Afinal, cadê o Direito Internacional?, por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

O desenvolvimento do direito internacional após a Segunda Guerra Mundial refletiu a necessidade de adaptação a um mundo em transformação

Afinal, cadê o Direito Internacional?

por Bruno Fabricio Alcebino da Silva

O período pós-Segunda Guerra Mundial foi caracterizado por uma metamorfose notável no cenário internacional, marcando o declínio da primazia eurocêntrica e o surgimento de novas configurações geopolíticas. A criação das Nações Unidas em 1945 desempenhou um papel crucial nessa transformação, e o Conselho de Segurança, estabelecido como uma entidade-chave, trouxe consigo uma dinâmica mais equitativa entre as grandes potências. No entanto, à medida que o mundo avançava, surgiram desafios significativos, como o conflito persistente na Ucrânia e as tensões contínuas no Oriente Médio, especialmente no conflito Israel-Palestina. Esses eventos desafiam não apenas a estabilidade regional, mas também questionam a eficácia das instituições internacionais na promoção da paz e na resolução de crises.

Com a fundação das Nações Unidas, a comunidade internacional buscava estabelecer um fórum onde as nações pudessem resolver disputas de maneira diplomática, evitando assim os horrores da guerra que assolaram o mundo na década anterior. O Conselho de Segurança, composto por membros permanentes e não permanentes, representava uma tentativa de garantir que as decisões importantes fossem tomadas levando em consideração os interesses de diferentes regiões do mundo.

No entanto, essa busca por equidade não se limitou apenas à composição do Conselho de Segurança. O período também testemunhou mudanças profundas na natureza do direito internacional. Questões que anteriormente eram consideradas intocáveis passaram a ser reexaminadas, desafiando as bases históricas e teóricas do sistema jurídico internacional.

O desenvolvimento do direito internacional após a Segunda Guerra Mundial refletiu a necessidade de adaptação a um mundo em transformação. A Carta das Nações Unidas estabeleceu princípios fundamentais, mas também abriu espaço para a evolução e interpretação, reconhecendo que o direito internacional não é uma entidade estática, mas sim um sistema dinâmico que deve se ajustar às demandas da realidade global.

Além disso, os julgamentos de Nuremberg e Tóquio, que processaram líderes nazistas e japoneses por crimes de guerra, contribuíram para a consolidação de normas internacionais que visavam responsabilizar indivíduos por violações graves do direito internacional. Isso marcou um avanço significativo na justiça penal internacional e influenciou o desenvolvimento subsequente de tribunais internacionais.

O declínio eurocêntrico

O declínio da ordem eurocêntrica e a desintegração do “Nomos da Terra”, como conceituado por Carl Schmitt, são fenômenos complexos que abriram espaço para uma reavaliação crítica da perspectiva eurocêntrica no direito internacional pós-1945. A obra de Schmitt, notadamente O Nomos da Terra no Direito Internacional do Jus Publicum Europaeum [1950] destaca as mudanças profundas na dinâmica global e nas estruturas de poder após a Segunda Guerra Mundial.

Schmitt argumenta que a Europa, que antes detinha uma posição central no direito internacional, perdeu essa supremacia após 1945. O fim da guerra trouxe consigo a ascensão de novos atores e o declínio das potências europeias. Isso não apenas desafiou a concepção eurocêntrica de “civilização” e “progresso” como também questionou a própria fundação do direito internacional. O conceito de “Nomos da Terra” refere-se à ordem espacial e jurídica que fundamentava a supremacia eurocêntrica, e sua desintegração simboliza a transformação fundamental nesse paradigma.

A questão levantada por Schmitt sobre se o direito internacional pós-1945 ainda é uma criação do Ocidente, com os Estados Unidos liderando, é central para a reflexão crítica sobre a natureza e a equidade do sistema internacional. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos emergiram como uma potência dominante, desempenhando um papel crucial na formação das instituições internacionais, como as Nações Unidas. Isso, por si só, poderia sugerir a continuidade de uma influência ocidental significativa.

No entanto, uma análise mais aprofundada revela que o período pós-guerra também testemunhou a ascensão de outras potências não ocidentais, desafiando a ideia de que o direito internacional é exclusivamente uma criação do Ocidente. O movimento de descolonização, a afirmação de identidades nacionais e o fortalecimento de atores não ocidentais no cenário internacional contribuíram para uma diversificação das vozes e perspectivas no âmbito do direito internacional.

Além disso, a influência crescente de organizações internacionais, fóruns multilaterais e movimentos de solidariedade global também impactou a dinâmica do direito internacional, questionando a ideia de liderança exclusiva por parte do Ocidente. A busca por uma ordem internacional mais justa e inclusiva levou a uma evolução nas normas e princípios que regem as relações entre os Estados.

