O que há de cristão no discurso fascista?, por Marcelo Karloni

Aparelhamento ideológico do discurso cristão e messianismo no Brasil de 2022

Agência Brasil

O que há de cristão no discurso fascista?

por Marcelo Karloni

“Nem só de pão viverá o homem, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus”
Mateus 4:4

O versículo acima que faz parte da narrativa do livro de Mateus, no Novo Testamento, parece traduzir parte do significado da tensão política e social vivida hoje no Brasil e tentarei provar isso nas próximas linhas. Obviamente, não se tem a pretensão de oferecer uma nova interpretação textual por meio do uso de ferramentas teológicas, como hermenêutica ou exegese bíblica. Até porque, não sendo teólogo ou sacerdote de nenhuma comunidade cristã, seja evangélica ou católica de qualquer ramo, nem poderia fazê-la. Contudo, isso não impede que me atreva, no bom sentido, a usar o mesmo expediente tomado por Martin Lutero: a livre interpretação das escrituras. Ou será que voltamos à época pré-reforma protestante quando apenas “sacerdotes” podiam ler e interpretá-las?

Acredito que já tenha sido possível notar minha formação quanto à cosmologia, digamos assim. Sim, ela vem desse ramo do cristianismo: o protestantismo. Tenho vivência das escolas dominicais, dos grupos de jovens, dos seminários de formação teológica de pastores das igrejas históricas. Conheço bem – mas muito bem – a lente que seus membros mais antigos usam para interpretar o mundo e ouso dizer que nunca estivemos em um período tão nebuloso e distante no que se refere à valorização do saber por esses grupos.

Entretanto, o que desejo indicar aqui é abordar três questões fundamentais que acredito serem capazes de abrir uma via de leitura alternativa à nossa esquerda. Sim, é possível ser cristão e de esquerda, ainda que a esquerda – infelizmente –  apenas agora tenha se dado conta que não domina a linguagem desses grupos e, raramente, demonstra sinais de criação de diálogo com os mesmos.

Na verdade, fazendo um autocritica, pode-se dizer que a esquerda tratou por anos no Brasil – talvez por culpa da intolerância de muitos cristãos nominais (não legítimos, veremos que há diferença) – a igreja como lugar de não saber e alienação. Não, não é apenas isso que está lá. Como diz Caio Prado Jr., a história é construída com “seio das circunstancias históricas” e há de ser também reescrita. Então, comecemos perguntando: afinal, qual o lugar da igreja e do Estado na história? Sejamos breves e deixemos o aprofundamento para quem o desejar indo a fontes mais competentes. Tracemos algumas linhas, porém.

Vamos à Igreja primeiro. Lugar de fé e dogmas, esse espaço social é marcadamente o lugar também da estruturação da vida em suas dimensões não passíveis de relato após a experiência. O que isso quer dizer? Quer dizer que nesse lugar, legitimamente e protegido por lei, as experiências vividas não precisam de pesagem e medida para serem tidas como verdadeiras. Ali, basta a fé.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Ora, na definição de fé no mesmo Novo Testamento, mais especificamente na carta de Paulo aos Hebreus, capítulo 11, versículo 1, se assenta que fé é “(…) a convicção de fatos que não se veem”. Para o leitor, é texto. Para quem vivia sob perseguição e morte pela ditadura de César sendo comido por leões ou queimados vivos por Nero, não é apenas texto. É esperança.

O cristão no início de sua jornada após o ano 33 D.C. teria seu selo como tal, não um carro novo onde pregasse adesivos do tipo “esse foi Deus que me deu”. O selo do cristão e de sua autenticidade era a sua morte e a perseguição de sua família, a prisão, a penhora.

Não sei realmente se quem hoje se diz cristão se o diria ser durante essa época na qual não havia bancada de Bíblia, boi e bala juntas nos parlamentos. Essa “honraria” em ser cristão, iniciada por Constantino, demorou a realizar-se. Até então, em lugar de honra, bençãos e riqueza, pagava-se com a vida o assumir crer no Cristo. Miseravelmente, essa associação permanece e a ética protestante tão bem descrita por Max Weber alinhar-se-á à expansão do capitalismo na Europa. Recomendo ler “A ética protestante e o espirito do capitalismo”. Cristãos e esquerda ganhariam muito lendo, de preferência, juntos.

Sinais de eleição (escolha divina) e vocação são assim provadas por meio da prosperidade material. Não há cristãos pobres, diria essa lógica. Contraditoriamente, ao que ensinou o próprio Jesus Cristo quando diz que  “o Sol vem sobre bons e maus”(Mateus 5:45).

De todo modo, a importância desses grupos reside em estruturar a vida em uma dimensão que não se abre à ciência. A pós-vida, por exemplo, não pode ser comprovadamente tida como verdade científica e essa necessidade humana legítima de explicar a existência humana coube à fé.

