O que o direito ensina sobre milícia, por Luís Carlos Valois

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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O que o direito ensina sobre milícia

por Luís Carlos Valois

Estava eu em um evento da Polícia Militar, um curso, uma solenidade, não me lembro, mas um coronel que eu nunca tinha visto na vida, mas conhecia pela não muito boa fama ostentada, vem em minha direção e manda essa pérola: – Ah, você que é o juiz da execução? Pois eu sou o coronel das execuções! Falou isso com um sorriso no canto da boca e foi embora.

Eu era juiz em início de carreira e aquilo marcou tanto que lembro como se fosse hoje. Não dava para levar como brincadeira. A realidade é muito dura. Os livros de direito não nos preparam para uma realidade de morte, de corrupção e de violência. Ficamos todos lá na faculdade, sentados em carteiras, durante cinco anos de nossas vidas, ouvindo o que um professor qualquer entendeu sobre uma lei escrita, enquanto na vida do lado de fora outras leis nos dão tapas na cara.

Estudamos praticamente nada sobre direito e justiça e, quando lemos algo a respeito nos livros de direito, pensamos que são a mesma coisa. Embora obviamente não sejam, o ensino propositalmente não permite a reflexão sobre a diferença, e o estudante sai confundindo tudo com lei, que também não é obrigatoriamente nem direito nem justiça.

E um dos fenômenos sociais sobre o qual dificilmente se fala nas faculdades de direito é a atuação da polícia.  A polícia e seus procedimentos estão lá na lei, e em algum período da faculdade se fala dos seus conceitos, seus prazos e órgãos responsáveis, apesar de serem conceitos ideais, prazos nunca respeitados e órgãos às vezes inexistentes.

Sobre a psicologia do policial, sobre a história da polícia, diretamente ligada à proteção da propriedade e, portanto, nascida com função evidentemente de classe, sobre as mazelas da instituição, as dificuldades também do policial, e sobre o desvio de função causado na atividade policial, principalmente pela glamorização da prisão pela imprensa, sobre nada disso se fala.

Sobre a existência de grupos de extermínio, nem pensar. No mundo do direito tudo ocorre às mil maravilhas, você decora o prazo de conclusão de um inquérito policial, que nunca é respeitado, pode até passar em um concurso de juiz, mas não aprende nada sobre a vida, sobre a relação de morte mesmo que existe nas ruas, principalmente nas ruas da periferia, que raramente você conhece, da sua cidade.

Talvez um defeito da minha formação universitária, mas só vim a saber da existência desse negócio de inteligência policial depois que comecei a trabalhar, porque na faculdade eu pensava que inteligência não tinha função, que inteligência era inerente ao ser humano e que toda polícia devia ser inteligente, seja na investigação ou na prevenção.

Então eu era aquele juiz, alienado por uma faculdade de direito, encontrando um coronel real, de verdade, não aquele da Constituição Federal, para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, ou outras formas de discriminação, como está lá escrito.

Então, meu raro leitor pode perguntar, e você, não fez nada? Não, confesso, não fiz nada. Fiquei ali com cara de idiota, tipo aquele personagem de um antigo quadro humorístico: Ah, eh, eh!?

E como toda pessoa de raciocínio lento, fiquei pensando depois o que eu poderia ter retrucado para o policial. Poderia ter perguntado se ele não tinha vergonha de estar me falando aquilo, poderia ter dito que coronel de execução para mim é criminoso, poderia falar essas coisas com uma pitada de ironia, sarcasmo, dessas bem ao costume de solenidades, mas fiquei calado mesmo.

Pensando bem, hoje, eu estava certo em ficar calado. Só quem ainda não saiu do ideal de justiça da faculdade não percebe que quem manda realmente no arremedo de segurança pública que temos é a própria polícia, não o judiciário, não o Ministério Público. Essas instituições estão à mercê da polícia, de uma mentalidade policial equivocada e de uma ideia falsa de segurança pública.

Só como exemplo, alguns anos depois, no exercício da judicatura, como gostam de dizer os técnicos do direito, mandei indiciar um coronel, outro coronel, por suspeita de tortura em uma penitenciária. Resultado, depois o tal coronel foi nomeado comandante geral da polícia e meu indiciamento foi arquivado. Mas isso é outra história, eu conto outro dia sobre as bombas de gás lacrimogênio jogadas dentro das celas, os testemunhos de presos e funcionários, o importante agora é dizer da minha lição.

