Mestre Catiá

O Choro, popularmente chamado de chorinho, é um gênero musical, uma música popular e instrumental brasileira, com mais de 130 anos de existência. O choro é considerado a primeira música popular urbana típica do Brasil e difícil de ser executado. A história do Choro provavelmente começa em 1808, ano em que a Família Real portuguesa chegou ao Brasil. Em 1815 a cidade do Rio de Janeiro foi promulgada capital do ‘Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves’. 

Em seguida passou por uma reforma urbana e cultural, quando foram criados cargos públicos. Com a corte portuguesa vieram instrumentos de origem européia como o piano, clarinete, violão, saxofone, bandolim e cavaquinho e também músicas de dança de salão européias, como a valsa, quadrilha, mazurca, modinha, minueto, xote e principalmente a polca, que viraram moda nos bailes daquela época.

No Pará, o ritmo ganhou sotaque, tocado por mestres como o Mestre Catiá, codinome de Alcides Batista Freitas, que venceu a resistência da família e se tornou um dos grandes representante do ritmo no estado do Pará, como ele conta nesta entrevista, a primeira de uma série produzida pelo Banco de Informações da Rede Cultura de Comunicação do Pará, sobre esse ritmo bem brasileiro.

* Por Rosane Brito 

P – “Seu” Catiá, embora sabendo que o senhor não gosta muito de entrevistas, nesse nosso bate-papo informal, queria que o senhor contasse um pouquinho sobre como começou o seu interesse pela música.

R – Pra começar, meu pai não queria que eu tocasse nenhum instrumento e nem mesmo que eu aprendesse com quem quer que fosse. Quando ele soube que eu estava me aproximando do meu primo que estudava música e morava defronte de casa – eu morava na Cipriano Santos, entre a Francisco Monteiro e a Teófilo Condurú -, ele não gostou nem um pouco e me proibiu de ficar indo lá. Meu primo estudava cavaquinho, tinha o professor dele e eu ia lá pra assistir a aula, escondido do meu pai. Ouvindo meu primo, achei que não era assim coisa tão difícil aprender a tocar. Era difícil, mas não era impossível. Comecei, então, a pegar o instrumento dele, já que eu não tinha instrumento, e quando o professor dele passava uma lição e o meu primo saía pra trabalhar e dava aquela folga com o cavaquinho, eu ia treinar a música. Aos poucos eu aprendia a tocar também, porque ficava ali olhando tudo. Quando meu primo viu que eu já estava aprendendo, já não queria mais que eu pegasse no instrumento. Chegava às vezes do trabalho e perguntava quem tinha mexido no cavaquinho e a minha tia, que dava uma chance pra mim, dizia: “ninguém mexeu aí”. Quando meu primo não estava em casa ela dizia “estuda e quando ele não estiver aí pode pegar o cavaquinho”. Minha tia gostava quando eu ia pra lá porque mandava eu fazer as coisas pra ela e eu ia fazer tudo o que ela não podia fazer. Agora, às vezes dava problema porque o meu pai toda manhã atravessava pra lá e a qualquer hora podia me pegar com o cavaquinho. Aí ela dizia “vou fechar a porta do quarto e quando eu bater tu já sabes, é porque ele já saiu”. Fui então aprendendo e o tanto que meu primo sabia eu também sabia e, às vezes, quando o professor dele, que tinha o apelido de “Patori”, ficava com raiva porque ele não sabia a lição dizia assim, “olha, eu garanto que o Catiá já sabe toda essa lição…”, meu primo ficava com raiva e imaginava, então, que eu tinha pegado o instrumento dele.
Mais tarde, comecei a acompanhar o pessoal que tocava, mas não saía de noite, porque tinha os meus dezessete anos e meu pai não queria que eu fosse pra rua e, quando saía, tinha hora marcada para voltar. Quando ia por aí, tocava escondido, mas quando voltava,  se passasse da hora, pegava uns cascudos. 
Passado um tempo, o pessoal meteu na cabeça que eu tinha que aprender violão, porque achavam mais bonito que cavaquinho. Foi quando um amigo, o Carlos Aguiar, conhecido como “Carlito, comprou um violão pra mim e eu comecei a treinar. Nessa época, o finado “Canhoto” ensinava o meu primo – o Waldemar, que morava na Curuzu – e eu continuava observando as aulas. Eu tinha um colega que se chamava Cícero, que tinha uma irmã que tocava violino, e ele veio em casa pedir pra eu tocar com eles. Ele tocava bem o violão nesse tempo, era quem tocava melhor no bairro. Aí ele me viu tocar e foi pedir em casa, pro meu pai deixar, que respondeu: “ah, eu não queria esse moleque tocando, mas ele aprendeu…”. Nessa época, meu pai já tinha até comprado um cavaquinho, que negociou com um amigo dele, que era pra eu não ficar tocando com o instrumento dos outros e depois ele ainda ter que consertar se quebrasse, como ele dizia. Quando aprendi o violão, ele mandou fazer um violão pelo João Bezerra, que nesse tempo morava na Cremação. Meu pai só não queria que eu chegasse fora de hora e quando eu ia brincar com os outros, sempre os colegas vinham me trazer em casa.