A ciência e nossos métodos aqui têm limites que precisam ser reconhecidos. Não bastam os nossos doutorados, pós-docs e títulos. Mas a fé num filho de carpinteiro tem sido legitima e poderosa o suficiente para dar alento a milhares de pessoas que sofrem no mundo inteiro e que são frequentemente invisíveis diante do Estado e da própria academia. Nesse ponto, o perigo.

Na ausência de um Estado republicano e numa universidade ausente da periferia, posto que apenas busca rechear seu Lattes, o fascismo ganha espaço e faz-se presente. Capturados, os anseios dessa parcela da nossa população cede agora à vocação messiânica falsa, mas, ainda assim, presente. Chegam os mitos, os messias, os redentores que para essa parcela que vive em penúria correspondem a um quase tipo de Cristo que veio para salvá-los.

O próprio Cristo, Jesus, enfrentou esse dilema. Mesmo entre seus apóstolos havia quem pensasse que ele teria vindo para libertar o povo do domínio romano. Foi preciso dizer “meu reino não é deste mundo”(João 18:36).

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A importância do Estado, em sentido diverso, é estruturar outra dimensão. A dimensão do percurso, o cotidiano, a divisão do “pão”, a convivência e outras “pequenas” questões só resolvidas pela prática da política. A boa política. Nesse ponto, uma observação: essa tentativa demagógica do fascismo em desqualificar a política como espaço sujo, menos importante e culpada por tudo que há de perverso é a raiz mesma de muitas das questões que explicam o quadro atual no Brasil.

Precisamos urgentemente de cientistas políticos nas universidades, nas escolas, nas igrejas e nas praças para desfazer essa associação feita pelo fascismo. Não há incompatibilidade entre Igreja e politica. Se tomarmos a noção de EKLESIA (Comunidade), isso fica ainda mais fácil de entender. A vida em comunidade, marca de cristãos primitivos, pode ser sim possível, ainda que com diferenças de fé. Por quê? Porque não estamos em vida vivendo percursos isolados. Nosso percurso é junto do outro. É junto do negro, da mulher, do nordestino, do católico, do espirita, do evangélico e por ai vai…

O destino é, segundo a fé, de cada um, mas o percurso é de todos e a todos caberia a estruturação de uma vida minimamente digna entre todos esses. Cuidemos do percurso.

Portanto, se não há conflito em nível e profundidade suficientes para a ambiência hoje no Brasil vivida com tal grau de tensionamento politico animada por questões religiosas, o que explica esse momento? Tenho três pontos que me ajudaram a entender e, talvez, ajudem você também.

1. Aparelhamento ideológico

A captura das consciências e dos projetos transcendentais dos cristãos, os distanciaram de um dos maiores legados da reforma protestante para o mundo moderno, o uso da liberdade de consciência e da razão. Em essência, a reforma protestante é o uso da consciência livre por um homem que desafiou uma interpretação antes particular de sacerdotes, isso é elemento da democracia.

Mesmo entre igrejas históricas, as tradições de leitura, estudo e racionalidade foram substituídas no Brasil pelo culto a celebridades de canto e música. Cada vez mais, ao longo dos anos 1990, quem viveu nesse meio pode atestar o quanto o tempo de estudo foi substituído pelo tempo de celebrações musicais e espetáculos de grande bandas gospeis.

2. Fascismo autodeclarado como messiânico

Escatologicamente falando, o fascismo alçado à categoria de redentor assume, assim, a figura que lhe cabe de falso messias. Uma autoridade espiritual desprovida daquilo que Deus é em essência, pois, segundo a carta do apostolo João, Deus é amor(I João 4:08).

O fascismo é, portanto, ANTICRISTÃO. Segui-lo e defendê-lo seria o mesmo que seguir uma figuração do que se espera acontecer, segundo os relatos do último livro do Novo testamento, o Apocalipse.

3. Negócio e mercado combinam com a definição de templo do Velho Testamento, mas não do Novo Testamento

O templo de adoração no Antigo Testamento físico era símbolo do que seria a realidade trazida no Novo Testamento. Enquanto no Antigo Testamento o judeu espera a prosperidade material e o domínio dos povos, no Novo Testamento, o novo judeu, o Cristão, sabe que o templo é ele mesmo e não uma edificação de tijolos. Não há comércio, não há vendas, não há nada de capitalismo na mensagem de Cristo porque, em essência, sua mensagem derruba qualquer pretensão de impérios humanos forjados pela acumulação.

É esquerda, precisamos ler a Bíblia. Talvez algumas respostas estejam lá. E Cristão, também precisamos ler…tem gente usando sua fé para depois traí-la, pois como disse o próprio Jesus: “nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mateus 4:4).

MARCELO KARLONI é Doutor em Dinâmicas Territoriais e Regionalizações pela Universidade Federal de Pernambuco e Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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