Na balança da Justiça os interesses empresariais acabaram prevalecendo, por Ana Cláudia Mendes de Figueiredo

O resultado do julgamento colocou os mais de 49 milhões de usuários dos planos de saúde em uma situação de significativa insegurança e fragilidade

Na balança da Justiça os interesses empresariais acabaram prevalecendo

por Ana Cláudia Mendes de Figueiredo[1]

No último dia 8, foi concluído, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o julgamento dos embargos de divergência em recurso especial EREsp 1886929 e EREsp 1889704, nos quais se debateu o caráter taxativo ou exemplificativo do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), ou seja, a amplitude da obrigação imposta às operadoras de planos de saúde: se limitada apenas aos procedimentos e eventos constantes desse rol ou se abrangente também de outros não previstos em tal lista.

Nesse julgamento a Segunda Seção do STJ decidiu, por 6 votos a 3, que o rol da ANS é, em regra, taxativo, não sendo a operadora de plano ou seguro de saúde obrigada a arcar com tratamento que não conste do referido rol, se existente outro eficaz, efetivo e seguro já incorporado a ele. O STJ decidiu, ainda, ser possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento não constante do rol. A Corte deliberou, por fim, pela possibilidade – quando não houver substituto terapêutico no rol ou tiverem sido esgotados os procedimentos previstos nesse – de cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que i) não tenha sido indeferida expressamente pela ANS a incorporação do procedimento ao rol; ii) a eficácia do tratamento tenha sido comprovada com base em evidências; iii) haja recomendações de órgãos técnicos nacionais e estrangeiros de renome e iv) seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área de saúde, com a missão de atualização da lista da ANS.

Embora tenha admitido exceções, ao pacificar a divergência entre as turmas que julgam Direito Privado nessa Corte, o STJ estabeleceu uma regra que certamente determinará a rejeição de pedidos deduzidos perante os tribunais inferiores, em face da consolidação do entendimento nessa instância superior.

Além disso, não obstante o STJ tenha estabelecido possibilidades de contratação de cobertura ampliada ou de negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento não constante do rol, sabemos que poucos serão os brasileiros que terão condições de arcar com a ampliação de uma despesa que já é demasiadamente onerosa. 

Jornal GGN produzirá documentário sobre esquemas da ultradireita mundial e ameaça eleitoral. Saiba aqui como apoiar

A decisão significa, na prática, que os planos de saúde estão desobrigados de garantir cobertura de exames, terapias, cirurgias e medicamentos não incluídos no rol da ANS, podendo o Poder Judiciário, nas hipóteses restritas e expressamente estabelecidas, autorizar a cobertura de procedimento não previsto pela agência reguladora.

Prevaleceu a compreensão do relator, ministro Luís Felipe Salomão, que assumiu em seu voto os acréscimos propostos pelo ministro Villas Bôas Cueva. Ficaram vencidos na defesa da natureza exemplificativa do Rol os ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Moura Ribeiro e a ministra Nancy Andrighi, que abriu a divergência.

A taxatividade do rol da ANS foi defendida pelo Relator aos argumentos, entre outros, de que a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998) “prevê que a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS”[2] e de que coberturas mais amplas afetariam o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Esse último argumento, já vale registrar, não se sustenta ante as muitas notícias sobre os lucros extraordinários das operadoras[3], evidenciados, inclusive, em Notas Técnicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA, nos períodos de 2007-2019 e 2014-2018[4].

O resultado do julgamento colocou os mais de 49 milhões de usuários dos planos de saúde em uma situação de significativa insegurança e fragilidade em relação ao futuro e deixa desassistidas – ou pelo menos à margem de terapias/tratamentos mais avançados e eficazes – boa parte desses usuários, que precisam de procedimentos não incorporados pela agência reguladora, como é o caso, por exemplo, daqueles demandados por pessoas com alguns tipos de deficiência, doenças raras e/ou degenerativas ou câncer. Além disso, a decisão ampliará o ônus sobre o já tão sobrecarregado Sistema Único de Saúde (SUS).

Aos usuários de planos de saúde – principalmente àqueles deixados à própria sorte – resta a esperança de que seja aprovado com brevidade algum dos vários projetos de lei que, apresentados recentemente no Congresso, poderão impor às operadoras a obrigação de custear procedimento que o médico assistente julgar imprescindível para a melhoria da saúde ou da qualidade de vida do paciente. 

Resta ainda esperar que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao se pronunciar sobre a constitucionalidade ou não da Lei nº 9.656/1998[5], recentemente alterada pela Lei nº 14.307/2022, reverta a compreensão firmada pelo STJ. O problema é que, se considerarmos os posicionamentos que o STF tem adotado em relação a algumas disputas envolvendo cidadãos comuns e setores econômicos – como a referente à prevalência do negociado sobre o legislado[6] – a esperança cede espaço para o desalento. 

Colocados na balança os interesses empresariais, de um lado, e o direito à saúde de milhões de brasileiros, de outro, o STJ, de olhos bem abertos, optou por privilegiar aqueles, sacramentando uma lógica injusta e perversa e inviabilizando, para esses, a concretização do direito constitucional à promoção, proteção e recuperação da saúde.


[1]  Advogada. Ex-conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Conade). Coordenadora da Autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD. Idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Rede-In).

[2] Conf. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/16092021-Relator-vota-pela-natureza-taxativa-do-rol-de-procedimentos-da-ANS–pedido-de-vista-suspende-julgamento.aspx

[3]   A título de exemplo, leia-se notícia no portal da AMB: https://amb.org.br/brasilia-urgente/apos-lucro-de-50-na-pandemia-planos-de-saude-coletivos-sobem-16/

[4]    Conf. https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=38541&catid=10&Itemid=9

[5]    Pelo menos duas ações sobre o tema já foram ajuizadas no STF até o momento: a ADI 7088 e a ADI 7183.

[6] Conf. decisão proferida no ARE 1121633, disponível em:        <https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5415427&numeroProcesso=1121633&classeProcesso=ARE&numeroTema=1046>

Leia também:

STJ autoriza planos de saúde a reduzir o número de tratamentos e especialistas veem retrocesso

O derretimento dos planos de saúde, por Luis Nassif

Como trocar de plano de saúde

Redação

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador