Poços de Caldas e o golpe de 1964 – 1, por Luís Nassif

Na volta a Poços, 6 meses depois, a ditadura já estava em pleno vapor

Alguns anos antes do golpe militar, o movimento estudantil de Poços de Caldas vivia uma fase efervescente, como em todo país. Com 11 anos, entrei no jogo político, primeiro através da União Estudantil Católica, depois, da União Municipal dos Estudantes. Sem contar os Cruzados Eucarítsticos do Colégio Marista.

Anualmente havia uma Semana do Estudante no Teatro da Urca, onde discutíamos problemas nacionais, especialmente as questões da pobreza no Nordeste. Havia, de um lado, o grupo da direita, em geral internos do Colégio Marista e alguns externos. Do outro, a esquerda, com o pessoal do Pelicano (a escola da maçonaria) e algumas meninas do Colégio São Domingos.

Devo admitir que eu era uma espécie de porta-voz da direita, apelidado de Lacerdinha. Tudo culpa da influência de meu avô Issa Sarraf, udenista bravo e amigo pessoal de Lacerda, que me alimentava com revistas como “Ação Democrática”. Muito mais liberal, meu pai tentava algum contraponto, me dando para ler a revista Política & Negócios, de economia, mas sem o ranço político da Ação Democrática.

Mas usei alguns dos bordões da revista em algumas polêmicas. Como quando Poços recebeu a visita de Frei Josaphat, do jornal Brasil Urgente. Fui com meu pai e, do alto dos meus 13 anos, desafiei:

  • Que Exército é esse que proíbe a sindicalização dos bagrinhos?

Bagrinhos eram os trabalhadores avulsos do porto de Santos. Sua resposta não pegou bem para ele. Me chamou de “meu anjo” e ironizou minha idade.

Quando veio o golpe de 1964, admito que fiz discurso no evento dos Maristas, no pátio do colégio. Em poucos meses, no entanto, mudei de posição, muito mais por razões éticas do que políticas.

A primeira coisa que me escandalizou foram os dedo-duros que emergiram de uma cidade pacata. Havia um dentista, Júnior Amarante, que dedou nossos amigos-adversários de esquerda: Gerinho, Totonho, além dos mais velhos, Sebastião Trindade e Zé do Caé. A segunda coisa foram as notícias da polícia espancando estudantes em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Contribuiu, também, a convivência com os amigos do Grupo Gente Nova (GGN), abrigados no Colégio São Domingos, longe do conservadorismo atroz dos Maristas. Especialmente a prima Rosa Maria, bonita, avoada, atrevida, que marcou a vida da cidade e dos jovens da época.

Poucos meses depois do golpe, já estava na jovem militância anti-ditadura. O Colégio Marista tinha uma academia literária, a Academia Afonso Celso. Decidimos criar o grêmio.

O novo regime já se articulava no meio estudantil. Enviou para Poços um interventor da União Estudantil Mineira, Weber Americano – que se tornou, depois, delegado. E tentou empurrar um estatuto para o nosso grêmio. O estatuto ficou com José Roberto da Silva, do 3o científico, e figura mais popular do colégio, por ser locutor da rádio Difusora e redator do Diário de Poços.

Foi montada uma chapa com o pessoal do GGN, organizada pelo José Roberto e por Murilo de Carvalho. Me deixaram de fora. Fui saber as razões. Eu estava muito mal de notas e alegaram que nem de ano iria passar, por isso não entraria na chapa. Deixaram de fora também outros gegenistas ilustres.

Decidi montar uma chapa alternativa. Mas havia um problema: os estatutos estavam com José Roberto e ele não entregava a ninguém. Por isso conseguiu montar uma chapa sozinho, deixando de fora algumas boas lideranças do GGN. Fazia parte da estratégia de Weber Americano.

Conversei com um amigo, André Aguirre, cuja irmã queria montar o grêmio do Colégio Jesus Maria José. E convencemos José Roberto a emprestar o estatuto. Lembro-me até hoje, subindo as ladeiras da Vila Nova, onde morava José Roberto, e todas as casas ligadas na rádio Nacional, ouvindo apreensivas o comício da Central do Brasil.

