Bancos acima de tudo, juros acima de todos – disseram os ministros do STF, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os interesses dos Bancos foram colocados pelo STF acima dos interesses dos cidadãos e da própria constituição.

Bancos acima de tudo, juros acima de todos – disseram os ministros do STF

por Fábio de Oliveira Ribeiro

O julgamento do RE 860631 provocou uma verdadeira revolução antidemocrática no sistema constitucional brasileiro. Mas é preciso dizer que essa revolução, que foi lentamente construída mediante interpretações seletivas da Constituição Cidadã, começou em 1991.

Originalmente, o § 3º, do art. 192, da CF/88, continha uma norma expressa e auto aplicável que excepcionava a regra do caput em relação à necessidade de regulamentação do sistema financeiro por lei complementar. a limitação dos juros a 12%. Ao dizer que os juros “não poderão ser superiores a 12% ao ano” o constituinte estabeleceu um limite para o próprio legislador que deveria ser interpretado como um direito outorgado aos cidadãos que não poderia ser ignorado pela Suprema Corte. Mas foi exatamente o que ocorreu quando da edição da Súmula Vinculante 7.

Desde que a matéria comentada foi julgada, o STF interpretou a CF/88 de maneira seletiva em diversas oportunidades. Isso é um truísmo que não precisa aqui exemplificado. Mesmo assim, nunca é demais lembrar outro caso grotesco. Refiro-me obviamente à decisão proferida em 17 fevereiro de 2016 no HC 126.292.

Ao julgar o HC 126.292 o STF entendeu que os réus podem ser presos após a condenação em segunda instância e antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória. Esse foi o entendimento que prevaleceu quando da prisão de Lula em decorrência da qual o Poder Judiciário facilitou a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018.

Há alguns dias o STF julgou o RE 860631 firmando o entendimento de que “É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal”. Referida decisão pode e deve ser considerada teratológica.

O texto da nossa constituição é claro “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5°, LIV). Portanto, a norma que permitiu aos Bancos expropriar bens sem ajuizar ação judicial em que seria garantido ao devedor o “devido processo legal” não deveria ser considera constitucional.

A decisão proferida pelo STF no RE 860631 viola acintosamente o art. 5°, LIV, da CF/88. A interpretação seletiva do texto constitucional dada pela maioria dos ministros do STF em favor dos banqueiros nesse caso é evidente e asquerosa. Não compete à Suprema Corte suspender norma expressa da constituição ou reescrever o texto dela.

Ao agir como se estivesse acima do texto da CF/88 (cujo cumprimento tem o dever de resguardar), para beneficiar os banqueiros, o STF inventou uma nova espécie de “indevido processo ilegal extrajudicial de expropriação patrimonial” sem intervenção do Judiciário. Os direitos outorgados ao comprador pela própria CF/88 deixaram de existir, um Tribunal de exceção dos Bancos gerido por banqueiros foi criado.

Nunca é demais lembrar aqui que os Bancos são as únicas instituições privadas capazes de provocar catástrofes financeiras nacionais e internacionais. Apesar de regulados, eles podem dizer qual será o preço do dinheiro (ou seja, a taxa de juros). O controle que eles exercem atualmente pelo Banco Central impede o Estado de controlar realmente o que os banqueiros fazem ou deixam de fazer. Sendo assim, me parece evidente que não é aconselhável dar aos banqueiros o direito de expropriar imóveis que eles financiam mediante contratos de financiamento de adesão cujas cláusulas eles mesmos definem levando seus próprios interesses.

Em decorrência do poder que exercem, os banqueiros podem iludir os clientes levando-os a assinar contratos aparentemente vantajosos. Mas quando o mercado for chacoalhado por uma crise criada pelos próprios banqueiros, eles aumentarão a taxa de juros a níveis que se tornarão insuportáveis para uma quantidade crescente de mutuários desempregadas. Nesse caso, em decorrência do que consta da Súmula Vinculante 7 e do Acórdão proferido nos autos do RE 860631, os Bancos maximizarão seus lucros expropriando rapidamente a maior quantidade possível de imóveis revendendo-os sem qualquer dificuldade ou custo adicional.

O terrorismo financeiro dos Bancos é diferente qualitativamente da autotutela politica dos bolsonaristas que invadiram e depredaram o prédio do STF? A resposta é NÃO, mas ao julgar o RE 860631 os ministros do STF “pró-negócios como de costume” disseram que SIM. A privatização da distribuição de justiça é uma característica do neoliberalismo jurídico, não uma norma de interpretação do texto constitucional que permite ao STF respeitá-lo ou não aplicá-lo de acordo com quem será afetado pela decisão.

