Nova Indústria Brasil: subsídios demais ou campeões nacionais de menos?

Há inúmeras excelentes razões para o governo brasileiro voltar a atuar de forma ativa, coordenada e contundente.

Stuckert – PR

Nova Indústria Brasil: subsídios demais ou campeões nacionais de menos?

por André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach

A Política Industrial do Governo Lula 3

O Brasil se alinha às tendências globais e acaba de lançar sua quarta política industrial no século XXI, denominada de “Plano de Ação para a Neoindustrialização, 2024-2026” ou “Nova Indústria Brasil” (NIB). Por uma coincidência divina, poucos dias depois, Elon Musk, um dos modernos titãs da indústria e entusiasta das ideias libertárias e anarquistas, também sucumbiu às delícias dos mercados protegidos. O dono da Tesla defendeu a contenção da concorrência chinesa no bilionário mercado de veículos elétricos. Ao mesmo tempo, Musk saúda governos libertários dispostos a lhe franquear acesso fácil às reservas de minerais estratégicos como o lítio.

As políticas industriais voltaram à moda. Pesquisas independentes e análises de órgãos multilaterais têm alertado para a expansão no uso de medidas protecionistas e da alocação de recursos públicos para o setor privado. Lamenta-se o retorno do ativismo estatal, como se este não fosse parte constitutiva das modernas economias de mercado. Nos EUA, tornou-se politicamente inconveniente ser contra ações contundentes de enfrentamento à ameaça chinesa, com direcionamento de generosas porções do orçamento para gastos militares, infraestrutura e  renovação das capacidades industriais locais.

O novo Consenso de Washington é geopolítico em essência e lança mão de todos os instrumentos econômicos para tentar viabilizar o seu objetivo central: conter os rivais do poder estadunidense. Os limites impostos pela velha ortodoxia dos economistas convencionais paulatinamente são abandonados, pois cada vez mais se tornam incompatíveis com as demandas crescentes por crédito barato e orçamentos mais elásticos. Por isso mesmo, o colunista-chefe do Financial Times nos EUA, Edward Luce, argumenta que “a ortodoxia econômica de ontem é a heresia de hoje”.

Há inúmeras excelentes razões para o governo brasileiro voltar a atuar de forma ativa, coordenada e contundente. As três políticas anteriores, conforme analisamos aqui, não lograram reverter o longo processo de especialização regressiva do Brasil. A indústria de transformação do país definhou a olhos vistos e se encontra no momento mais frágil dos últimos quarenta anos. O valor adicionado neste setor representa hoje menos da metade da participação global obtida nos anos 1980. Em 2022, o valor adicionado da indústria de transformação brasileira por habitante – US$ 833 (a preços constantes de 2015) – equivalia à metade da média mundial (US$ 1.879).

Colocar a indústria no centro da estratégia de crescimento econômico e de constituição de um padrão de produção e de consumo compatível com os desafios da transição climática e da inclusão social é uma decisão óbvia e necessária. Pertence, de forma inequívoca, ao espírito do tempo em que vivemos. Neste admirável velho mundo novo, onde os poderes globais disputam, palmo a palmo, os mercados e os recursos estratégicos, como tem sido a regra desde antes da Revolução Industrial, a simbiose entre Estados e Mercados se torna patente.

Por isso mesmo, são cada vez mais exóticas as manifestações dos representantes locais da “internacional libertária”, particularmente na tribo de economistas e na mídia corporativa, em suas críticas ideológicas e pouco informativas sobre a política industrial brasileira.

Libertários e Protecionistas

Se nem Musk resiste ao protecionismo explícito e ao controle político das reservas minerais, sempre em nome da preservação da Liberdade, a turma que se orgulha em ser conservadora nos costumes e liberal na economia, sequer fica ruborizada com o teor de suas queixas sobre a volta da política de “campeões nacionais” e do “intervencionismo”.

O que subjaz aos discursos “libertários” é a secular natureza arcaica e conservadora da elite brasileira, que insiste em ser uma das últimas a responder às transformações na economia mundial. Recorde-se que enquanto diversos países transitavam para a segunda revolução industrial, o establishment local continuava a sustentar a geração de riqueza no trabalho escravo. A duras penas se efetuou a construção do parque industrial brasileiro ao longo do século XX, sempre sob a liderança do Estado e à revelia de diversos segmentos da elite. E, atualmente, quando as placas tectônicas da economia e da geopolítica globais se movem, o país vê-se novamente refém do extrativismo e do rentismo. A abundância de recursos naturais, a generosidade dos canais financeiros de especulação e a ausência da mão visível do Estado para cobrar impostos dos ricos e regular práticas anticoncorrenciais permitem com que as fortunas se acumulem, mesmo que o tecido produtivo definhe e a degradação social avance.