P – E o senhor tem (ou tinha) outros irmãos?

R – Eu tinha uma irmã, ou melhor, ainda tenho. Ela mora no Rio de Janeiro, mas é minha irmã só por parte de mãe, porque houve uma briga do casal e eles se deixaram. Ainda fiquei um tempo com a minha madrasta, mas ele brigou por minha causa e acabou me tomando dela. Foi aí que fiquei eu, ele e minha avó. Minha irmã casou bem pra lá e tenho sobrinhos que vêm de tempos em tempos pra cá, sendo que nunca mais tive notícias deles.

P – Depois daquela fase inicial o senhor chegou a participar de algum grupo?

R – Quando eu aprendi mesmo a tocar, tinha um regional muito bom. Éramos cinco: eu e o Odir no violão, o Arigó no pandeiro e um outro, que não lembro o nome, no cavaquinho. Depois entrou também o Providência no clarinete, que também sabia tocar violão. Não sei se o Arigó ainda é vivo, pois há muitos anos não vejo esse pessoal. Esse grupo se apresentava na noite. Houve um concurso na velha Rádio Clube e quem tirasse a nota 5, que era a maior, a rádio contratava e eles queriam um regional que fosse bom pra tocar. Foi quando comecei a fazer minha carreira artística, a ir tocar pra cá e pra lá…

P – E esse grupo tinha um nome?

R – Chamavam o “Regional da Rádio PRC-5”, como era sempre anunciado. Depois, o Providência foi para o Rio de Janeiro, pra lá gravou discos, dirigiu orquestra e isso fez com que se diluísse o “Regional”. Até então a gente era muito chamado pra tocar e fazer shows por aí, que iam sendo anunciados pela rádio e corria um dinheirinho daqui e dacolá. Se pagavam, a gente tocava.

P – Mas, no início, o que o grupo tocava mais?

R – No início, a gente ia pra rádio pra acompanhar os cantores; tinha os programas de solo e eu mesmo fazia apresentações de violão… Nesse tempo, eu não tinha nada meu, nada de música feita por mim. Eu tocava as coisas de ouvido e não conhecia nada de música. Eu ouvia e procurava aprender direitinho e o pessoal gostava.

P – Então o grupo tocava tudo nessa época?

R – Tocava tudo e tinha que saber acompanhar e solar o samba canção, o bolero, o sambão. Não se tocava pagode nesse tempo. Pra onde tinha um aniversário, em qualquer parte, a gente ia.

P – E quando o senhor começou a compor chorinhos?

R – Eu sempre procurava ver se conseguia fazer alguma coisa, algum chorinho, alguma coisa, mas não conseguia… e continuava pelejando. Só depois eu descobri que tinha que usar a técnica que a gente pega mesmo com a prática, né? Com o tempo, eu evolui no violão, aí comecei a estudar música popular e foi quando vieram as composições…

P – O senhor estudava música nessa fase?

R – Estudava um pouco. Mas não tive professor, gostava de ler com atenção os métodos. Por conta própria mesmo… Apesar de que os métodos que eu peguei não eram pra violão, foi aí que comecei a estudar, a conhecer as notas e depois a pegar o método pra esse instrumento e fui vendo como era tocar a lição. E por aí foi …Hoje, se eu pegar uma partitura para violão eu toco.

P – Foi aí que o senhor começou a compor choro?

R – Ainda não, só depois que eu já sabia tocar. Me interessava mais em tocar a lição pra pegar a prática e só aí escrevia a letra. A maneira que eu aprendi música não foi com estudo de profundidade, mas sim pegando uma partitura de violão, estudando e tocando.
Agora, pra compor o choro, fui depois experimentando fazer uma coisa e outra, até chegar no chorinho. Às vezes, fazia um pedaço e, mais tarde, quando ia tocar, achava que estava sem graça. Deixava pra lá e depois procurava melhorar, ver se dava pra aproveitar algum pedaço e ia emendando até ficar bom.

