Izaias Almada
Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.
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O gato Rambo e o amigo eletrônico (Final), por Izaías Almada

O que muitos seres humanos ainda não haviam percebido é que o mundo mudara de forma rápida e impiedosa.

Arte na Rua

O gato Rambo e o amigo eletrônico (Final)

Conto de Izaías Almada

                    Fato curioso: pela primeira vez, em muitas semanas, Marcelo deixou o Game Boy de lado e quando resolveu acioná-lo, para jogar com o último dos cartuchos que havia adquirido, notou que as pilhas estavam fracas. As imagens iam desaparecendo aos poucos. Marcelo logo imaginou que o pai e Mac Thor, à sua maneira, tinham se tornado imagens desaparecidas naqueles dias, como se alguém em algum lugar desconhecido tivesse também se esquecido de trocar as pilhas.

          Impressionou-se com mais essa fantasia. Beliscou a bochecha e em seguida foi à procura do Maneco, encontrando-o a aparar a grama:

          “E se eu desaparecesse de uma hora para a outra, Maneco, o que é que você faria?”

          “Telefonava para a sua mãe no escritório”, respondeu o prático motorista.

          “E se ela também não estivesse no escritório, se não existisse escritório nenhum, ou se ela também desaparecesse com escritório e tudo?”

          “Assim como nos filmes?”

          “Isso mesmo, assim como nos filmes”.

          “Eu chamava a polícia, sei lá, ou ia a uma mãe de santo que tem lá perto de casa”…

          “Mãe de santo? O que é isso?”

          “É coisa de religião, lá da minha terra, a Bahia. É uma pessoa que ajuda outras pessoas a tirarem o mau olhado, a fecharem o corpo contra as coisas ruins, contra o desconhecido.”

          “Você tem medo do desconhecido?”

          “Deus me livre e guarde. O desconhecido prá mim é a morte, e eu tenho um medo danado da morte”…

          Naquele dia, o carteiro trouxe uma carta do pai e que foi lida à hora do jantar. Tudo corria bem. A empresa havia lhe reservado uma casa nos arredores de New Haven. Uma casa de dois andares e porão, garagem para dois carros, um belo jardim à entrada e um riacho que passava nos fundos do quintal. A escola onde as crianças estudariam ficava a cinco quilômetros dali, mas seriam todas transportadas em ônibus, aqueles amarelos que se viam nos filmes.

          O inverno seria rigoroso, sendo comuns as tempestades de neve na região. Sentia saudades de todos e esperava que o tempo passasse o mais rápido possível para que se reunissem no natal, quando uma festa seria oferecida pela empresa para recebê-los. Tinha, por vezes, a sensação de que aquilo era um sonho, terminava a carta do pai.

          “Para mim, parece mais um pesadelo”, foi o comentário da irmã de Marcelo, “aqueles americanos devem ser uns chatos. São todos convencidos de que moram no melhor país do mundo. Fico lá só o ano que vem e volto para o Brasil. Aqui é que é o meu lugar”. 

          A mãe pediu aos filhos que tivessem paciência e procurassem entender os propósitos do pai, pois tudo aquilo iria significar progressos na sua carreira, advindo daí benefícios para todos. Marcelo limitou-se a ouvir a leitura da carta e a pensar que o pai, de certa maneira, estava a enfrentar o desconhecido e que deveria também ter os seus momentos de medo e de insegurança.

          No dia seguinte um fato estranho chamou a atenção de Marcelo. Rambo não apareceu, nem mesmo à hora das refeições. E não apareceu nos dias seguintes. Dizem que os gatos pressentem quando vão se separar dos seus donos, mas ainda faltavam dois meses para a viagem. Seriam tão sensíveis assim esses animais?

          Por via das dúvidas, embora soubesse muito bem distinguir o que era realidade e o que tinha sido criado pela sua fantasia, Marcelo resolveu contar toda a história à sua mãe, pedindo apenas que ela guardasse segredo junto da irmã, pois essa, outra coisa não faria, senão tirar o sarro de tudo aquilo e dizer aos colegas no colégio que o irmão estava ficando louco.

          A mãe ouviu toda a narrativa e divertiu-se com os pormenores da imaginação do filho, prometeu que não diria nada à irmã e por último aconselhou Marcelo a esquecer Mac Thor. Já não havia motivos para ele se preocupar com a mudança, pois esta se faria normalmente, com todos se adaptando à nova vida sem maiores problemas.

          Marcelo concordou com as ponderações de sua mãe. Deu-se conta de que boa parte da angústia e ansiedade sentidas em relação à mudança de país já havia passado e que o personagem Mac Thor, de certa maneira, havia cumprido a sua função. Nada o impedia, portanto, de despedir-se do seu amigo eletrônico, prestes a regressar.