Ao interpretar a constituição de maneira seletiva para beneficiar os banqueiros nos dois casos comentados (Sumula Vinculante 7 e RE 860631) o próprio STF abriu caminho para outros órgãos da administração pública federal, estadual e municipal, fazerem o mesmo. Essa tendência foi resumida de maneira lapidar por Jair Bolsonaro quando ele disse “Eu sou a constituição” em abril de 2020. O STF também não é a constituição, mas se comporta como se pudesse ser a constituição sempre que a interpreta de maneira seletiva para beneficiar agentes poderosos como os bancos.

A Sumula Vinculante 7 e o Acórdão proferido no RE 860631 configuram uma verdadeira revolução antidemocrática porque doravante a CF/88 não pode mais ser chamada de Constituição Cidadã. Ela se tornou a constituição dos banqueiros, que tem o poder de dizer em última instância quanto dinheiro eles ganharão expropriando imóveis financiados durante uma crise financeira que foi criada pelos próprios Bancos com ajuda do Banco Central independente do governo (e dependente dos próprios banqueiros). “A constituição somos nós”, podem agora dizer os presidentes do Bradesco, Santander, Itaú, Safra, etc…

Os interesses dos Bancos foram colocados pelo STF acima dos interesses dos cidadãos e da própria constituição. Mas nenhum ministro daquela Corte jamais sentirá os efeitos deletérios das escolhas que eles fizeram ao criar a Sumula Vinculante 7 e julgar o RE 86063.

Recentemente, o sexismo das Forças Armadas foi questionado no STF através das ADIs 7500, 7501 e 7502. Nesses três casos o PGR está coberto de razão.

A CF/88 não apenas garante a igualdade dos cidadãos brasileiros sem qualquer distinção de sexo, raça, religião ou opção política. Na verdade, o texto constitucional também obriga o Estado a adotar medidas para impedir qualquer tipo de discriminação e a criar políticas públicas que permitam a inclusão social de grupos tradicionalmente marginalizados. É evidente, portanto, que as normas sexistas que o PGR considera inconstitucionais nas ADIs 7500, 7501 e 7502 não estão em conformidade com o texto da constituição.

Todavia, é preciso dizer aqui que o entendimento cristalizado nas normas que o PGR afirma ser sexista e inconstitucional, é apenas uma consequência da incapacidade do STF de aplicar integralmente o texto da CF/88 aos banqueiros. Foi a seletividade pró bancos e anti Lula, reafirmada quando do julgamento do RE 860631, que possibilitou ao Exército, Marinha e Aeronáutica editar normas sem se preocupar se elas se adequariam ou não à CF/88.

Enquanto o STF não superar a tendência que ele mesmo criou de aplicar ou não aplicar o texto da constituição, o princípio “Eu sou a constituição” continuará a fragilizar o Estado de Direito e a fomentar o racismo, o sexismo, a intolerância religiosa e sua vertente autoritária: o militarismo politizado. O STF é e deve ser o guardião da constituição e não o redator ad hoc dela a cada decisão que profere com temor reverencial de prejudicar os “negócios como de costume”.

No caso específico das ADIs 7500, 7501 e 7502, o sexismo nas Forças Armadas não afeta em nada os interesses dos banqueiros. Portanto, é evidente que o STF pode julgar procedente aquelas três ações. Mas ao fazer isso, a Suprema Corte apenas confirmará a tendência seletiva que os ministros criaram de dar aos Bancos o que eles querem negando a si mesmo a autonomia que deveria ter em todos os casos (e não apenas naqueles casos em que os banqueiros não podem se considerar prejudicados).

E assim chegamos ao final da narrativa constitucional iniciada em 1988. Mas antes de terminar o texto devo mencionar algo relevante.

Os juristas já disseram quase tudo sobre os danos que a Lava Jato causou ao sistema de justiça, mas esqueceram o principal. A restauração do garantismo em matéria processual penal teve um preço: a destruição total das garantias trabalhistas constitucionais em relação aos empregados das plataformas de internet.

O STF aproveitou o golpe de 2016 para desmantelar a marretadas todas as barreiras constitucionais que impediam a super exploração dos empregados por plataformas como o UBER. A extração de lucros exorbitantes sem custos trabalhistas ou previdenciários foi garantida de maneira permanente aos barões feudais dos dados norte-americanos. Isso explica porque Joe Biden se recusou a apoiar o golpe de estado planejado por Bolsonaro e a quadrilha de generais que ele comanda.

