Um Supremo dos homens e para os homens: foi esse o projeto da Constituição Cidadã?, por Damares Medina

Setores da sociedade civil pugnam pela indicação de uma ministra mulher (negra), para que se preserve a ínfima representatividade feminina

Um Supremo dos homens e para os homens: foi esse o projeto da Constituição Cidadã?

por Damares Medina[1]

A Constituição Federal de 1988, que muitos dizem cidadã, já teve 131 emendas de reforma e 6 de revisão, sendo ao todo 140 emendas, perfazendo a média de quatro alterações por ano, ou uma modificação a cada quatro meses.

Às vésperas do celebrado aniversário de 35 anos da Constituição, a sociedade brasileira foi brindada com mais uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), a de número 51, de 4 de outubro de 2023, que atribui mandato de 15 anos e exigência de idade mínima de cinquenta anos aos Ministros do Supremo Tribunal Federal e promove modificações no processo de escolha dos membros dessa Corte e dos Tribunais Superiores. Em sua justificativa consta que a discussão sobre a forma de seleção dos membros do Supremo Tribunal Federal tem ocupado a pauta do Congresso Nacional há mais de uma década, tendo tríplice motivação: a ampliação dos Poderes da Corte, a diversificação dos instrumentos do controle abstrato de constitucionalidade e o abandono de uma postura de autocontenção de seus Ministros, observada nos primeiros anos de vigência da Constituição de 1988, com consequente assunção do protagonismo político pelo Tribunal.

A PEC 51 foi proposta dois dias após a aposentadoria da Ministra Rosa Weber, que completou a idade máxima de 75 anos em 2 de outubro de 2023, quando o Presidente Lula se prepara para indicar o seu décimo ministro para o Supremo, o décimo quinto indicado pelo Partido dos Trabalhadores, e todos aprovados pelo Senado Federal. Vários setores da sociedade civil organizada pugnam pela indicação de uma ministra mulher (negra), para que se preserve a ínfima representatividade feminina de duas mulheres em uma corte de onze integrantes, representatividade essa inalterada desde 2006.

Nesse contexto, alguns aspetos chamam a atenção e o primeiro diz respeito aos 30 senadores que subscrevem a iniciativa, contra as duas senadoras, Damares Alves e Margareth Buzetti, 6,6% de participação feminina. Com essa representatividade, não é surpresa que, passados 35 anos, a PEC 51 adote a linguagem masculinizante utilizada pelo Constituinte em 1988, sem se preocupar com a adoção de uma linguagem inclusiva das mulheres, que deixe claro e expresso que o Supremo pode sim, e deve, ser composto por ministros e ministras, e que lugar de mulher é também no Supremo Tribunal Federal. Afinal, se o Supremo tem o dever de guardar a Constituição, ao Congresso Nacional é suposto representar seus eleitores que são a sociedade brasileira, majoritariamente composta por mulheres.

Além disso, é curioso que o Congresso Nacional se preocupe com a ampliação dos poderes da Corte, com o abandono da postura de autocontenção e, até mesmo, com a diversidade dos instrumentos do controle abstrato, mas não se incomode com a diversidade dos integrantes do tribunal, majoritariamente homens brancos, todos indicados pelo Presidente e aprovados pelo Senado Federal.

Ora, se a Constituição compartilhou a responsabilidade pela escolha dos integrantes do Supremo Tribunal Federal entre o chefe do Poder Executivo e o Poder Legislativo, que tal começarmos pelo poder de veto dos indicados que o Senado Federal pode exercer constitucionalmente? Que tal começarmos pelo básico que é uma linguagem inclusiva das mulheres, fazendo referência expressa a ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal? Que tal começarmos pela diversidade dos integrantes do Supremo, de forma a espelhar a nossa sociedade, e não com a variedade dos instrumentos de controle a sua disposição?

Nossa sociedade é composta majoritariamente por mulheres, nós representamos 52,65% das pessoas aptas a votar no Brasil[2]. Mesmo sendo maioria, na Câmara dos Deputados a presença feminina é de 17%, no Senado Federal, de 16%, abaixo da média mundial[3]. No Supremo nossa presença corresponde a 18% dos integrantes, percentual inalterado há 17 anos. Caso seja indicado um homem para a vaga aberta pela aposentadoria da Ministra Rosa Weber, seremos 9%, retrocedendo aos anos 2000, quando o então Presidente Fernando Henrique Cardoso indicou a primeira mulher para o Supremo, Ministra Ellen Gracie, e nos tornando segunda corte constitucional mais desigual da América Latina[4]. Ainda no Supremo, tramitam o MS 39169 e a ADPF 1069, que impugnam a tramitação da PEC nº 9 de 2023, também conhecida como a PEC da anistia, que prevê a anistia dos partidos políticos que descumpriram o coeficiente eleitoral feminino, perpetuando as barreiras de entrada das mulheres na política, em múltiplas violações à decisão do STF, na ADI 5617, e à Emenda Constitucional nº 117, de 2022, que conferiu status constitucional a direitos das mulheres consagrados desde 2015. Mas quem se importa?

