Neoliberalismo, jornalismo e magia, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A mídia construiu o cenário político que levou ao golpe de estado de 2016 disfarçado de Impeachment sem crime de responsabilidade.

Neoliberalismo, jornalismo e magia

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Henri Hubert termina seu ensaio sobre a magia, dizendo que:

“É preciso observar, contudo, que a magia parece empregar infinitamente mais ritos simpáticos ou outros, destinados a particularizar a ação das forças sobrenaturais. Na religião, com efeito, a direção dessa ação, uma vez em curso, parece estar previamente indicada pela constituição, pela vida e pelas necessidades da sociedade. De outro ponto de vista, devemos observar que a magia carece de representações míticas que lhe sejam própria; seu panteão é um caos; ela retira os elementos das religiões, mas desorganiza esses elementos. Transforma as figuras míticas em forças, que ela trata como os componentes de um poder cósmico indefinido. Sua evolução parece ser, portanto, inversa às religiões. A magia e a religião não atrelam a mesma importância às mesmas coisas. Sua diferença provem de suas funções na vida social.” (A Magia no Mundo Greco-Romano – Edição Bilíngue e Crítica, Henri Hubert, edusp. São Paulo, 2021, p. 201 e 203)

Mas é preciso dizer que a popularidade da magia não decorria necessariamente dos magos, bruxas, adivinhos, curandeiros, encantadores, etc… desorganizarem os elementos míticos das religiões de maneira caótica. Como adverte Keith Thomas:

“Muitos leigos não contemplariam jamais a possibilidade de recorrer a um auxílio mágico se não desconfiassem que a magia já havia sido usada contra eles. Nesse ponto, porém, o conflito entre as terapias rivais da magia e da religião atingia seu ponto culminante, pois embora a maior parte dos clérigos aceitasse a possibilidade da magia maléfica, eles não eram capazes de competir efetivamente com os remédios oferecidos pelo curandeiro, ou com os diversos procedimentos populares tradicionais.” (Religião e o Declínio da Magia, Keith Thomas, Companhia das Letras, São Paulo 1991, p. 223-224)

Mesmo que não pudesse realmente alterar o curso dos fatos, modificar as leis naturais ou curar uma doença incurável, a magia funcionava (e ainda funciona) como um placebo. Ela preenchia o vazio existencial produzido pela religião nos casos em que predominava a percepção de que um clérigo nunca poderia competir com um mago ou desfazer o feitiço lançado por um bruxo.

Vejamos agora como a imprensa neoliberal brasileira opera segundo critérios mágicos.

Os jornais, revistas e telejornais construíram o cenário político que levou ao golpe de estado de 2016 disfarçado de Impeachment sem crime de responsabilidade. Com o intuito de abrir caminho para a adoção de uma agenda neoliberal que vinha sendo rejeitada pela maioria dos eleitores brasileiros de maneira consistente desde 2002, os barões da mídia fizeram tudo que foi necessário para desdemocratizar nosso país.

Após tomar posse, o usurpador Michel Temer rapidamente introduziu uma reforma trabalhista. Direitos sociais foram revogados ou simplesmente esquecidos. A adoção do teto de gastos limitou investimento em áreas essenciais, criando condições para a implementação futura de um programa de privatizações após o sucateamento da saúde e da educação. Algumas estatais foram privatizadas.

Jair Bolsonaro e Paulo Gueres continuaram a seguir o cânone do neoliberalismo imposto à força goela abaixo da população brasileira. Mas a pandemia e seus efeitos econômicos catastróficos interromperam a agenda neoliberal, obrigando o Estado a investir mais recursos no SUS e a criar um programa emergencial de distribuição de dinheiro à população. Novas privatizações foram feitas, outras tiveram que ser interrompidas porque o governo miliciano perdeu sua capacidade de se impor por causa da CPI da Covid.

A imprensa comemorou a guinada em direção ao neoliberalismo. Mas começou a flertar com a magia no exato momento em que o sucesso da financeirização (cujos benefícios foram colhidos por poucos) começou a acelerar a desindustrialização, desemprego e desespero crescente. As privatizações não resultaram em novos investimentos. A capacidade do Estado intervir na economia para gerar empregos foi abandonada por Temer e Bolsonaro e ficou seriamente comprometido (afetando de maneira negativa a retomada industrial proposta por Lula).