A evolução do fundamento jurídico do Direito Internacional

Desde os tempos dos teóricos do século XVI e XVII até o declínio da credibilidade da lei natural no século XIX, o direito internacional passou por uma notável transformação em suas bases filosóficas, refletindo as mudanças nas concepções sobre a autoridade e a natureza do direito. A teoria do comando do direito, inicialmente introduzida por pensadores como Thomas Hobbes e John Austin, desempenhou um papel significativo nesse processo, sugerindo que a autoridade é crucial para a existência e eficácia do direito internacional.

A teoria do comando do direito, fundamentada na ideia de que as normas jurídicas derivam de uma autoridade soberana capaz de impor e garantir sua aplicação, representou uma ruptura com as concepções anteriores, como a lei natural. Hobbes, por exemplo, argumentou que a autoridade soberana era essencial para evitar o estado de natureza, caracterizado pela guerra de todos contra todos. Da mesma forma, Austin enfatizou a importância da sanção para a validade das leis, destacando a relação intrínseca entre a autoridade e a eficácia do direito.

No entanto, ao longo do tempo, a teoria do comando do direito enfrentou críticas e desafios que destacaram a complexidade inerente à natureza jurídica do direito internacional. Um dos principais desafios foi a transição do sistema internacional de um ordenamento predominantemente baseado na vontade dos Estados para um sistema mais complexo, influenciado por organizações internacionais, tratados multilaterais e normas consuetudinárias.

A evolução do direito internacional revelou que a autoridade soberana, conforme concebida por Hobbes e Austin, não é o único fundamento para a existência e aplicação das normas internacionais. A legitimidade das normas agora está intrinsecamente ligada à participação dos Estados e de outros atores internacionais na sua criação e aceitação. Além disso, o reconhecimento crescente da interdependência global e a busca por soluções cooperativas para desafios transnacionais contribuíram para a expansão das fontes do direito internacional.

A crítica à visão exclusivamente baseada na autoridade soberana também se estendeu ao reconhecimento dos direitos humanos como uma dimensão fundamental do direito internacional. O desenvolvimento de normas e instituições para proteger os direitos humanos desafiou a ideia de que a autoridade soberana seria suficiente para legitimar as ações dos Estados na arena internacional.

Afinal, cadê o Direito Internacional?

O conflito na Ucrânia, desencadeado pelos eventos iniciados em fevereiro de 2022 com a intervenção russa, e o conflito Israel-Palestina, marcado pela recente escalada de violência, apresentam desafios significativos para o entendimento e aplicação do direito internacional. Ao analisarmos esses eventos contemporâneos, surge a necessidade de uma abordagem crítica, considerando as ações de Israel e do Ocidente à luz das normas e princípios do direito internacional.

Guerra na Ucrânia

No caso da Ucrânia, a intervenção russa e a subsequente anexação de territórios têm gerado debates acalorados sobre a legalidade e legitimidade das ações de Moscou. O discurso do presidente Vladimir Putin, enfatizando objetivos como a “desnazificação” da Ucrânia, sua desmilitarização e status neutro, levanta questões sobre a autonomia e soberania do país. É possível apontar, especialmente em relação à OTAN, que houve falhas na prevenção do conflito e a adoção de uma postura inadequada em relação à Rússia. A entrada da Ucrânia na organização militar é considerada por alguns como um “chute na porta”.

A alegação de que a Rússia busca proteger os interesses de russos étnicos na Ucrânia é uma narrativa que, apesar de contestada, ressoa em alguns setores. Esse argumento, muitas vezes associado à defesa dos direitos das minorias russas no exterior, tornou-se um elemento central na justificação da intervenção. Entretanto, essa justificativa é objeto de críticas, sendo apontada como uma estratégia que encobre, sob o pretexto de proteger compatriotas étnicos, uma possível expansão territorial.

A resposta do Ocidente, por outro lado, tem sido marcada por sanções econômicas e condenações, mas com resultados limitados. A falta de uma resposta militar direta por parte da OTAN levanta questionamentos sobre o comprometimento efetivo da aliança em proteger seus membros e zonas de influência. A hesitação em adotar medidas mais assertivas pode ser interpretada como uma demonstração da complexidade política e estratégica envolvida, assim como uma cautela em evitar uma escalada militar que poderia desencadear consequências imprevisíveis.

A questão da Ucrânia destaca uma possível fragilidade no sistema internacional, onde as grandes potências muitas vezes atuam de acordo com seus interesses, às vezes à custa do respeito ao direito internacional. O papel da Rússia como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com poder de veto, também evidencia a necessidade de repensar as estruturas de governança global para garantir uma representação mais equitativa e eficaz.