Um Estado que não arrecada nada ou quase nada das Big Techs e das plataformas de internet (setores extremamente rentáveis que ainda por cima embolsam verbas de publicidade de empresas privadas e públicas) não poderá redistribuir muita coisa aos cidadãos. Nesse contexto, pouco importa se Lula foi ou não eleito. Ao colocar os Bancos acima da constituição e legitimar o escravagismo algorítmico, a Suprema Corte esvaziou a política e castrou o Brasil. Esse será o efeito indireto mais duradouro da Lava Jato. A operação comandada por Sérgio Moro e Deltan Dellagnol não foi um objetivo em si, mas apenas um desdobramento episódico da tendência de desconstitucionalização da constituição criada pelo STF quando aprovou a Súmula Vinculante 7 em 1991.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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  1. O preço do dinheiro. Está aí uma expressão que, se chegasse um dia a ser entendida pelo vulgo, possibilitaria a compreensão do real funcionamento do mundo, do salário, e do consumo. Ou não. O essencial é que, para o vulgo, o homem comum, dinheiro é moeda corrente. Para o banqueiro, moeda corrente são os juros. Em outras palavras, dinheiro é coisa de pobre. O “dinheiro” dos banqueiros – e, vale dizer, dos ricos – é outro, é o preço do dinheiro: os juros. Qual a chance que eu teria de explicar para um homem comum que, quando ele toma um empréstimo, ou financia a aquisição de um bem, não há dinheiro algum envolvido nessa operação, apenas lançamentos contábeis? E que o único “dinheiro” envolvido nessa fábula é o dinheiro que, naquele instante, circula nos bancos e no sistema financeiro, inclusive o próprio salário desse homem comum? E que somente quando ele pagar, ao receber seu salário, a primeira parcela do empréstimo ou do financiamento, haverá de fato algum dinheiro envolvido na transação, ou seja, os juros acrescidos ao valor da parcela paga? E que esse dinheiro passou a existir quando seu salário depositado em conta corrente (ou investido em poupança), e devidamente aplicado pelo Banco, gerou receita financeira da qual o banco se apropriou em sua quase totalidade, destinando à remuneração desse pequeno correntista ou poupador somente uma fração infinitesimal desse rendimento? Assim como o salário do trabalhador é pago pelo próprio trabalhador (com o valor gerado pelo seu trabalho e, novamente, apropriado pelo empregador em sua quase totalidade), também o rendimento obtido pela sua poupança é igualmente extraído do rendimento de seu saldo bancário aplicado e investido pelos bancos, e dos impostos e taxas (privadas e públicas) igualmente pagas com seu salário, e que retornam a ele em quantias ínfimas? E que tudo isso só ganha existência prática circulando em bancos e no sistema financeiro? Se o empregador é uma sanguessuga do trabalhador, o banco é a sanguessuga da sanguessuga. O homem comum – destinatário desta pequena homilia – ainda está assistindo ao antigo filme americano em que os ladrões saíam correndo dos bancos carregando sacos e mais sacos de dinheiro, com aqueles $ impressos. E que, pouco tempo depois, tinham que repetir o assalto, porque haviam gastado todo o “dinheiro”. E os verdadeiros ladrões – os banqueiros e os ricos em geral – ficavam às gargalhadas, vendo aquela romantização do processo pelo qual eles mesmos se apropriam do trabalho e do salário do homem comum. Como eu sempre digo: políticos, juízes, mídia, são todos o que são: moleques de recado do Binômio Bancos/Corporações. Quem tenta desgarrar-se desse esquema termina seus dias suicidado, assassinado, exilado, ou encerrado em uma masmorra curitibana. Nesse último caso, às vezes te deixam sair de lá, para iniciar uma nova rodada de aquecimento da economia, via consumo, crédito, ou coisa que o valha. É preciso manter o sistema em funcionamento, aquecido. São as tais políticas cíclicas. Aquece, gera receita, acumulação, e esgotamento do elemento produtor: o homem assalariado. Os bancos engordam, se cevam como porcos, e os exploradores ainda existentes do elemento humano vão buscar um político progressista qualquer, dão-lhe uns tapinhas nas costas, fazem-lhe alguns elogios sub-reptícios (“Esse é o cara!”), somente para colocar de novo essa roda em movimento. Onde? Nos bancos e no sistema financeiro. E segue o mundo.

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