Fazendo pesquisa de doutorado também percebi que o judiciário tende a convalidar tudo que a polícia diz, e coloquei em um dos capítulos: o verdadeiro juiz, promotor e delegado, o policial da esquina. Foi publicada como livro, “O direito penal da guerra às drogas”, e até hoje tem gente que compra pensando que é um livro de “direito” sobre a legislação de drogas. Ora, como pode existir direito em uma situação de guerra? Na guerra nunca há justiça, nem direito, há guerra.

É o que estamos vivendo hoje. Uma guerra, e quem entende de guerra não é historiador, nem os teóricos de balística, ou mesmo os burocratas dos tratados, quem entende de guerra é o soldado. Infelizmente é uma guerra, e uma guerra contra pobres, negros, pessoas que só conhecem o Estado pela mira de um fuzil, mas quem entende dessa guerra passa longe das faculdades de direito.

Por óbvio que nada disso está certo, que nada disso é justiça, e que não podemos ensinar isso como certo para os jovens nas faculdades de direito, mas é essa a realidade. O que não pode é a faculdade de direito fazer de conta que nada disso acontece e ficar repetindo artigo de lei que qualquer um pode consultar em www.planalto.gov.br. Direito sem crítica é mais um instrumento policial e um instrumento de morte. Direito sem crítica é o direito das execuções daquele coronel.

Essa tal de escola sem partido já existe há muito tempo no direito. O direito é a própria escola sem partido, onde, com a desculpa de que não se pode ter ideologia, faz-se de conta que já vivemos em um mundo ideal. Em outras palavras, o direito, este mesmo do todos iguais perante a lei, em uma sociedade de tanta desigualdade social, é a própria e a mais pura ideologia.

Bem, o que o direito ensina sobre milícia? Nada. Talvez eu devesse é agradecer àquele coronel citado no início, pelo choque de realidade. Hoje, depois que, por alguma razão, leio um livro de “direito”, sempre paro, olho para os lados, para frente e para trás, para não ser atropelado pela realidade.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

8 Comentários

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  1. O decreto das armas de
    O decreto das armas de Bolsonaro visa fortalecer as milícias e é o embrião dos futuros conflitos q pipocarão no nosso país q poderá ocasionar na desintegração territorial do nosso Brasil,COMO OS MILITARES NÃO PERCEBEM ISSO!?SERÃO PARTE DESTE PROJETO DE CAOS!?

    1. grana

      “COMO OS MILITARES NÃO PERCEBEM ISSO!?SERÃO PARTE DESTE PROJETO DE CAOS!?”

      Além da massagem no ego, o poder representa mais dinheiro. Muito para o cume da pirâmide e quase nada para a base.

  2. Elogio e Agradecimento

    Excelentíssimo juiz Carlos Valois, primeiramente o conheci através dos “blogs sujos”, quando de sua posição acerca das chacinas que estavam ocorrendo há tempos atrás. Vi um ou outro texto seu, também nos “blogs sujos”, que me chamaram a atenção. E por último vi sua mensagem ao nosso ex-presidente Lula, chegando por fim a este seu artigo, gostoso de se ler, mas, ao mesmo tempo, contundentemente verdadeiro, sábio e equilibrado. Enfim, sua trajetória, desde aquelas chacinas, com as verdades abordadas em seus poucos textos que li, levam-me a um reconfortante consolo: que bom, nobilíssimo senhor, que haja seres humanos da sua estirpe, ainda vivendo ao nosso lado. Agradeço a Deus pela chama que arde no coração do meu douto irmão, que estejamos dividindo nossos dias com a sabedoria de um ser humano que se ressalta em uma luz digna de uma grande alma. Meu elogio é sincero e caloroso, pois ele é muito mais um exultante agradecimento, por termos constatado que ainda há juízes com J maiúsculo e que, antes de tudo, são sábios e humanos. Que Deus o abençoe e o proteja, meu caríssimo irmão distante desta grande família que se chama humanidade.

    PS: Não sou da área de direito, sou da área de informática,

  3. Elogio e Agradecimento

    Excelentíssimo juiz Carlos Valois, primeiramente o conheci através dos “blogs sujos”, quando de sua posição acerca das chacinas que estavam ocorrendo há tempos atrás. Vi um ou outro texto seu, também nos “blogs sujos”, que me chamaram a atenção. E por último vi sua mensagem ao nosso ex-presidente Lula, chegando por fim a este seu artigo, gostoso de se ler, mas, ao mesmo tempo, contundentemente verdadeiro, sábio e equilibrado. Enfim, sua trajetória, desde aquelas chacinas, com as verdades abordadas em seus poucos textos que li, levam-me a um reconfortante consolo: que bom, nobilíssimo senhor, que haja seres humanos da sua estirpe, ainda vivendo ao nosso lado. Agradeço a Deus pela chama que arde no coração do meu douto irmão, que estejamos dividindo nossos dias com a sabedoria de um ser humano que se ressalta em uma luz digna de uma grande alma. Meu elogio é sincero e caloroso, pois ele é muito mais um exultante agradecimento, por termos constatado que ainda há juízes com J maiúsculo e que, antes de tudo, são sábios e humanos. Que Deus o abençoe e o proteja, meu caríssimo irmão distante desta grande família que se chama humanidade.

