Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional passa por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.
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Competição estratégica entre EUA e China, por Gabriel Pietro Siracusa

Pode-se dizer que os Estados Unidos se assemelham ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou.

Asean Post

Competição estratégica entre EUA e China

por Gabriel Pietro Siracusa

A relação entre a China e os Estados Unidos tem sido marcada por diversos momentos históricos significativos, momentos de acomodação e de conflito. Com a vitória da Revolução Comunista na China continental, em 1949, os EUA mantiveram laços com Taiwan, em detrimento da República Popular da China. A retomada de relações só foi acontecer no início dos anos 1970, quando houve os primeiros sinais de aproximação entre China e Estados Unidos. No contexto da Guerra Fria, em um momento de tensão entre os Estados Unidos e a União Soviética, a China era vista como uma peça importante no jogo geopolítico da época. Importava para os EUA enfraquecerem o movimento comunista internacional aproveitando as cisões existentes entre as duas potências socialistas pelo menos desde 1956, quando do XX Congresso do PCUS. Já a liderança chinesa viu na aproximação com os Estados Unidos uma forma de contrabalançar a influência soviética na região e reafirmar a independência de sua política externa diante dos soviéticos.

Em 1971, a visita secreta do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Henry Kissinger, à China estabeleceu as bases para a normalização das relações entre os dois países. A Resolução 2758 da Assembleia Geral da ONU, adotada em 25 de outubro de 1971 com o voto favorável dos EUA, permitiu a substituição de Taiwan pela República Popular da China (RPC) como o único representante legítimo da China nas Nações Unidas. Em fevereiro de 1972, o presidente dos EUA, Richard Nixon, fez uma histórica visita à China, a primeira de um presidente americano desde que a República Popular da China foi fundada em 1949. Essa visita abriu caminho para a normalização das relações entre os dois países. Finalmente, em 1º de janeiro de 1979, os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas com a China, concordando, via Comunicado de Xangai, com a política de uma China única.

Esse é o contexto para compreender o atual estágio da competição estratégica entre EUA e China. Parafraseando um famoso pensador alemão do século XIX, pode-se dizer que os Estados Unidos se assemelham ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou. A consolidação da China como força geopolítica independente, a abertura do comércio com os EUA, a entrada de investimentos e a transferência de tecnologia, associadas a uma política de desenvolvimento sui generis construída e implementada cuidadosamente por quadros técnicos experientes do partido nos trazem ao contexto geopolítico atual.

A partir de 2001, quando a China aderiu à OMC, observa-se um aumento significativo do comércio externo do país, que, com o passar dos anos, consolidou-se como uma potência econômica e comercial de destaque. A crise financeira global de 2008[1] afetou as relações comerciais entre a China e os Estados Unidos, levando a acusações americanas de que a China manipulava sua moeda para obter vantagens comerciais. A atual fase de conflito reflete uma disputa mais ampla pela liderança global, e as implicações desse confronto são significativas para todo o sistema internacional. Nessa nova fase, as duas potências disputam a liderança global em áreas como tecnologia e segurança.

No campo comercial, as tensões atingiram níveis históricos em 2020, com os EUA lançando uma guerra comercial, restringindo o acesso de empresas chinesas ao mercado estadunidense e impondo tarifas bilionárias sobre produtos chineses. A China reagiu, embora com menor margem de manobra[2]. Além disso, a pandemia de COVID-19 aumentou as tensões entre os dois países, com setores importantes do establishment estadunidense disseminando teorias conspiratórias a respeito da origem do vírus[3]. O governo Trump intensificou a retórica anti-China, porém, atualmente, a sinofobia é um dos poucos consensos bipartidários[4].

A eleição de Joe Biden em 2020 trouxe a perspectiva de um reajuste nas relações EUA-China, com ênfase em questões como meio ambiente, saúde pública e segurança nuclear. No entanto, a relação entre os dois países permanece tensa, com a persistência de divergências estratégicas e de valores. O governo Biden tem se aproximado de aliados tradicionais na Ásia e na Europa para construir uma frente multilateral contra a China, enquanto Pequim busca fortalecer sua posição geopolítica e econômica na região e no mundo. Sobretudo a partir da ascensão de Xi ao poder, a China reorientou sua política externa para ter uma posição mais assertiva nos assuntos globais. Além disso, o país passou a investir de forma coordenada em novas tecnologias, com o objetivo de tornar-se uma potência econômica, militar[5] e tecnologia autônoma, sem depender da tecnologia estadunidense e/ou europeia[6].