A polarização na abordagem do Ocidente e da Rússia também destaca a necessidade de uma diplomacia mais eficaz e de esforços coletivos para abordar conflitos regionais. A falta de diálogo aberto e construtivo entre as partes envolvidas perpetua o impasse, e a incapacidade de encontrar soluções diplomáticas sustentáveis coloca em xeque a eficácia das instituições internacionais na resolução de crises desse porte. O caminho para uma resolução duradoura exige um compromisso genuíno com o diálogo, o respeito ao direito internacional e uma abordagem colaborativa entre as nações envolvidas e a comunidade internacional como um todo.

Conflito Israel-Palestina

A recente escalada do conflito entre Israel e Palestina, que dura mais de sete décadas, desencadeada por ataques do Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) e a posterior declaração de guerra por Israel, também levanta questões sobre o cumprimento das normas do direito internacional. Ataques indiscriminados a alvos civis por ambas as partes, como os lançamentos de foguetes pelo Hamas e as operações militares israelenses em áreas densamente povoadas, podem constituir violações graves do direito internacional humanitário.

A resposta militar intensa de Israel deve ser avaliada quanto à proporcionalidade e necessidade, princípios fundamentais do direito internacional. O uso de escudos humanos, um crime de guerra, deve ser investigado quando alegado, e as partes em conflito devem garantir que suas operações militares se conformem estritamente com as normas estabelecidas no direito internacional, algo que o Estado de Israel ignora há décadas.

Além disso, a questão da ocupação de territórios palestinos por Israel, incluindo bloqueios e restrições à circulação, é objeto de controvérsia e críticas sob a perspectiva do direito internacional. A comunidade internacional tem reiterado a necessidade de uma solução justa e duradoura para o conflito, respeitando os direitos e as aspirações do povo palestino frente ao genocídio e colonialismo  perpetrado por Israel.

A postura do Ocidente em relação a Israel, muitas vezes percebida como condescendente, levanta críticas sobre a consistência na aplicação das normas internacionais. Enquanto os palestinos clamam por autodeterminação e o fim da ocupação, o apoio contínuo de algumas potências ocidentais, em especial os EUA, a Israel gera controvérsias. Essa dicotomia na abordagem das violações do direito internacional destaca a necessidade de uma aplicação imparcial e consistente das normas, independentemente das partes envolvidas nos conflitos regionais.

Desafios ao Sistema Jurídico Internacional:

A prática contemporânea desses conflitos destaca desafios sistêmicos ao sistema jurídico internacional. A intervenção seletiva, as sanções discriminatórias e a falta de prestação de contas para certas ações minam a ideia de um sistema jurídico global imparcial. O papel das Nações Unidas, especialmente do Conselho de Segurança, é questionado quanto à sua eficácia e imparcialidade na manutenção da paz e segurança internacionais.

A crítica deve se estender à atuação do Ocidente, incluindo suas políticas e posturas em relação aos conflitos em questão. A coerência e a aplicação consistente das normas do direito internacional são fundamentais para a preservação da integridade do sistema jurídico global.

O declínio do Ocidente

Nos últimos anos, temos observado uma tendência alarmante que reflete a aparente derrota do Ocidente no respeito e promoção do direito internacional. A ordem mundial, uma vez orientada por princípios consagrados, enfrenta uma crise marcada por ações unilaterais, desrespeito por tratados e a erosão das instituições internacionais.

Um dos indicadores mais evidentes dessa derrota é o crescente desrespeito por acordos e tratados internacionais. Exemplos notáveis incluem a retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas e a recusa de certos países europeus em seguir as decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Outro aspecto relevante é a tendência de alguns países ocidentais de priorizar a soberania nacional sobre os compromissos internacionais, manifestando-se em intervenções unilaterais, como incursões militares em países soberanos sem o respaldo adequado das organizações internacionais. Esse comportamento mina a ideia de uma ordem mundial baseada em regras.

Além disso, observa-se uma crescente desconfiança em relação a instituições como as Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), com países ocidentais questionando sua eficácia e relevância. A falta de apoio e cooperação nessas organizações contribui para a derrota do Ocidente na manutenção de uma ordem internacional estável.

A erosão do direito internacional também tem implicações humanitárias significativas, refletindo-se na falta de adesão aos tratados que protegem os direitos humanos e o desrespeito pelas leis de guerra. Esses fatores contribuem para crises humanitárias em várias partes do mundo, resultando em sofrimento generalizado.

À vista disso, a derrota do Ocidente no campo do direito internacional não é meramente uma preocupação acadêmica, mas uma realidade que molda o cenário global. Restaurar o respeito pelo direito internacional exige uma reflexão profunda por parte dos países ocidentais, uma reavaliação de suas políticas e um compromisso renovado com as normas que fundamentam a ordem mundial. A restauração da confiança nas instituições internacionais e o respeito pelos tratados são passos cruciais para reverter essa tendência perigosa.


Bruno Fabricio Alcebino da Silva – Bacharel em Ciências e Humanidades e graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

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