Uma guerra como nenhuma outra, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A Rússia não pode desistir sem um acordo diplomático que garanta a independência política das regiões que controla militarmente com apoio da população local.

Agência Xinhua

Uma guerra como nenhuma outra

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Os planos militares são relações de coisas que não necessariamente acontecem ou que ocorrem de maneira diversa do que foi planejado. Nenhuma guerra é similar à que a precedeu. A evolução tecnológica dos meios de destruição é uma consequência natural das hostilidades. Esses são apenas três dos lugares comuns que é possível encontrar em qualquer livro de história militar.

A história militar da guerra da Ucrânia comprova as duas primeiras afirmações acima. Mas ela tem sido uma negação eloquente da última.

Quando começou, o conflito foi visto como um show de eficácia dos equipamentos mais modernos à disposição das Forças Armadas da Rússia. Mas à medida que a resistência ucraniana passou a ser apoiada pelos países europeus algo esquisito aconteceu.

Ao contrário de se defender apenas com equipamentos modernos (como os mísseis Javelin fornecidos pelos EUA), a Ucrânia também se defende e contra-ataca com armamentos obsoletos que estão sendo doados por Alemanha, Portugal, Polônia. Não importa quanto material bélico os russos sejam capazes de destruir e capturar, o fato é que a guerra continuará rugindo e causando danos às unidades militares mais modernas do Kremlin.

Isso talvez explique o fato da própria Rússia ter começado a reciclar equipamento militar obsoleto para colocá-lo no campo de batalha . Todavia, o teatro de operações continua sendo dominado pela superioridade aérea e pelos mísseis de médio alcance russos. A coleta de inteligência é feita com o uso de satélites e sistemas de radares extremamente sofisticados, mas a missão deles é garantir o sucesso ou a destruição de armamentos que podem ser considerados obsoletos.

“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn

Evolução tecnológica a serviço de unidades militares que empregam armamentos ultrapassados, mas cujo poder de destruição não pode ser menosprezado. Quem tem os melhores meios de destruição não necessariamente ganha uma guerra. A derrota dos EUA no Vietnã é uma prova eloquente de que é possível matar, mutilar e desmoralizar um inimigo tecnologicamente superior utilizando armamentos mais antigos e até improvisados.

Há, entretanto, uma diferença entre a Guerra do Vietnã e a da Ucrânia. Os vietnamitas dispunham de condições tecnológicas inferiores às dos invasores norte-americanos e conseguiram se impor em virtude da superioridade numérica e do uso de estratégias adaptadas às suas limitações materiais, tecnológicas e econômicas. De maneira geral, podemos dizer que a Rússia é tecnologicamente superior à Ucrânia. Mesmo assim o Kremlin está sendo obrigado a se adaptar a uma guerra de atrito cuja característica mais marcante está sendo o uso de equipamentos militares considerados obsoletos há alguns meses.

A Rússia não pode desistir sem um acordo diplomático que garanta a independência política das regiões que controla militarmente com apoio da população local. A Ucrânia não quer se dar por derrotada e insiste na perpetuação do conflito com ajuda dos europeus e dos EUA. A nova lógica do conflito (o uso de equipamentos militares obsoletos num teatro de operações tecnologicamente sofisticado) é cruel, pois dezenas de milhares ou centenas de milhares de ucranianos e russos podem ser triturados nas engrenagens dessa guerra sem que ambos os lados obtenham qualquer vantagem decisiva que coloque um ponto final no conflito.

Durante a II Guerra Mundial, os alemães começaram a se render quando estavam esgotados. O esgotamento das tropas japonesas, porém, não foi suficiente para abreviar aquele conflito na Ásia. Quando os canhões finalmente silenciaram em 1945, os derrotados começaram a ser reconstruídos com ajuda dos vitoriosos. Devastada pela II Guerra Mundial, a Ucrânia não foi reconstruída com ajuda dos EUA e sim com recursos da URSS. Ninguém sabe exatamente quando a guerra civil ucraniana terminará – isso se o conflito não se espalhar para outros países da região – quem reconstruirá os territórios devastados por ucranianos e russos e com que dinheiro?

Ao começar a reciclar sucatas para colocar no campo de batalha, a Rússia parece prever que o conflito ainda pode se expandir. Os estrategos do Kremlin não querem comprometer todas suas unidades militares sofisticadas na Ucrânia porque imaginam que podem ser obrigados a enfrentar a OTAN e até mesmo tropas dos EUA? Essa é a verdadeira pergunta a fazer nesse momento.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Leia também:

O vendedor de gravatas, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Internet das coisas, ma non troppo, por Fábio de Oliveira Ribeiro

A nova condição humana, por Fábio de Oliveira Ribeiro

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador