Resenha de um bom livro: O mundo do avesso – verdade e política na era digital, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Esse foi o melhor livro que li em 2022. Não posso deixar de recomendá-lo aos leitores e leitoras do Jornal GGN

Reprodução

O mundo do avesso – verdade e política na era digital

O livro de Letícia Cesarino foi publicado antes da eleição de 2022. Portanto, as reflexões dela foram feitas com base em fatos consolidados e de certa maneira estudados (a surpreendente eleição de Bolsonaro em 2018 e o genocídio pandêmico provocado pela campanha de desinformação que ele comandou), mas também nos ajudam a compreender como o bolsonarismo foi derrotado em 2022. Eleição em que o amplo arco de forças organizado em torno de Lula conseguiu tanto usar a internet de maneira eficaz quanto bloquear as Fake News bolsonaristas com ajuda do Poder Judiciário.

“O viés de confirmação prevalente nos públicos antiestruturais precisa, contudo, ser contraposto por algum tipo de feedback negativo. Do contrário, o escalamento descontrolado do feedback positivo pode levar o sistema como um todo a um processo de runaway e, eventualmente, a sua autodestruição. Mesmo a corrida armamentista durante a Guerra Fria contou com dinâmicas que aliviavam a tensão cismogênica, impedindo a detonação das ogivas e o tão temido apocalipse nuclear. Já o fascismo histórico não logrou a contenção, e teve como resultado a espiral autodestrutivo que foi a Segunda Guerra. Parece haver mecanismos desse tipo operando no nível da arquitetura das próprias plataformas, que fazem com que a tensão cismogênica que ela ajuda a gerar seja absorvida ali mesmo e não resvale de modo significativo para o mundo off-line.” (O mundo do avesso – verdade e política na era digital, Letícia Cesarino, Ubu Editora, São Paulo, 2022, p. 195)

Ao impedir a proliferação do discurso de ódio, o Judiciário impediu o escalonamento descontrolado do feedback positivo, restabelecendo alguma racionalidade no processo eleitoral brasileiro. Se nada fosse feito, a eleição seria decidida pelas Big Techs, cujos algoritmos ajudaram tanto a eleger Bolsonaro quanto a fortalecer a bem sucedida campanha de desinformação que ele liderou durante a pandemia.

“Em sua lógica de segmentação de públicos, os algoritmos agregam perfis com comportamentos que eles entendem como sendo similares: o conteúdo do comportamento interessa menos que seus padrões formais. É assim, por exemplo, que usuárias interessadas em parto domiciliar ou alimentação natural podem ser sutilmente direcionadas pelos algoritmos para conteúdos antivacina, ou que comunidades gamer passem a ressoar junto a ecossistemas de extrema direita (Lewis, 2018). Nesse processo, novos públicos são formados e, com eles, novas subjetividades individuais e coletivas. Como a cognição humana não tem acesso à realidade a não ser través de mediações (ou mídia), o resultado pode ser, em casos extremos, a segmentação dos usuários em mundos personalizados que se conectam apenas parcialmente, ou mesmo que se bifurquem, como veremos, em realidades paralelas.

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Esse é um dos sentidos em que podemos afirmar que as novas mídias têm uma política, e que essa política tem um viés contrário ao da democracia liberal. Elas não apenas enfraquecem as formas de subjetivação e produção de verdade baseadas no reconhecimento universal como reintermediam novas identidades com base em modelos de reconhecimento bifurcado. No caso da política, por exemplo, o colapso da diferenciação entre público e privado que fundamentava a norma da esfera pública liberal leva a uma bifurcação do tipo antagonística (amigo versus inimigo) onde o público passa a ser englobado pelo privado. Nos conspiracionismos, o colapso de contextos entre fato e ficção leva a uma bifurcação entre dois mundos invertidos onde a fição engloba o fato.”  (O mundo do avesso – verdade e política na era digital, Letícia Cesarino, Ubu Editora, São Paulo, 2022, p. 113/114)

Durante a CPI da Covid, o Senado Federal documentou como o governo Bolsonaro colaborou para a maximização do número de mortes provocada pela pandemia no Brasil. Na parte final do livro, Letícia Cesarino refletiu sobre esse fenômeno. Entretanto, não ocorreu à autora questionar o papel passivo do Sistema de Justiça em relação às Big Techs no início daquele evento catastrófico. Se, a exemplo do que o TSE fez durante a propaganda eleitoral, o STF tivesse impedido ou dificultado a estruturação da rede de desinformação da alt-science no início da pandemia (a qual foi impulsionada por Bolsonaro quando ele começou a fazer propaganda de cloroquina e a questionar a eficácia de vacinas) centenas de milhares de vidas poderiam ter sido salvas. A ausência de combate judiciário ao populismo médico facilitou o genocídio pandêmico? Talvez a autora possa responder essa pergunta num próximo livro.