P – E quantas são as músicas que o senhor compôs?

R – Bem, eu gravei um cd com 22 composições minhas. O disco saiu por conta do governo…. Me falavam há um tempo que eu devia gravar, que outros já tinham gravado, como o Nego Nelson e o Adamor, e ficavam perguntando o que estava faltando pra mim. Eu vinha pelejando e o Mininéa acabou arranjando pra eu gravar. No início, não tinha quem me ajudasse, mas depois tive o Rommel que me ajudou muito.

P – Como é que vem a inspiração? É de repente?

R – Não, não é… A inspiração vem quando pego no violão; é coisa que a gente faz, acha bonito, procura fazer a divisão do compasso no violão, até criar uma coisa diferente. É como é toda música, que depende de melodia, harmonia, ritmo e tudo, né? Tantas notas pra um compasso e, mesmo assim, às vezes, não dá certo…

P – Como é que o senhor trabalha a composição? É de uma vez ou aos poucos?

R – Eu não escrevo tudo de uma vez, vou fazendo aos pedaços. Eu não escrevo a música, só sei ler ela. Na verdade, escrevo, mas muito mal, só um pedacinho pra não esquecer. Quando tem um início bom eu dou continuação. Ultimamente, o Vaíco sempre tem tocado as minhas músicas. Quem toca o meu repertório também, e sabe bem, é o Maurício Gomes, que também é do Instituto Carlos Gomes. Agora ele está viajando, não sei pra onde. Ele tem ido pra Espanha, pra fazer curso de violão por lá. 
Eu moro lá com eles, na casa da mãe dele. E os pais deles pediam pra eu ir ensinando os chorinhos pro Maurício e aí ensinei logo o repertório todo e quando ele chega por aí vai tocando as minhas músicas, como há duas semanas atrás quando se apresentou lá no Rio de Janeiro.

P – Atualmente o senhor faz parte de algum grupo?

R – Não, eu toco lá no Gilson, mas não sou contratado, vou quando quero, mas sempre nos finais de semana eu estou lá pra tocar. Quando chego lá e já tem alguém tocando, fico ouvindo o grupo que está tocando bem, porque já ensaiou. Aí quando entra o Gilson, aquele pessoal que toca bandolim, solo de cavaquinho, flauta, aí eu entro. Sempre toco junto com o Rommel. Todo sábado a gente está lá no Gilson tocando, eu e ele, que é quem tem me ajudado muito nesse negócio da gravação. Quando foi pra gravar, foi ele que me emprestou o violão porque que eu não tinha instrumento na hora.

P- Então o senhor decidiu ficar mesmo com o violão?

R – É, toco sempre o violão. Eu quis ficar só com um instrumento pra poder estudar bem, porque às vezes quem quer muita coisa, acaba ficando sem nenhuma e não faz nada direito…

P – Mestre Catiá, o senhor tocava na casa de Aldemir Ferreira da Silva, na “Casa do Choro”, que foi o único reduto do choro em Belém até 1984?

R – Eu ia também na casa do Aldemir. Era como quando eu comecei a freqüentar a casa do Gilson. Às vezes, chegava lá e tinha um grupo tocando lá pra trás. Aí eu ficava na parte da frente, tomando uns negócios, esquentando, pra poder ir pra lá. Quando o Ademir ficava sabendo que eu estava lá, mandava dizer pra eu não pagar nada e ir lá pra trás que eles estavam me esperando. Assim foi enquanto o Ademir esteve por aqui na terra, quer dizer, antes de morrer.

P – Quando o senhor começou a ensinar no Instituto Carlos Gomes? Como foi para o senhor se tornar professor?

R – Um dia encontrei com o Yuri Guedelha que me disse que a Glorinha (Glória Caputo), diretora do Instituto, queria falar comigo pra eu ser professor. Ele mesmo me levou até a Glorinha, que me empregou logo. Nessa época, logo que entrei, a Marina, cantora e professora de canto, foi fazer, juntamente com a Glória Caputo, um programa musical no Teatro da Paz e eu fui convidado pra acompanhar as duas. Foi muito boa a apresentação e o Waldemar Henrique esteve lá, para ouvir a gente tocar as músicas dele. No final, quando eu vi, lá vinha o Yuri com o Waldemar Henrique, de braço dado, e ele (Waldemar) disse “ô seu Catiá, quem dera que isso se repetisse muitas vezes, porque está tão bonito esse programa…”. Nós tocamos e aí fizeram a gente voltar com as palmas e tocamos uma música do próprio Waldemar que a Marina cantou.