          Mac Thor, contudo, não sentia a questão da mesma maneira. Já de volta, ao lado da cama do menino que naquela noite fora deitar mais cedo, pusera-se a conjecturar se não tinha ido longe demais ao alimentar tamanha fantasia. Parecido com a grande maioria dos meninos da sua idade, Marcelo era – sem dúvida – dotado de maior imaginação, uma pessoa preparada para a vivência dos novos tempos, para o limiar do novo século.

          O que muitos seres humanos ainda não haviam percebido é que o mundo mudara de forma rápida e impiedosa. Mesmo Marcelo, com quem fora possível estabelecer contacto e fazer amizade, não tinha noção do que se passava. Era preciso paciência com o ser humano. Demasiado complexa, sua estrutura biológica e psíquica, não lhe permitia dar saltos na própria evolução, o que acabava por se tornar um óbice no seu relacionamento com outras formas de vida mais evoluídas. Quanto a isso, não havia nada a fazer.

          Mac Thor ficou ali, sem saber se acordava Marcelo e lhe contava toda a verdade ou se deixava que tudo terminasse como num sonho. Por fim, decidiu-se pela verdade. Acordou o rapaz:

          “Marcelo, estou de volta. Acorde, cara, precisamos conversar…”

          “Agora não, estou com muito sono. Amanhã é domingo, temos o dia inteiro para resolver esse assunto…”

          “Não, não, desculpe. Amanhã já não estou mais aqui. Vim me despedir e dizer que tudo sairá bem na sua viagem. Afinal, você está crescendo e já não precisa ter medo das coisas que ainda não conhece. Lembra-se da nossa conversa? E mais: eu não sou apenas um amigo criado pela sua imaginação. Eu existo de fato…”

          Marcelo esfregou os olhos cheios de sono e procurou ajeitar-se melhor na cama. Seria isso o que chamavam de pesadelo? Nunca tivera um pesadelo, a não ser a sensação de cair num precipício, o que lhe foi explicado como sendo o momento físico do crescimento.

          “Existe, como? Eu criei você a partir daqui…”

          Marcelo bateu levemente o dedo indicador na testa.

          “Se você prefere continuar pensando assim, não vou desapontá-lo. Talvez seja melhor. Quero que saiba que gostei muito de conhecê-lo e, se precisar novamente da minha ajuda, não faça cerimônia, pode chamar. Queria lhe fazer um pedido, entretanto…”

          “Claro, pode fazer. Estou em débito para com você.”

          “Não deixe de ler amanhã nos jornais a página sobre informações científicas, está bem?”

          Marcelo fez que sim com a cabeça.

          “Agora, volte para o seu sono.”, concluiu Mac Thor. Em seguida, regressou para o mundo de onde viera, um mundo supostamente perdido na imaginação de Marcelo.

          Impressionado com o que se passara à noite, Marcelo narrou o episódio à mãe no café da manhã. Com paciência, a senhora considerou que ele estava de fato levando a brincadeira longe demais. Que deixasse de lado aquela mania excessiva dos jogos eletrônicos e dos filmes, dos livros e das revistas, sempre a tratar do mesmo assunto. Porque não se interessava por futebol, como a maioria dos meninos da sua idade? Ou pela bicicleta? Ou pela natação? Ou por outro tipo de filmes e literatura? Após o pequeno discurso, a mãe de Marcelo pediu ao Maneco que preparasse o carro para saírem, deixando sobre a mesa o jornal que tentara ler…

          Por via das dúvidas, Marcelo lá resolveu procurar pela página das notícias sobre Ciências. Não tinha muita intimidade com a leitura de jornais, mas por fim encontrou. Congressos, pesquisas, descobertas… Seria aquilo?

          O coração de Marcelo disparou… “Físicos e cientistas na Califórnia confirmavam a descoberta do planeta Thor, o décimo primeiro do sistema solar. A grande novidade no meio científico internacional era a confirmação da notícia divulgada na semana passada sobre a existência de um novo planeta no sistema solar, planeta esse batizado com o nome do cientista irlandês Mc Thor, um dos integrantes da equipe de físicos do observatório de Pasadena na Califórnia. Mc Thor, que há anos procurava confirmar sua teoria da existência de outro planeta integrante do nosso sistema solar pôde, finalmente…”

          Rambo pulou no colo de Marcelo, reaparecendo em busca dos carinhos do dono. A voz de Maneco veio mansa da varanda a dizer que estavam atrasados. Marcelo jogou a mochila nas costas e correu até o quarto para pegar o seu Game Boy.

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

Izaias Almada

Izaías Almada é romancista, dramaturgo e roteirista brasileiro nascido em BH. Em 1963 mudou-se para a cidade de São Paulo, onde trabalhou em teatro, jornalismo, publicidade na TV e roteiro. Entre os anos de 1969 e 1971, foi prisioneiro político do golpe militar no Brasil que ocorreu em 1964.

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