A autora afirma que:

“Há precedentes históricos de como mudanças rápidas e extensivas na infraestrutura de mídia podem levar a um descompasso do arranjo social vigente, alimentando instabilidades, oscilações e bifurcações imprevisíveis. Os mais conhecidos talvez sejam a capitalização do rádio na ascensão do fascismo alemão dos anos 1930 e o papel disruptivo da prensa tipográfica na Reforma Protestante no século XVI. Nesse último caso, uma nova tecnologia de mídia que permitia a produção de conteúdo fora dos canais hegemônicos (a Igreja) propiciou que demandas de múltiplos grupos descontentes viessem à tona com a simplicidade e velocidade dos Flugschriften (‘textos voadores’, ou panfletos em alemão). Naquela ocasião, os efeitos foram explosivos e o sistema social atravessou o limiar de comportamento aleatório para se afundar nas chamadas guerras de religião (Edwards, 1994). Mais de um século se passou até que o sistema se reestabilizasse um outro patamar, com a Paz de Vestfál’ia em 1648 e a instituição de um novo princípio de soberania baseada no Estado-nação secular.  (O mundo do avesso – verdade e política na era digital, Letícia Cesarino, Ubu Editora, São Paulo, 2022, p. 141)

A atuação do TSE criou um precedente histórico importante em 2022. Ao impedir Bolsonaro de estruturar e utilizar sistematicamente a rede de desinformação que ele criou para espalhar Fake News contra as urnas eletrônicas e para atacar a Justiça eleitoral e seu adversário político, a Justiça Eleitoral reestabilizou o sistema político brasileiro antes que ele entrasse em runaway em decorrência do “escalamento descontrolado do feedback positivo” da campanha bolsonarista em favor da anulação da eleição.

Um conflito armado foi uma vez mais impedido quando o TSE rapidamente suprimiu a violência política apoiada discretamente pelo comandante da PRF. Mas isso não teria sido possível sem o próprio PT tivesse aceitado as provocações dos derrotados. A inteligência emocional dos líderes da esquerda travou a inteligência artificial que os golpistas tentaram utilizar para justificar a reação de Bolsonaro ao resultado das urnas. Mas isso não foi suficiente para acalmar o país, pois episódios letais provocados por nazistas alucinados começaram a ocorrer.

Letícia Cesarino também fornece uma explicação antropológica para o sucesso do bolsonarismo em 2018. Explorando de maneira eficiente o ambiente criado pelos algoritmos das Big Techs que favorecem a propagação do conservadorismo, Bolsonaro conseguiu se tornar o centro das atenções no momento em que sistema político foi desestabilizado pelo golpe de 2016. Todavia, faltou à autora perceber que o bolsonarismo também foi normalizado pelas grandes empresas de comunicação que alimentaram o anti-petismo antes, durante e depois da vitória eleitoral de Dilma Rousseff em 2014.

“Inúmeros antropólogos notaram como figuras paradoxais situadas às margens dos sistemas socioculturais são aquelas mais bem posicionadas para operarem transformações antiestruturais: do pangolim lele a tricksters ameríndios, de Jesus Cristo aos intocáveis indianos (Dumont. [1966] 2010; Lévi-Strauss, [1964] 2010; Douglas, [1966] 2010; Lech [1966] 1983). Ao representarem aquilo que a normatividade social rejeita, essas figuras são dotadas de enorme poder – e perigo. Têm o potencial de inverter a própria polaridade do metacódigo sagrado-profano e, assim, de regenerar estruturalmente a ordem social como um todo Apenas figuras paradoxais podem operar essa função, por se situarem nos limites dos tabus e fronteiras sociossimbólicos. Como a gola de uma camisa, estão ao mesmo tempo de um lado e do outro do tecido: indicam o ‘ponto cego’ do sistema vigente, o resíduo marginal a partir do qual seu ‘todo’ pode ser virado pelo avesso.”  (O mundo do avesso – verdade e política na era digital, Letícia Cesarino, Ubu Editora, São Paulo, 2022, p. 174)

O verdadeiro trickster no Brasil é a imprensa tradicional. Assim como fomentaram o golpe de 2016, legitimaram a injusta condenação e prisão de Lula para impedi-lo de disputar a eleição de 2018 e normalizaram Jair Bolsonaro acreditando que ele poderia ser civilizado, os Barões da Mídia descartaram o bolsonarismo genocida e tentam agora se apropriar da agenda econômica do governo Lula. Esse também poderia ser um tema para outro livro. Todavia, é evidente que essa questão provavelmente não teria sido por mim levantada aqui se a obra comentada não tivesse sido escrita e publicada.

O mundo do avesso – verdade e política na era digital, de Letícia Cesarino, foi o melhor livro que li em 2022. Não posso deixar de recomendá-lo aos leitores e leitoras do Jornal GGN.

*Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Fábio de Oliveira Ribeiro

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