Desde pelo menos o “pivot para a Ásia”, durante o governo Obama, a política externa estadunidense tem priorizado a contenção da influência chinesa[7]. O aumento da presença militar dos Estados Unidos na região foi flagrante, além da proliferação de arranjos e iniciativas regionais, como o Quad e o Aukus, voltados para a Ásia-Pacífico, além da 2I2U, que busca conter a influência chinesa no Oriente Médio. Por sua vez, a China tem buscado expandir sua influência global e regional, por meio de iniciativas como o projeto Belt and Road e o fortalecimento de sua presença militar em áreas como o Mar do Sul da China, além da defesa permanente da política de uma só China.

Em síntese, as relações EUA-China ao longo dos últimos 50 anos foram marcadas por momentos de cooperação e tensão, reflexo das mudanças na conjuntura internacional e da evolução política dos dois países. A relação bilateral é hoje uma das mais importantes do mundo e tem impacto global nas áreas econômica, política e estratégica. A busca de uma relação estável e mutuamente benéfica entre EUA e China é um desafio crucial para a manutenção da paz e da estabilidade internacional no século XXI, além de ser um imperativo para o combate a emergências mundiais, como a mudança climática e a proliferação nuclear. As perspectivas, porém, não são boas. Ao que tudo indica, a competição tende a se intensificar cada vez mais, menos por algum sonho imperial chinês, perspectiva na base de formulações como a “Armadilha de Tucídides”, mas pela incapacidade de setores dominantes do establishment político-econômico estadunidense de aceitar que o mundo, de fato, mudou – e talvez não seja tão ruim um mundo sem uma única superpotência.

Por fim, vale assinalar que o Brasil tem um papel importante a cumprir. Como potência emergente e importante ator regional, o Brasil deve buscar uma posição de equilíbrio, uma nova “equidistância pragmática”, garantindo boas relações tanto com os EUA, quanto com a China. Essa estratégia permitira perseguir os interesses nacionais, como a ampliação do comércio exterior e a atração de investimentos estrangeiros. Além disso, o Brasil poderia atuar como mediador entre as duas partes, sobretudo em questões regionais, promovendo o diálogo e a cooperação em temas de interesse comum, como as mudanças climáticas. Para o Brasil, o mais central é a construção de uma ordem multipolar pacífica e ciosa do direito internacional. Infelizmente, esse cenário parece cada vez mais improvável.

Gabriel Pietro Siracusa ([email protected]): graduado em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo, fez mestrado em ciência política e, atualmente, faz doutorado pela mesma instituição. Seus interesses de pesquisa são principalmente por temas de relações internacionais, como teoria das relações internacionais, geopolítica e economia internacional e por temas de teoria política, como pensamento político brasileiro, teoria política contemporânea e marxismo.


[1] Embora tenha mantido sua ampla vantagem militar, além do “privilégio exorbitante” de ter o dólar como moeda-chave do sistema, a crise foi um duro golpe na imagem internacional do capitalismo estadunidense. Desde então, os EUA perderam ainda mais competitividade no comércio internacional e na atração de investimento direto estrangeiro.

[2] A China possui um superávit comercial de cerca de 400 bilhões de dólares com os EUA, o que diminui seu espaço de retaliação.

[3] Ao mesmo tempo em que insistiu em culpar a China, Trump e seus aliados na extrema-direita estadunidense – e mundial – repetiram ad infinitum que a covid era “apenas uma gripe” como outra qualquer e, com variações de país a país, boicotaram medidas que poderiam ter diminuído o impacto da pandemia. De fato, o mais de um milhão de mortos nos EUA não pode ser jogado na conta da China.

[4] Ainda que setores da elite financeira estadunidense tenham tomado iniciativas para diminuir o grau de tensão do conflito, a fim de garantir seus ganhos econômicos junto à China.

[5] Atualmente, segundo dados do Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), a China possui o segundo maior gasto militar do mundo, sendo superada apenas pelos EUA. O orçamento militar chinês vem aumentando consecutivamente nos últimos 27 anos.

[6] Alguns estudos afirmam, inclusive, que a China já alcançou essa liderança.

[7] A mudança envolveu uma série de iniciativas destinadas a fortalecer os laços dos Estados Unidos com a região da Ásia-Pacífico e, por outro lado, diminuir o grau de envolvimento estadunidense no Oriente Médio. Por inúmeras razões, pode-se dizer, hoje, que o giro fracassou: o Afeganistão permaneceu uma pedra no sapato estadunidense até hoje, além de os EUA permanecerem como o maior fiador internacional do Estado de Israel. Além disso, a entrada na região da Ásia-Pacífica ocorreu de forma atabalhoada: a principal iniciativa econômica, o Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP), fracassou.

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