A política industrial tem por papel central contribuir para a recuperação da capacidade da economia brasileira crescer com ganhos de eficiência e incorporação de progresso técnico. Ainda assim, há que se levar em conta o histórico de falhas nas políticas industriais na América Latina e as advertências da literatura sobre rent seeking, particularmente de observadores críticos ao neoliberalismo, como José Gabriel Palma, professor emérito da Universidade de Cambridge. Os riscos de que se trate, uma vez mais, de distribuir benesses e de proteger interesses privados não pode ser descartado a priori. Palavras da moda e boas intenções não serão suficientes para aumentar a produtividade ou garantir uma convergência mais rápida da indústria brasileira com a fronteira tecnológica em constante expansão. Na perspectiva de Palma, as elites latino-americanas são preguiçosas, investem pouco e concentram parcelas desproporcionalmente elevadas da renda e da riqueza, em comparação com suas congêneres asiáticas, europeias e norte-americanas.

Subsídios demais ou campeões nacionais de menos?

O principal instrumento para viabilizar a NIB, o BNDES, atualmente gera desembolsos de pouco mais de 1% do PIB, o que é menos da metade da média dos últimos 30 anos (2,3% do PIB). Estão previstos R$ 300 bilhões em quatro anos, 2/3 dos quais em empréstimos com taxas de mercado. Algum subsídio persiste no restante dos recursos reembolsáveis. Do ponto de vista geral, imaginar que o BNDES chegará em 2026 com desembolsos da ordem de 2% do PIB é confirmar o caráter pouco ambicioso, na prática, do conjunto de medidas já anunciadas pelo atual governo.

A NIB merece ser aplaudida pelo que pretende fazer e criticada pela insuficiência de recursos disponibilizados. Para estimular a indústria, financiar a infraestrutura e fazer a transição energética, será preciso ir muito além da média histórica de desembolsos do BNDES ou do uso tímido de outros instrumentos de política pública. Décadas de introversão e rentismo, fizeram com que as empresas brasileiras ficassem muito para trás em termos de escala produtiva, musculatura tecnológica e financeira e ambições concorrenciais.

No último ranking global da Fortute 500, havia apenas nove empresas brasileiras: quatro bancos, duas empresas de petróleo e gás, sendo a Petrobras a melhor colocada dentre este seleto grupo (71ª posição no ranking geral), duas mineradoras e uma gigante de proteína animal. Vale dizer, recursos naturais e finanças. Dentre as 500 maiores, há 143 chinesas e 136 estadunidenses. No segmento de alta tecnologia, nenhuma brasileira está no rol das 100 maiores do mundo.        Diante das evidências disponíveis, caberia questionar qual é o problema principal do Brasil: o excesso de subsídios aos “campeões nacionais”? Ou a falta destes, especialmente em setores tecnologicamente dinâmicos, para serem subsidiados?

Ademais, as experiências históricas vitoriosas em termos de políticas de promoção do desenvolvimento, se estruturam em bases políticas bem mais sólidas do que as observadas no caso brasileiro contemporâneo. Há que se ter alguma amalgama que aglutine interesses que, pelo menos a priori, se revelam como potencialmente opostos. Aspectos como “segurança nacional”, “projeção externa de poder”, “superação do atraso”, “consolidação da nação”, dentre outros, foram capazes de produzir consensos mínimos em torno do ativismo estatal.

Neste momento, por exemplo, Democratas e Republicanos conseguem encontrar pontos mínimos de convergência na necessidade de modernizar a infraestrutura e promover setores tecnologicamente estratégicos com vista a enfrentar a concorrência geopolítica da China e outros rivais. Conforme destacamos em artigo anterior, a elite estadunidense tem um projeto comum de poder, que se bifurca claramente em temas sociais e identitários. O mesmo não ocorre no Brasil, onde se verifica a ausência de consensos mínimos, tanto na elite, quanto do conjunto da sociedade, capazes de dar sustentação às mudanças estruturais necessárias ao reposicionamento do Brasil no mundo do século XXI.

Não há nada que indique que as políticas até aqui anunciadas pelo governo Lula serão capazes de romper a inércia do rentismo e da especialização regressiva já tão bem adaptadas ao clima local. Em caso de continuidade de tais tendências, talvez sobre apenas a torcida para que a “procissão de milagres”, descrita pelo genial historiador Sérgio Buarque de Holanda no seu “Visões do Paraíso”, nos reserve melhor sorte.

André Moreira Cunha e Alessandro Donadio Miebach – Docentes do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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