P – O senhor fez outras apresentações fora dos locais tradicionais do Choro na cidade?

R – Muitas, porque a gente era convidado pra tocar, desde o tempo do Regional da rádio PRC-5. Tocamos no Sinuca Bar, no Caximbinho Bar, no Pedreira Bar e em vários outros lugares. Depois de algum tempo, ganhei uma guitarra de presente, do Narciso Guimarães, porque eu não tinha emprego nesse tempo e nem dinheiro pra comprar dele o instrumento. Toquei também uns tempos na Rádio Marajoara, mas depois saí e entreguei o lugar pro Vaíco.

P – Mestre Catiá, dá para viver de música?

R – Dá! Se há uma profissão que nunca cai é a de música. Pra mim, nunca caiu.

P – O senhor sempre se dedicou a essa profissão ou teve alguma outra?

R – Foi essa quase que o tempo todo. Tive outra, na Secretaria de Agricultura, mas depois saí pra tocar num conjunto em Belém, do Belém Amazonense. Quem tocava nesse conjunto era o Vaíco, o Gino, um outro que eu chamava “o menino da tuba” e o Favacho. Quase toda semana a gente ia brincar, saía por aí. Mas, antes disso, eu tocava em boate. Quando ganhei a guitarra de presente e ficaram sabendo, um amigo que era baterista me perguntou se eu tinha algum contrato e, como eu disse que não, ele me convidou pra tocar com ele na casa da Margô, que era na Vileta. O trabalho era pra toda noite e ficava como empregado. Toquei durante um bom tempo, mas depois não quis mais por causa do sono, porque perdia muito.

P – O senhor chegou a casar e ter filhos?

R – Não, eu nunca cheguei a casar de fato… mas vivi aí com uma menina, só que quando foi na hora do parto do primeiro filho, morreram os dois. Não tive sorte. Ela não fez o pré-natal, teve albumina e acabaram morrendo os dois. Aí eu já estava com uma certa idade e sem casa, porque moro ainda em casa alugada, pago plano de saúde e todas essas coisas, o que cria um problema na vida da gente. Por tudo isso acabei ficando sozinho mesmo.

P – “Seu” Catiá fale um pouco dos alunos, dessa moçada que foi aprendendo com o senhor.

R – Quando eu comecei a ensinar no Instituto Carlos Gomes, o Salomão Habib já estava ensinando lá. Conversei com ele sobre o fato de que eu não tenho estudo em profundidade, mas disse que eu sabia ensinar a tocar, que ia mandar os alunos trazerem o método, como eu venho fazendo até agora. O Salomão dizia que gostava de pegar o aluno que já tinha passado por mim, porque eu ensinava a dedilhar e nenhum aluno passava adiante sem saber o que estava no método do violão.

P – Quais os músicos que o senhor considera como os maiores do Choro hoje no Pará?

R – Pra mim, o melhor é o Rommel, que toca uma palhetada segura, pra ninguém botar defeito. Há uma turma boa, que está compondo bem e vamos ver daqui pra frente. A gente espera que eles componham cada vez melhor, né? O Nego Nelson também compõe bem, inclusive o choro.

P – O que mais o senhor gostaria de contar pra gente?

R – É muita história e bota história aí. Mas estou com 77 anos e muita coisa eu já não lembro. Desde as brincadeiras por aí, das serenatas, os namoros (…), o grupo de lá do bairro da gente, aquela turma que gostava de tocar e cantava bem. Do pessoal mais antigo que tocava já não tem mais ninguém. Às vezes, um colega dizia pra mim assim: “Catiá, só estamos nós dois, né?”. (…). Daquele tempo, deve ter mais gente por aí que não vemos há muito tempo. Um dia desses, encontrei com um menino que tocava bateria, no tempo que eu tocava. Era eu, o Lobato, um outro na bateria e o Teixeira, que era sobrinho do Tó Teixeira, que tocava saxofone e tocava muito bem. Quando o Sebastião Tapajós viajou, foi fazer o primeiro curso de violão, eu fiquei tocando no lugar dele até ele voltar. Mas há muita história em todo esse tempo…O importante é a gente seguir em frente com esperança de dias melhores sempre!

* Editora do Banco de Informações da Rede Cultura de Comunicação do Pará

Luis Nassif

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