A Dupla Morte de um Egresso do Sistema Prisional
por João Marcos Buch
Recentemente, uma pessoa em situação de rua, que era egressa do sistema prisional e estava em “prisão albergue”, foi morta em Joinville. As circunstâncias, por certo, estão em sede de investigação.
É preciso dizer algumas coisas sobre esse triste fato, senão para refletir quanto à nossa cidadania, ao menos em respeito àquele que se foi.
Nesta senda, impossível deixar de falar da necessidade de superação da violência contra populações negras e populações vulnerabilizadas, cuja prisão é o ápice da necropolítica e necrojurisdição. Essa realidade permeia e é a essência de toda e qualquer discussão sobre direitos humanos e dignidade da pessoa.
A morte havida retrata a precariedade das políticas públicas para muitos brasileiros, ceifados que foram do acesso à cidadania e às oportunidades.
A lei não prevê pena de morte, e nem poderia, pois a Constituição a proíbe. Excepcional permissão é para casos de guerra declarada, v.g. traição. O que efetivamente a lei prevê é o cumprimento da pena sem crueldade e de forma a resgatar a dignidade do indivíduo. Essa lei, entretanto, parece não valer. Além da morte social, simbólica, que o indivíduo sofre ao receber uma sentença penal condenatória, ele também fica mais sujeito à morte física.
Transpor os muros para dentro da prisão, com algemas nos pulsos e marca-passos nos tornozelos, significa o mundo virando as costas para você, a sociedade o varrendo para debaixo do tapete, onde as luzes da Constituição enfrentam dificuldades para penetrar. Por mais que movimentos coletivos, associações, centros de direitos humanos e alguns meios de comunicação tentem trazer à tona a vida humana que há no cárcere, poucos desenvolvem esse olhar ético, isso não interessa a ninguém. Mesmo agora, com a retomada do estado democrático de direito, poucas vozes institucionais se levantaram para falar dos encarcerados.
De uma forma ou de outra, o que aqui efetivamente importa é que uma pessoa em situação de rua e egressa do sistema foi morta. Então, vamos falar dessas pessoas.
Sabe-se que no Brasil rege o sistema progressivo do cumprimento da pena privativa de liberdade. A progressão de regime, que vai do fechado, passa pelo semiaberto e termina no aberto, decorre de secular evolução jurídica, historicamente consolidada, que torna o regresso à liberdade menos impactante e menos duro. Há uma espécie de “estágio de convivência” entre a prisão e a liberdade, um entre-mundos.
Assim, depois de passar pelos regimes mais rigorosos, ao progredir para o regime aberto, o controle sob o apenado diminui e ele começa a gozar de liberdade maior, especialmente durante o dia, quando pode trabalhar livremente. Num primeiro momento, nesse regime, ele teria que ir para casas do albergado. Entretanto, esses estabelecimentos, salvo raras exceções, não mais existem, nem em Joinville, nem em Santa Catarina, nem no restante do Brasil.
A casa do albergado, na sua época, sempre se mostrou ineficaz, resumindo-se a um ponto de concentração para marginalizados, sem estrutura e sem qualquer rede de atenção. Ela se tornou um galpão de gente largada, sem acesso ao estado, uma espécie de senzala a céu aberto. Ao longo do tempo, portanto, concluiu-se que o mais correto era o apenado em regime aberto cumprir a pena em seu domicílio (prisão domiciliar), podendo sair para trabalhar e estudar e permanecendo em casa no restante do tempo. Desta forma, o apenado passou a ter condições menos árduas para a integração social e harmônica, objetivo da lei de execução penal. Também houve economia para o erário, uma vez que não se precisou mais destinar verbas para estabelecimentos ineficientes, algo importante para um estado utilitarista.
Ocorre que muitos apenados, uma parte bastante expressiva, a bem da verdade, não possui habitação, essa a questão principal. São pessoas que já estavam em situação de rua quando presas ou que perderam os vínculos após a prisão, oprimidas que são em todos os sentidos. Seu destino, assim, alterna-se entre prisão e rua. Para se ter uma ideia, quando caminho pela cidade onde sou juiz, Joinville, e encontro essa população sob marquises ou praças, via de regra, sou reconhecido. Então ouço comentários de passagens pela prisão, dificuldades de retomada da vida e impossibilidade de arranjar emprego. Em todos os lugares, vagas de emprego somente aparecem para quem tem endereço fixo, CPF, RG…
O município aponta locais para pernoite, como o centro POP, mas que não se mostram eficazes, pois há muito estigma e pouca capacitação para acolhimento e atenção de “ex presidiários”. O problema não se restringe a egressos do sistema, eu sei, mas para esses o ideal seria a criação de casas de passagem, que são diferentes dos albergues. Nas casas de passagem, os necessitados podem ser direcionados, para regularização de suas vidas, com busca da família, de emprego, de habitação. A Lei de Execução Penal prevê essas casas, chamando-as de “Casa do Egresso”, coisa que até hoje nunca se efetivou.
Bom que se diga, como boa nova, que em Joinville, por iniciativa da Vara de Execuções Penais, em parceira com a Secretaria de Estado da Administração Prisional e Sócio Educativa e apoio do Ministério Público, Defensoria Pública, OAB e Conselho Carcerário, tem-se trabalhado em um projeto ainda pioneiro no estado, já comum em outros, padronizado e capitaneado pelo Conselho Nacional de Justiça. É o chamado “Escritório Social”, um equipamento composto por profissionais especializados, que trabalham na atenção social e assistencial aos egressos. Na sua saída, o apenado poderá se dirigir a qualquer tempo ao Escritório Social e lá terá orientação e auxílio para todos os atos da vida civil. Espera-se que se reduzam as dificuldades em suas vidas.
