A disputa pela direção das reformas

Por Marco Antonio L.

Da Carta Maior

Conjuntura fluida: Cresce disputa por rumo das reformas

Quem “dirigirá” política e ideologicamente as ruas – no sentido gramsciano, sem qualquer ranço autoritário, portanto? Esse atual momento político abre grande oportunidade para que reformas em prol da democracia profunda sejam efetivas. Mas o bloco conservador enxergou a possibilidade de capturar as demandas populares em prol da manutenção da histórica desigualdade política e social. Por Francisco Fonseca, da FGV

Francisco Fonseca 

O movimento social que tomou as ruas desde junho, capitaneado pela demanda pelo Passe Livre, encerrou-se quando do recuo de vários governos (municipais e estaduais) no tocante ao aumento das passagens do transporte coletivo. Representou o primeiro momento, vitorioso, dos protestos que vêm mobilizando o país.

Logo em seguida – um segundo momento, em parte ativado pela incrível brutalidade repressiva da polícia, que vitimou manifestantes e jornalistas, entre outros personagens –, uma pluralidade de grupos, sobretudo contrários aos partidos e às instituições representativas, foram às ruas e lançaram um sem-número de temas, de forma difusa ou ostensiva: de um lado os defensores da extinção dos partidos, críticos genéricos da corrupção, apoiadores do impeachment da presidente Dilma (!) e o afastamento do presidente do Senado, e os praticantes da depredação do patrimônio público (grupos de extrema direita) cujo objetivo é tumultuar o ambiente político e provocar o caos para instilar a violência política e a extinção da democracia institucional; de outro, demandantes da melhoria dos serviços públicos, entre os quais o próprio movimento “passe livre”, partidários de esquerda e progressistas com demandas vinculadas aos direitos universalizantes e em prol da predominância dos direitos coletivos sobre os individuais, o que implica a apropriação da cidade pela maior parte dos cidadãos. De forma intermediária, defensores e opositores de vários Projetos de Emenda Constitucional, grupos defensores de demandas relacionadas a grupos minoritários, demandas corporativas e aos poucos também trabalhistas, dentre uma infinidade de outros temas apareceram, deixando os políticos e os analistas da política – em sentido amplo – perplexos, como apontei no artigo do dia 20/06/2013 neste Portal. Afinal, o tempo histórico se acelerou de tal forma que vem obrigando a todos os atores políticos, notadamente estatais, a responderem às vozes das ruas, que permanecem mobilizadas.

Esse segundo momento aparentemente já foi superado – reforçando a fluidez da conjuntura – pela reação do Governo Federal em propor pactos nacionais, notadamente quanto à reforma do sistema político: estaríamos, portanto, vivenciando um terceiro momento político, em que a proposta de um plebiscito, com idas e vindas, vem mobilizando o núcleo político do Governo Federal, os partidos políticos e a sociedade politicamente organizada, além, é claro, da mídia. Estaríamos talvez já numa quarta fase, em que a proposta de plebiscito, elaborada pelo Executivo – cujo conteúdo é objeto de disputa –, deverá ser enviada ao Congresso Nacional.

Em pouco mais de um mês estamos vivenciado momentos políticos diversos – que podem ser superados rapidamente –, em meio à Copa das Confederações, por si só objeto de contestação popular em razão da – imaginada – comparação dos gastos com políticas sociais. Daí a ironia popular afirmar sua demanda por “saúde e educação com padrão Fifa”!. De alguma forma, é possível afirmar que a própria vitória – imprevista e improvável – da seleção brasileira de futebol sintetiza esse momento político, uma vez que comissão técnica e jogadores aparentemente encamparam, a seu modo, a vox populi ao se alinhar ao “orgulho nacional” e conquistar, em casa, um título que, nesse momento, tornou-se fortemente significativo. Apesar de a estrutura política da Confederação Brasileira de Futebol – cuja figura obscura de José Maria Marin, legatário do não menos obscuro Ricardo Teixeira, sintetizar esse microcosmo obtuso da vida nacional – , e da gestão do futebol brasileiro como um todo ser espelho da vida política privatizada brasileira, essa modalidade esportiva respondeu ao sentimento difuso das ruas. Paradoxos da vida política brasileira, em sentido lato!