Coloquei como presidente Antônio Neto Barbosa, o Netinho; entrei como vice; o tesoureiro era Tomaz Togni Tarquinio. Tínhamos dois cabos eleitorais junto à direita: Ricardo Carvalho, futuro jornalista, que era interno do Marista; e Aref Antar Neto, popular entre as meninas do São Domingos.

A seleção da chapa foi boa. Anos depois, Netinho tornou-se presidente do PCdoB de São Paulo e Tomáz presidente do DCE da PUC-SP.

Havia um conselho eleitoral, composto por dois representantes de cada classe. Conseguimos convencer o Conselho e fazer uma eleição indireta. Se fosse direta, a popularidade de José Roberto seria difícil de superar.

No dia da eleição, foi uma emoção. Havia 11 eleitores. A chapa contrária tinha chegado aos 5 votos. Bastava mais um para ser eleito. Saí da sala de apuração com o Netinho. Aí todos os votos restantes foram para nossa chapa.

Preparei um discurso para o dia da posse, inspirado em uma formatura do Senac de São Paulo, onde trabalhava minha tia Zélia. Terminava com a canção de maior sucesso da época: “Levanta, sacode a poeira, dá volta por cima”, do Paulo Vanzolini.

Não tive chance de discursar. No intervalo das aulas, cismamos em tirar a calça do Rowilsinho Flora, o primeiro aluno da classe. O irmão Baiano viu e me deixou de castigo. Na hora da posse, o Newton Morais – do 2o científico e que, anos depois, ingressaria na ALN (Aliança Libertadora Nacional) – levantou a informação demolidora: foi consultar os dados da Secretaria do Marista e descobriu que eu tinha 13 anos. E o estatuto colocava a idade mínima em 14. Fiquei de fora. Só voltei no segundo semestre, quando vagou um cargo na diretoria.

A mudança de posição política irritou profundamente os irmãos Maristas, que apostavam em minha vocação sacerdotal. Em uma das aulas de Catecismo, não soube responder a uma das questões do Catecismo Cauly, e o irmão Zé Bento, o Baiano, me colocou para abraçar coluna no páteo:

  • Alguém viu o senhor comprando um livro subversivo na Semana do Estudante. E nem estuda mais no Cauly.

O episódio mais constrangedor foi no final do ano. Eu estava ruim em todas as notas, estudando feito um condenado para as provas finais. Precisava de 9 em matemática, algo que jamais fora obtido com o irmão Zé Bento. No ano anterior, ele bombou o Marcos Carvalho Dias, de uma família influente da cidade.

A Banda do Marista foi tocar em Ribeirão Preto. Com o coração partido, faltei para terminar a lição de Geometria. No dia seguinte fui ao Colégio e informaram que os integrantes da banda estavam liberados da aula. Decidi aproveitar e voltar para casa, para terminar o trabalho. Aproveitei e pedi emprestado um pífaro de um dos colegas – eu pertencia ao setor de pífaros da banda.

No final da tarde fui ao Marista entregar o trabalho. Me chamaram na Secretaria, para atender a um telefonema do meu pai. Pedia para eu voltar com urgência para casa.

Chegando lá, encontrei o reitor, irmão Lino Teódulo (que tratávamos desrespeitosamente de “Vaca” nas nossas conversas) e outro irmão, sub-coordenador da banda. Na época, eu estava em guerra aberta com meu pai, problemas de adolescente. Seu Oscar estava com cenho fechado. Virou-se para o irmão Lino e mandou repetir o que lhe dissera.

Lino simplesmente me acusara de ter roubado o pífaro do colega. Minha reação foi de indignação imediata. E seu Oscar não falhou:

  • Acredito no meu filho!

Foi um breve intervalo na minha crise de adolescente.

No final do ano, consegui passar, tirar 9 e pouco na prova de matemática. Depois, prestei vestibular para a Escola Técnica de Eletrônica de Santa Rita do Sapucaí, tirei um surpreendente 4o lugar e iniciei nova fase de minha vida político-estudantil.

Na volta a Poços, 6 meses depois, a ditadura já estava a pleno vapor.

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