e membro da rede de pesquisa PAET&D.

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O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

1 Comentário

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  1. Guerra é uma mercadoria como qualquer outra, tem insumos e cadeia produtiva, emprega mão-de-obra especializada e comum, etc., etc., etc. Já a Paz…é pasmaceira econômica, é estagnação. Pacífica é a sociedade das formigas, onde todos trabalham para o bem comum. A satisfação de necessidades básicas jamais será capaz de contentar a fome capitalista pelo valor, pelo lucro, pela acumulação, e, na verdade, a própria natureza humana, filha postiça da Natureza e sua autêntica negação, uma vez que criada pela razão e não pelo acaso. Na natureza humana as coisas tem razões e motivos, e não somente causas. A causa da guerra – com todo seu caos e violência cega – é produto da razão. Guerreia-se por um motivo, e não pelo sentimento. Gerônimo foi movido pela vingança, um sentimento; era um índio, próximo da natureza e seu filho legítimo. O homem civilizado, filho bastardo, faz a guerra com cálculo e nenhum sentimentalismo, só ambição. Ao ver a madeira visualiza mesas e cadeiras, e ao ver outro homem, visualiza uma ameaça à sua (sic) floresta. Imaginem uma novela só com mocinhos e mocinhas? Qual o interesse, se não há disputa por hegemonia, se os bens disponíveis – escassos ou não – são divididos equanimemente, sem viés econômico, apenas cooperativo? A guerra é o estado natural da humanidade. A paz é só um intervalo, uma remissão dessa doença que somos sobre a Terra. Os meios mudaram, os fins permanecem os mesmos: conquistar e explorar, acumular e prosperar. Em lugar de soldados, I.A. Afinal, há pandemias e fome suficientes para eliminar os fracos e indesejáveis, que já não são força de trabalho – trabalho que é, por sua vez, cada vez mais desnecessário. A linguagem dessa vocação humana é a morte. Guerra dá lucro. Paz não tem valor de mercado – só o Brasil se interessa pela paz. E o Papa, que não possui divisões de exército. Porque ninguém vende a paz; divide-a com os outros. Nessa equação, o lucro desaparece e todos se tornam iguais. O ser humano não suporta isso. Impor a paz, sim; isso dá retorno. Pax romana, pax americana. Propor a paz? E vem aí a pax chinesa. Que caráter terá, imposição ou proposição?

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