O neoliberalismo é a causa eficiente dos problemas enfrentados pelo Brasil nesse momento. Mas a imprensa não quer fazer o mea culpa nem tampouco pode desistir das fórmulas mágicas que defendeu. Isso a obriga o jornalismo econômico a afundar ainda mais na magia. Ele precisa desesperadamente reescrever a história recente do Brasil. O fracasso neoliberal durante as gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro é retratado como se fosse um período de opulência e bonança que não retornará por causa da agenda econômica adotada por Lula. Mas para esse encantamento funcionar, a imprensa precisa minimizar o desespero das pessoas comuns tentando comprar/ganhar pedaços de carcaças ou subindo no estribo dos caminhões de lixo para apanhar restos frescos de comida.

Entre 2016 e 2022 milhares de empresas pequenas, médias e grandes fecharam. Algumas delas, porém, não encerraram suas atividades por causa da pandemia. Muitas já haviam fechado as portas antes dos políticos e pastores bolsonarstas começar a utilizar o Covid-19 para desonerar o orçamento deixando a população morrer sabotando a produção de vacina e a vacinação da população. Confrontada com a bestialidade do neoliberalismo autoritário/evangélico, a imprensa recuou e passou a defender a ciência.

Esse recuo em direção à realidade, entretanto, foi interrompido. A posse de Lula fez a imprensa voltar a desorganizar os fundamentos da economia política para legitimar o caos neoliberal defendendo fórmulas mágicas. Isso ficou claro durante o apagão em São Paulo. Em vez de culpar a empresa privatizada e reconhecer os efeitos deletérios da privatização do setor, os jornalistas neoliberais colocaram a culpa na chuva e minimizaram o fato da Enel ter dispensado equipes de manutenção e deixado de fazer reparos preventivos na rede para maximizar a distribuição de dividendos aos acionistas.

A magia do jornalismo neoliberal garante o lucro das empresas privatizadas. Mas ele causa prejuízo aos comerciantes, microempresários e empresários que ficaram com suas lojas e empresas paralisadas por falta de energia elétrica durante vários dias. Isso para não mencionar milhões de cidadãos cujos estoques de comida congelada estragaram. O declínio da ciência econômica é fruto tanto do neoliberalismo quanto das fórmulas e atalhos mágicos empregados pelo jornalismo corporativo.

O apelo de Luis Nassif em favor do rigor econômico não convenceu os adeptos da magia neoliberal jornalística. Tudo indica que a economia real continuará afundando, pois os principais beneficiários das poções e filtros construídos com base no neoliberalismo autoritário pós-golpe de 2016 não podem recorrer à ciência econômica ou admitir que o governo a pratique lhes causando algo que eles considerariam um malefício indevido.

A eleição não deve mudar a política econômica? O espaço em que a democracia governa pode ser perpetuamente restringido pelos interesses mesquinhos dos especuladores financeiros?

O programa econômico do governo Lula, que tenta conciliar interesses neoliberais com uma nova agenda industrial e desenvolvimentista, parece fadado ao fracasso. Fernando Haddad não consegue deixar de ser refém da imprensa nem tem coragem para romper com as bruxas neoliberais que exigem mais privatizações e vomitam encantamentos contra a reindustrialização do país.

Transformado pela imprensa num imenso Hermes Trimegisto (o Satã dos magos, mas com um nome diferente) que exige submissão total do Estado e do governo, o Mercado usa todo seu poder simbólico e influência midiática para impedir o país de administrar sua petrolífera. O fato do Brasil ser dono de 51% da petrolífera é ignorado como se a propriedade privada dos sócios minoritários fosse mais valiosa e mais importante. Na Folha de São Paulo essa propriedade privada, aliás, assume uma característica sobrenatural.

A legislação comercial garante aos acionistas descontentes o direito de vender suas ações da Petrobras. Mas os jornalistas não pode admitir essa verdade factual. A magia opera efeitos à distância seguindo uma lógica caótica e irracional. Portanto, a Folha de São Paulo presume que é melhor os sócios minoritários constranger o Estado a não exercitar seu poder de comandar a petrolífera que foi construída com dinheiro público.

Numa economia em declínio por causa do neoliberalismo garantir lucros financeiros crescentes sem causar prejuízo ao Estado, a paz social e à população em geral é algo impossível. Todavia, se depender da mídia corporativa a magia da produção de riqueza monetária mediante a criação de dezenas de milhões miseráveis, desesperados, desempregados e famintos não será interrompida. Até quando? Até o povo brasileiro resolver virar o caldeirão do Mercado Trimegisto e incendiar as casas das bruxas e dos magos que conjuram demônios neoliberais nas páginas dos jornais?

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

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Fábio de Oliveira Ribeiro

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