Lula, Zanin e o racismo no STF: a gratidão seletiva, por Laura Santos

Escrevo esse texto-desabafo em homenagem a esses pacientes companheires, que me ajudaram a perceber o bê-a-bá do racismo tupiniquim.

Lula, Zanin e o racismo no STF: a gratidão seletiva

por Laura Santos

No ano de 2006 entrei na Universidade Federal de Sergipe, no curso de Direito, sem cotas. À época, eu era uma preta de esquerda, recém ingressa no mundo dos movimentos sociais, fazia parte do Movimento Passe Livre, do Centro Acadêmico, participava de reuniões no recém formado PSOL e no veterano MST, porém o racismo é um mecanismo de dominação tão perverso, que eu, preta, mesmo sabendo que valia um quarto de homem branco, era contra as cotas raciais. A interiorização do preconceito tinha atingido em mim o grau máximo. Mas graças à paciência dos meus companheiros  e companheiras de luta, depois de inúmeros e-mails e referências trocadas, pude perceber a importância das cotas. Escrevo esse texto-desabafo em homenagem a esses pacientes companheires, que me ajudaram a perceber o bê-a-bá do racismo tupiniquim.

Da mesma forma que eles e elas, gostaria de me dirigir ao pessoal da esquerda que, em 2023, depois de um dos piores governos da história desse país, apoia a candidatura de Zanin ao STF e afirma que a cor do indicado nada tem a ver com a escolha. A esses companheiros, gostaria de dizer o seguinte: tem tudo a ver sim. E mais. A indicação de Zanin é um ótimo exemplo do racismo nosso de cada dia.

Primeiro, passemos ao óbvio. Quais as prerrogativas necessárias para alguém ser indicado ao Supremo? De acordo com o art. 102 da Constituição Federal, é necessário apenas, idade superior a trinta e cinco anos, reputação ilibada e notável saber jurídico. Tudo bem. Mas como podemos mensurar a reputação e o saber dos futuros ministros?

Depende. Se for branco e homem, basta que tenha uma boa desenvoltura junto aos Tribunais Superiores e seja bem relacionado que a característica “notável saber” será intrínseca. Logo, basta que um homem branco seja um bom profissional jurídico para que esteja apto ao ingresso na nossa mais alta corte. Nesses casos, o notável saber jurídico é constatado apenas pelos serviços profissionais prestados por eles de forma diferenciada. Nenhum deles precisa ser autor de importante obra jurídica, possuir diploma de mestre ou doutor ou ter idade avançada.  

Caso o futuro ministro seja preto, no entanto, o notável saber deverá ser comprovado por outros meios. Ele deverá ser conhecido de todos, ter diploma de mestre, doutor, ser autor de obras e artigos acadêmicos jurídicos, só para citar os requisitos mínimos. E ainda assim, depois de integrar a Suprema Corte, aqui e ali dirão que lá chegou por causa das cotas. Exemplo disso foi o que aconteceu com Joaquim Barbosa. Independente de, posteriormente, ter se comportado de maneira questionável, seu currículo, comprovando seu notável saber jurídico, era extenso.

Agora, se a futura ministra for preta e mulher, os critérios para a aferição do notável saber serão ainda mais rigorosos. Acho até que elas não deverão nem ser juristas efetivamente, e sim semi deusas. Mas pasmem, excelentíssimos leitores: elas existem.

Da mesma forma que Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez estavam “escondidas” do grande público até 2015 , em 2023, juristas comprometidas com a democracia, como Thula Pires, Soraya Mendes, Eunice Prudente, Vera  Lúcia Santana e Lívia Maria Vaz,  curiosamente, também foram colocados para “debaixo do tapete”. Então, quando o movimento feminista negro pede a Lula que indique uma delas, isso não significa a ausência de capacidade técnica ou posicionamento crítico das mesmas, muito pelo contrário. Significa que, em 2023, mulheres pretas juristas extraordinárias foram invisibilizadas por apenas um motivo: racismo. E ponto. Nada mais.

Agora voltemos à indicação de Zanin. Um ótimo advogado, mas, para além da atuação no caso Lula, sem contribuição jurídica relevante alguma. Sem mestrado, doutorado ou obra importante publicada. Foi destacado em sua profissão, basicamente por sua atuação junto às cortes Superiores e seu bom relacionamento com os pares. Um ótimo advogado, mas sem nada que denote um saber excepcional.

Obviamente sou contra qualquer espécie de academicismo, em que um notável saber é comprovado por um título universitário. No entanto, duvido que qualquer preto ou preta fosse indicado ao Supremo, caso não tivesse extensas láureas acadêmicas e profissionais. Ainda assim, estão dizendo por aí que Lula indicará seu ex defensor ao STF.

 Curiosamente, ele iria comprar briga com o Congresso por causa de Zanin, um homem branco ao qual ele supostamente teria uma dívida de gratidão. Ora, ele não pôde ser grato a Walter Delgatti, Gleisi Hoffman, Roberto Requião, Eugênia Gonzaga e principalmente, às milhares de mulheres pretas que carregaram sua eleição nas costas. Como sempre, elas podem esperar mais um pouquinho. O que são mais alguns anos pra quem já ficou cento e trinta e dois anos sem representação alguma? E quando iremos cumprir os tratados internacionais em que firmamos o compromisso de tornar nossas instituições mais inclusivas?! 