Há muito que se evoluir em nosso projeto de nação, mas é chegada a hora dos mais de 900.000 presos do país serem incluídos na proteção dos direitos humanos. Os navios negreiros do século XXI permanecem sendo as prisões do Brasil e isso deve ser pautado e discutido, não há mais como protelar.
No caso da pessoa que foi morta, faltou apoio e atenção do estado. Tivesse ela sido vista e, principalmente, acolhida, e não teria morrido simbolicamente quando condenada, muito menos fisicamente quando precisou voltar para a rua.
Um destino desses é extremamente injusto. Recuso-me a aceitar. O estado precisa agir!
João Marcos Buch – juiz de direito e autor
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a constituição precisa alumiar
as celas sinistras do sistema prisional
juízes, juízas, promotores e promotoras
precisam abandonar apostilas
resumos e macetes de cursinhos de merda
e meter os sapatenis e os saltos agulha
nos esgotos a céu aberto das periferias
nas celas há seres humanos imperfeitos
como somos os que estamos aqui livres
ou supostamente livres
observem e não esqueçam
algo como 70% são negros e negras
mas há magistrados e promotores
que consideram os canalhas
deltan dallagnol e sergio moro como heróis
escrevo apenas para mandar abraço apertado, fraterno e incondicional a João Marcos Buch, juiz muito do direito
Agradeço por este texto. Sempre que essa realidade aparece, tenho um sentimento de impotěncia. Penso que quanto mais trouxermos à visibilidade mais as soluções para problemas com raízes tão profundas serão construídas e debatidas.
Dr. Escrevi um artigo ou trabalho de conclusão de cuso cujo tema foi ” a liberdade e os estigmas na vida de um ex-detento: um olhar pós presídio.
E gostaria que o senhor me indicasse bons autores que abordem o tema egresso e responsabilidade do estado etc o tema egresso é muito complexo quando generalizou sem levar em conta a mente humana. Aí nos deparamos em meio dois extremos.
Por favor se poder me indicar alguns autores agradeço
RAP DOS ENCARCERADOS
“Sendo estrangeiro, não me recolhestes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes.”
(Mateus 25,36-43)
Rebotalhos desse sistema penal punitivista
Retorno as trevas do Século XIII, Martelo das Feiticeiras,
Inquisitorial
900 mil “manos” reclusos em tumbeiros [1]
de pretos tão pobres
E pobres tão pretos
ADPF 347 estado de coisas inconstitucional
Castro Alves, exortou
Um de raiva delira, outro enlouquece
Outro, que de martírios embrutece
Cantando, geme e ri!
Senhor Deus dos desgraçados! (…que chegou agora?)
Dizei-me vós, Senhor Deus! (Meu navio negreiro…)
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros, noite, tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Vítima espectador da arena midiática do espetáculo penal
Embates semânticos sem norte
Lei e Ordem
Direito penal mínimo
Direito penal do inimigo versus direito penal do cidadão
Abolição criminal, uma utopia?
Babel de correntes doutrinarias
Penso, existo, logo sinto
O crime me procurou e encontrou
Dias sem sol
Noites ausente a lua
No asfixiante
espaço escuro da cafua
Sob artificial luz das lâmpadas GE, Philips, Osram…
Refletem em minha pele camaleônica parda-amarela-esverdeada
Longe do afeto da família
E dos beijos da “mina”
Ociosa rotina a corroer meus neurônios,
sem trabalho, sem horário de serviço,
O homem não se sente mais homem,
Vira animal, desajusta-se por completo
Pensamentos maus, afasta-te,
Pensamentos bons, acolhe-me
Estafado, sob o vigilante olhar de embalsamador de cadáveres do
CAR-CE-REI-RO…
o quase sincero
Amigo destes anos amargo de fel
A linha tênue da fronteira nos separam – liberdade/prisão
Ouço a sinfonia de silêncios, trilha sonora do meu drama e da minha trama
Trespassado pelo silvar do vento e o ranger das pesadas grades
cúmplices fieis do firme cadeado
Paredes frias, camas solitárias
Lá fora sobre a laje da insólita cela, o grasnar de corvos,
Nevermore Poe
Nevermore Poe
Sombrio presságio,
não te louvo, lar ingrato
Me ressocializa
Ou torna-me douto desta invertida universidade
Enclausurado ouvi o consolo do mestre Beccaria:
“A medida que as penas forem mais brandas,
quando as prisões já não forem, a horrível mansão
do desespero e da fome, quando a piedade e a
humanidade penetrarem nas masmorras, quando
enfim os executores impiedosos dos rigores
da justiça abrirem os corações à paixão, as leis
poderão contentar-se com indícios mais fracos para
ordenar a prisão”. [2]
Hoje, o sussurrar dos princípios iluminista ecoou em meus ouvidos,
Se o Leviatã punitivista que aprisiona não cuida dos irmãos reclusos…
Nos livre São Jorge do recrutamento das falanges facciosas
Sob o teto escuro da cafua…dias ausente de sol…noites sem luas
[1]Segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgados pelo jornal O Globo [1], a pandemia da Covid-19 pode ter levado o Brasil ao trágico marco de 919.651 presos, número que o consagra como terceiro país que mais prende no mundo, atrás apenas China e Estados Unidos.
[2] Dos Delitos e das Penas/Cesare Beccaria. Bauru, SP: EDIPRO, 1993.p.240.
MGNeto
Advogado
Adorei o texto. Gostaria do e-mail do escritor. É possível?