    PS: Não sou da área de direito, sou da área de informática,

  4. a realidade atropela o

    a realidade atropela o direito e cria o estsado de exceção

    se aa sociedade não tiver inxtrumentos e maneiras

    e condições para reagir contra essa violencia….

  5. Marco Aurélio Mello mandou soltar um miliciano

    Li na Wikipédia as decisões polêmicas de Marco Aurélio, STF:

    https://pt.wikipedia.org/wiki/Marco_Aur%C3%A9lio_Mello

    Em outubro de 2012, concedeu habeas corpus para Luiz André Ferreira da Silva, o Deco, vereador do município do Rio de Janeiro, considerando um dos mais perigosos milicianos da Zona Oeste do Rio. Deco responde por formação de quadrilha, extorsões e homicídios e esteve ativamente envolvido em planos para o assassinato do deputado estadual Marcelo Freixo(PSOL) e da chefe da Polícia Civil, Martha Rocha.[23]  

  6. Data venia
    Meritíssimo Senhor Juiz,

    Tens toda razão. O direito é pura construção política logicamente, ideológica.

    Sendo assim, espanta que seu assombro tenha começado no evento que usaste como referência narrativa.

    Onde estava ao longo da vida toda?

    Imaginou antes que o jogo fosse diferente?

    Pior, imaginas Vossa Excelência que policiais sejam desse modo sem a cumplicidade da sociedade e, muito pior, de juízes e promotores?

    Qual será o sinal recebido nas ruas quando direitos e garantias são relativizados (na verdade abolidos) nos tribunais e cortes superiores, desde prisões preventivas desmotivadas e eternas, até antecipação do cumprimento da pena condenatória em segunda instância?

    Será que Vossa Excelência desconhece que essa guerra aos pobres não acontece sem um sofisticado sistema que extrapola a selvageria policial, embora se retroalimente dela?

    Será que Vossa Excelência desconhece que não há guerra, nem soldados sem comando?

    Como em toda sociedade fortemente hierarquizada, Excelência, quem leva a fama é quem faz o trabalho sujo e ganha menos.

    Bons salários são ótimos bloqueadores de consciências.

    Acho que o senhor fica nos devendo um texto que revele o horror que causa o sangue que mancha as togas.

  7. A critica ao idealismo

    A critica ao idealismo da Constituião (e do Direito) e às contradições entre o pais legal e o pais real constam do pensamento social brasileiro desde Alberto Torres e Oliveira Viana.

    Nos anos 80 do século XX a tese de doutorado em Harvard do Antropologo Roberto Kant de Lima foi iluminadora. O título já veio certeiro, Teoria Legal e Praticas Policiais: O Paradoxo da Ação Policial na Cidade do Rio de Janeiro.

    O problema é que o pensamento juridico brasileiro ABANDONOU a formação humanistica em nome de uma suposta formação “técnica”. Conteudos de História, Filosofia e Sociologia, como não “caem” em concurso, passaram a ser olimpicamente desprezados, ao ponto de predominar sobre estas disciplinas a pecha de “doutrinação”. Nem reconhecem o status de Ciencia, aliás. Acham que Sociologia, por exemplo, é algo mais pra literatura ou “cultura geral”, como já ouvi falar uma ou outtra vez. Aqueles que acham que é sinônimo de “socialismo” então,….Dá até preguiça.

    Em meados dos anos 90 é que a CAPES passou a exigir, estimular Mestrado e Doutorado do corpo docente das Universidades. Daí que muitos Juizes, Promotores, Delegados tiveram que voltar aos bancos escolares. Não sei se melhorou ou piorou, sinceramente. A má vontade até pra ler uma bibliografia classica era gritante, sobretudo por parte daqueles com “décadas de pratica”…

    As condições para o cultivo de preconceitos estavam bem postas…

    Lembro de um caso tragicomico de um juiz recem concursado. Ele se referiu aos filosofos alemães “Kent” e “Hégel” (sic)…VIu escrito em algum lugar, e assim pronunciou.

    De um “cidadão comum”, eu não me importaria; mas, de alguém que frequentou os bancos escolares de um curso de Direito por cinco anos, cursinhos preparatórios, e assumiu um cargo na magistratura, aquilo me deixou “admirado”: o cara nunca nem ouviu falar!

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