Caso Zanin realmente seja indicado, ficará evidente que com Lula, o notável saber do homem branco virá acompanhado de mais um requisito: a dívida de gratidão seletiva. Como foi muito bem dito no “Manifesto por juristas negras no Supremo Tribunal Federal” assinado por diversas instituições , mulheres pretas , “com notório saber jurídico e comprometidas com o espírito emancipatório e progressista da nossa Constituição Federal” não faltam. Coragem para combater o racismo nosso de cada dia? Ah, esse parece estar faltando até mesmo em um dos brasileiros mais combativos/lindos da história desse país. Mas talvez ele, assim como outros progressistas, não tenham percebido isso. Somos todos seres humanos, demasiadamente humanos. E dos mecanismos racistas (inclusive os psíquicos) que estruturam nossa sociedade, ninguém escapa. Inclusive a preta que agora vos alerta/fala. 


Laura Santos – Advogada, esp. em Direito Penal e Criminologia Crítica e doutoranda em História da Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade Federal de Sergipe.

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Redação

7 Comentários

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  1. Fiquei contente quando Lula indicou Joaquim Barbosa. Quando vi aquele horror do julgamento midiático do Mensalão conduzido por ele, Rosa Weber assessorada pelo Sérgio Moro condenando porque a literatura permite, o ‘dominio do fato’ desvirtuado pra caber naquele processo, achei tudo sofrível. Não consegui assistir na época, a não ser os primeiros ‘episódios’. Assisti inteiro uns anos depois, e achei esse julgamento dirigido pelo Joaquim Barbosa muito indigesto. Contemplar a diversidade é fundamental, sou de um coletivo de mulheres pretas, mas não necessariamente, pelo menos no caso do Joaquim Barbosa, e no meu modo de ver, garantiu uma boa coisa. Ali no Mensalão estavam sementes dos métodos da Lava Jato.

  2. Excelente artigo da advogada Laura Santos. Uma questão mal caracterizada e comprovada se refere ao notável saber jurídico. Tenho observado que praticamente todos os Ministros dos diversos tribunais possuem notável conhecimento da legislação (citam com facilidade o número de leis, decretos e até de resoluções e circulares), além da capacidade extraordinária de lembrar detalhes importantes da jurisprudência sobre o assunto tratado. Entretanto, atentam pouco para racionalidade do entendimento e menos ainda para o espírito crítico que deveriam possuir no sentido de propor reformulações que a nossa legislação necessita.

  3. Entendo a questão, mas isso não supera o fato de Lula estar indicando alguém que realmente ele sabe ser comprometido com a República. Não por ser seu amigo, porque o Lula não indicou vários afetos e Zanin seria apenas mais um.

    E Joaquim Barbosa teve que comprovar ser muito mais que um branco… mas não para o Lula ou o PT! Ele foi indicado numa época que a sociedade ainda acreditava que si juízes brancos da elite iam pro STF. O PT inovou pondo um “negro da elite”.

    Tão elite que, por iniciativa própria, Joaquim se esforçou deverás em mostrar alinhamento e seletividade. Numa onda imoral que arrastou outros ministros indicados por Lula e os dois PGRs escolhidos na já independente lista tríplice.

    Esse risco Lula sabe que não corre com Zanin.

  4. Joaquim Barbosa atrapalhou a inclusão identitária no STF, mas não só dos grupos minorizados: ao escancarar a falta de republicanismo (antes camuflado, posto que só a direita branca governou o Brasil), Barbosa impôs não só maior seletividade aos negros como criou mais seletividade em todos os outros grupos, já que NENHUM ministro indicado depois de Barbosa foi fiel à Constituição, sobrando apenas a fidelidade canina ao efêmero governo de plantão.

  5. Li a matéria com especial atenção. A jurista traz a tona um tema que tem sido escamotear, não só para o STF, como também em outros espaços de poder. A cor da pele, no caso a branca, já é um atributo natural nestes processos. Nos fazendo ficar estarrecidos quando os não brancos são promovidos.
    Não é uma tese e sim um fato o que a Laura diz é a pura verdade. Axé

  6. O Lula sabe, tanto quanto os cartórios, que a definição do sexo da criança dá-se no seu nascimento, depois, cada qual segue suas preferências. Assim é a escolha de ministros para o STF. Lula foi da mais criteriosa cautela e prodigalidade na escolha de seus ministros que invariavelmente o traíram até o limite da desconsideração de seu status de liberdade. Como advogada a articulista deve saber que depois do bem da vida, a liberdade é o maior e mais precioso bem que possuímos. Zanin, diuturnamente, junto ou a despeito de, contra tudo e contra todos, lutou pela liberdade do Lula. Zanin não só ganhou na justiça a liberdade do Lula, como GANHOU DA JUSTIÇA a liberdade do Lula, justiça essa que era flagrantemente inimiga pessoal- do Lula e do Zanin. A nomeação do Zanin não é presente e nem reconhecimento, é apenas justa. Aliás, chega a ser indecente essa contestação do nome do Zanin enquanto futuro nomeado à vaga no STF, como se fosse essa a única vaga a ser disponibilizada. A esquerda reclama do apoio e estupidez da direita que segue coesa, sem perceber que a coesão da direita está justamente no apoio incondicional que ela dá ao seus dirigentes. A esquerda é inimiga de si mesma.

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