Dilma Roussef e a história que falta contar, por Marco Piva

Dilma Roussef sofreu um processo de desgaste político no qual se misturaram oportunistas de todas as cores e espécies

Marcelo Camargo – Agência Brasil

Dilma Roussef e a história que falta contar

por Marco Piva

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, decidiu por unanimidade no dia 21 de agosto pelo arquivamento da denúncia que motivou o impeachment da presidente Dilma Roussef (*). A própria Justiça concluiu: as famosas “pedaladas fiscais” nunca existiram e foram usadas como pretexto para embalar uma das principais jogadas políticas da história recente do país.

Como todos devem se lembrar, Dilma Roussef sofreu um processo de desgaste político no qual se misturaram oportunistas de todas as cores e espécies, mas principalmente lideranças daqueles partidos que queriam o PT fora do governo de qualquer maneira, já que pelas urnas não havia sido possível derrotá-lo.

O apoio da imprensa ao impeachment foi fundamental. Páginas e páginas de jornais, horas e horas de notícias na TV e no rádio, redes sociais incansáveis animaram um forte movimento popular que operou de fora para dentro do Congresso a ponto de a presidente ter encerrado precocemente seu segundo mandato com um apoio parlamentar mínimo.

O governo Dilma II já vinha enfrentando uma série de dificuldades em consequência de uma conjuntura mundial em crise e de iniciativas locais que impactaram negativamente a economia. No primeiro caso, um país como o Brasil, ainda dependente de comodities, sofria a queda nos preços de suas exportações. No segundo caso, uma isenção fiscal mal planejada levou a distorções de competitividade no mercado.

O fato é que um governo deve ser julgado preferencialmente nas urnas, de forma livre e soberana pelo voto popular. No caso de Dilma, alguns fatores extrapolaram o julgamento normal e democrático de seu mandato. Um deles, com certeza, foi a quebra da confiança parlamentar, indicador fundamental para a sustentação de qualquer governo. Apesar de ter formado uma ampla base congressual em seu primeiro mandato, a presidente não conseguiu mantê-la e repetí-la no segundo.

Mas, o que levou ao impeachment de Dilma? Está claro, pela decisão da Justiça, que não foram as “pedaladas fiscais” a causa de sua destituição. Tampouco sua personalidade forte, retidão de caráter e honestidade. Nem mesmo eventuais erros em decisões econômicas importantes. Dilma perdeu no jogo político e quando disso se trata, é importante identificar de quais atores estamos falando.

Em primeiro lugar, é preciso falar de uma certa elite provinciana e aquinhoada economicamente, cuja matriz de pensamento não abandonou as premissas do escravagismo secular, apesar de arrotar ideias liberais. Foi essa elite que sempre comandou a política brasileira, buscando eleger e perpetuar no poder lideranças dóceis e oportunistas, que liderou o processo de impeachment, sabedora que teria o apoio incondicional de uma imprensa acostumada a reverberar acriticamente as mesmas fontes de penamento.

Daí para galvanizar um movimento popular de contestação ao governo foi um pulo. Transmissões ao vivo das manifestações alimentavam que mais gente a elas se somassem criando um circuito que se encerrava em si mesmo e cujo único objetivo era tirar o PT do governo.

Entre a posse de Dilma Roussef para o seu segundo mandato e a sua destituição não se passaram mais do que 20 meses. Foi tempo suficiente para forjar a ideia de que o país iria afundar definitivamente e sem volta caso a presidente seguisse no poder. Os “analistas políticos”, os “comentaristas econômicos”, as mesmas fontes de sempre vaticinavam o desastre iminente. Uma corrente típica de senso comum acendeu a pira da imolação presidencial.

Porém, a história costuma ser implacável. Ela tem sua própria dinâmica e atropela indiferente aqueles que a negam, para lembrar um trecho da canção de Pablo Milanés. No dia que deixou o Palácio do Planalto, de cabeça erguida e rodeada por seus ministros e apoiadores, a ex-presidente proclamou que tinha certeza da injustiça que se estava cometendo não contra ela, mas contra o Brasil.

O resultado dessa verdadeira novela todos conhecem. Um vice-presidente viu no impeachment a sua oportunidade de assumir o governo, o que de outra forma jamais conseguiria. Elaborou um plano ao qual batizou de “Ponte para o futuro” e que recebeu elogios da elite que o empoderou como se uma tábua de salvação fosse. Na prática, o que se viu foram duas coisas: a primeira, o esgarçamento do tecido social, com o agravamento das condições econômicas; a segunda, a implosão do sistema político institucional com a ascensão da extrema-direita que, com sua ganância de poder, em pouco tempo eliminou até mesmo seus aliados conservadores. PSDB e demais partidos conservadores foram tragados por uma ordem unida extremista onde se mistura m messianismo, corrupção e incompetência administrativa, sob o manto de um suposto apoio militar.

E o Brasil chega em 2023 com Lula presidente depois de amargar 580 dias na prisão por causa de processos judiciais viciados e de sofrer uma das campanhas mais sórdidas nos meios de comunicação. Dilma Roussef é presidente do banco dos BRICs, talvez o maior e mais importante arranjo geopolítico das últimas décadas porque coloca em xeque a hegemonia dos Estados Unidos.

O Brasil volta ao cenário mundial tratando de recuperar o prestígio perdido nos últimos anos e os indicadores econômicos sinalizam ainda que timidamente uma retomada do crescimento. Os algozes de um Estado indutor do desenvolvimento estão cercados pela ineficácia da alternativa que apresentaram desde 2016. Mais do que nunca, cabe sim a execução de um orçamento fiscal que equilibre as contas públicas e, ao mesmo tempo, olhe com generosidade para a população mais pobre. O que não existe mais é espaço para aventuras místicas e salvacionistas, promotoras de lambanças e autoritarismos ultrapassados.

Por fim, resta ainda o mea culpa da chamada grande imprensa, hoje nem tão grande e nem tão imprensa assim. O papel por ela desempenhado no impeachment de Dilma Roussef e, principalmente, nos últimos anos ajudou a transformar o país em um anão diplomático e motivo de chacota internacional. Isto não deve passar em branco na análise da história recente. A mídia se quiser recuperar seu papel de olhar crítico da sociedade precisa assumir que colaborou para a deterioração do quadro político nacional, o que levou a um sentimento quase generalizado de criminalização da política e suas consequências de intervenção judicial. Sem essa autocrítica dificilmente voltaremos à n ormalidade democrática.

(*) https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-brasil/2023/08/21/justica-mantem-arquivamento-de-acao-contra-dilma-por-pedaladas-fiscais.htm

Marco Piva é jornalista, apresentador do programa Brasil Latino, na Rádio USP FM 93,7 (São Paulo) e pesquisador do Centro de Estudos Latino-americanos de Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (CELACC/USP)

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