Se para o Presidente Lula a sociedade não precisa saber como vota um ministro do Supremo[5] e gênero e cor não serão critérios para a indicação do próximo ministro do STF[6], para o Congresso Nacional, que deveria ser a voz de seus eleitores, não importa o fato de o tribunal ter apenas duas mulheres entre nove homens, desde 2006. Afinal, o aumento de poder e protagonismo do Supremo nada tem a ver com o gênero e a diversidade dos seus integrantes, ou com a sabatina que o próprio Senado Federal faz, mas sim com a forma de escolha, com o limite de idade ou com o abandono da autocontenção.

Adicione-se a tudo isso um aspecto financista, que é uma linguagem que todos e todas entendemos bem, pois pesa direto no nosso bolso, como contribuintes. Na perspectiva tributária de quem arca com o Orçamento da União e mantem os poderes da República, nós, mulheres, mais da metade da população e proporcionalmente responsáveis por mais da metade do financiamento do aparato estatal, temos direito à composição paritária dos espaços de poder, afinal, não existe almoço de graça. Nenhuma de nós assinou um cheque em branco para que os homens tomassem as decisões em nosso lugar e em nosso nome. Nenhuma de nós concordou em subsidiar os homens na ocupação majoritária dos espaços públicos de poder, com os nossos tributos. Essa época de desigualdade já passou e não pode voltar, sob pena de retrocesso vedado pelo texto constitucional. Parafraseando a brilhante advogada Carol Caputo: daqui para frente, só para frente![7]

Portanto, se o Congresso Nacional vem debatendo a forma de escolha dos ministros do Supremo, que tal fazer como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que aprovou regra de promoção paritária entre homens e mulheres para as entrâncias superiores[8]? Se há problemas de falta de autocontenção e excesso de protagonismo, quem sabe a resposta não passe pela diversidade na composição, em um Supremo mais feminino? Quem sabe o direito a igualdade entre os homens e mulheres consagrado na Constituição seja mais que um símbolo válido apenas na hora de nos tributar, e sim uma garantia substantiva e concreta de divisão paritária das decisões sobre os rumos da coisa pública, no Brasil?

São muitas perguntas, poucas respostas e a esperança de que esse pacto entre homens no poder, que dizem representar a sociedade e guardar a Constituição, passe a incluir as mulheres em seus espaços públicos de decisão, não só porque a Constituição determina que assim seja, mas também porque a conta é paga paritariamente por todos e todas nós!


[1] Advogada, Doutora em Direito, com pós doutorado em Democracia e Direitos Humanos, professora de Direito Constitucional e fundadora do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

[2] Eleições 2022: mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Agencia TES, de 18 de julho de 2023. Disponível em < https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/eleicoes-2022-mulheres-sao-a-maioria-do-eleitorado-brasileiro>, acesso de 6-out-2023.

[3] Presença de mulheres no Congresso brasileiro é inferior à média mundial. Notícias UOL, de 3 de março de 2023. Disponível em < https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2023/03/03/presenca-de-mulheres-no-congresso-brasileiro-e-inferior-a-media-mundial.htm> acesso de 6-out-2023.

[4] Sem nova ministra mulher, STF brasileiro se tornará segundo mais desigual da América Latina. BBC News Brasil, de 3 de outubro de 2023. Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy71l5lnelgo>, acesso de 6-out-2023.

[5] Lula defende voto sigiloso de ministros do STF: ‘Não precisa ninguém saber’. Folha de São Paulo, 5 de setembro de 2023. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/lula-alega-seguranca-e-sugere-que-votos-dos-ministros-do-stf-sejam-sigilosos.shtml, acesso de 6-out-2023.

[6] Lula diz que gênero e cor não serão critérios para escolha ao STF. Folha de São Paulo, 25 de setembro de 2023. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/09/lula-diz-nao-ter-pressa-para-escolha-de-pgr-e-stf-e-que-genero-e-cor-nao-sao-criterios.shtml>, acesso de 6-out-2023.

[7] A sucessão da ministra Rosa Weber e o princípio do não retrocesso. Jota, de 16 de julho de 2023. Disponível em < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/a-sucessao-da-ministra-rosa-weber-e-o-principio-do-nao-retrocesso-15062023>, acesso de 6-out-2023.

[8] CNJ aprova regra de gênero para a promoção de juízes e juízas. Notícias CNJ, de 26 de setembro de 2023. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/cnj-aprova-regra-de-genero-para-a-promocao-de-juizes-e-juizas/>, acesso de 6-out-2023.

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