Voltando aos três (ou quatro) momentos políticos, não apenas as manifestações continuam pelo país afora como a agenda política alterou-se vigorosamente. Discute-se hoje como será a reforma política (forma e conteúdo) e não mais sua possibilidade. Em outras palavras, o que era considerado impossível pela régua da governabilidade há um mês tornou-se muito rapidamente possível e sobretudo factível! Isso coloca em xeque o pressuposto do hiper realismo político – que dominou o primeiro Governo Lula e que dominava até então o Governo Dilma – quanto ao que é possível reformar. Essa aceleração do tempo histórico abre, dessa forma, um sem-número de possibilidades, assim como de riscos às reformas profundas com vetor democratizante e progressista. Daí o papel fundamental da direção político/ideológica do movimento social e de seus impactos à vida política.

Especificamente quanto à reforma política – porta de entrada para o retrocesso ou para a radicalização da democracia –, não basta centrar-se, como aparentemente tem feito o Governo Dilma, inicialmente na investidura constituinte do Congresso Nacional ou, agora, no plebiscito quanto à reforma política, uma vez que o atual sistema político (fortemente privatizado, reitere-se) tende a ser conservador e garantidor dos interesses instituídos. Embora a pressão popular possa, em tese, pautar a reforma política, tal pressão corre o forte risco de ser dirigida pelos interesses conservadores e do statu quo e que tem grande mídia seu baluarte: leia-se Sistema Globo, Revista Veja, jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo, todos, de um jeito ou de outro, concatenados com o think tank reacionário intitulado Instituto Millenium, entre outros. A grande mídia, como se sabe, faz as vezes de “partido político” de oposição (e de organização de classes sociais), uma vez que os partidos reais (PSDB, DEM, PPS, a nascitura Rede e mesmo o PSB) são débeis em voto e em propostas. Aliás, nunca é demais lembrar a recente declaração da presidente da Associação Nacional de Jornais, Judith Brito, de que a grande imprensa ocuparia esse papel oposicionista justamente em razão da fragilidade dos partidos de ofício. Antonio Gramsci já nos ensinara que, em tempos históricos específicos, esse seria o modus operandi da vida burguesa.

Há, portanto, uma clara disputa político/ideológica entre retrocesso e radicalização democrática. A participação popular na cada vez mais possível reforma política poderá servir como sustentáculo ou do aprofundamento da privatização da vida política institucional ou da superação democrática de uma das duas reformas não realizadas no Brasil pós redemocratização: o sistema político e o sistema midiático. A reforma política necessita contar, dessa forma, com movimentos sociais, populares, sindicatos, organizações não governamentais e toda sorte de representação política não partidária, mas coletiva. Isso não pode significar a marginalização dos atuais partidos, e sim a divisão de seu poder numa Constituinte exclusiva, isto é, entre o atual sistema político – mesmo com todos os seus vícios – e os grupos da sociedade politicamente organizada. As vozes das ruas não podem se perder em seu espontaneísmo – conceito estranho à política –, por isso necessitam de direção político/ideológica que, reitere-se, está em disputa. De um lado, as elites econômicas e as classes médias superiores, todas representadas pela grande mídia e pelo Instituto Millenium e, de outro, as vozes populares carentes e demandantes de serviços públicos universais e de qualidade: um verdadeiro Welfare State. Contudo, como demonstrou André Singer, a mobilidade social promovida pelo Governo Lula não implica necessariamente um movimento política e ideologicamente progressista, ao contrário, as vozes das ruas podem ser capturadas e moldadas pelo conservadorismo, notadamente aquilo que genericamente se denomina de “classe c”. Daí parte significativa dos protestos terem como protagonistas as classes médias – velhas e novas –, cujas bandeiras são o “combate à corrupção”, a “extinção dos partidos”, o “fim do voto obrigatório”, o “não financiamento público das campanhas políticas”, entre outros temas cuja marca é o conservadorismo.

Quem “dirigirá” política e ideologicamente as ruas – no sentido gramsciano, sem qualquer ranço autoritário, portanto? Esse atual momento político, marcado pela reação do Partido dos Trabalhadores e do Governo Federal – não inteiramente confluentes, diga-se –, e dos trabalhadores organizados, abre grande oportunidade para que reformas em prol da democracia profunda sejam efetivas. Mas o bloco conservador – à procura de votos, pretextos e crises – enxergou a possibilidade de capturar as demandas populares em prol da manutenção da histórica desigualdade política e social.

A reforma política não é nem será panaceia, mas poderá contribuir para o destravamento das reformas político/sociais que o país necessita fazer, e que estão emperradas pelo sistema político e midiático montado pela ditadura militar. Essas reformas respondem a dois grandes vetores: a) sistema político verdadeiramente representativo, popular e desprivatizado (nos limites do capitalismo), cujas bases são a participação, o controle social e a transparência; b) inversão de prioridades orçamentárias, fiscais e creditícias, o que implica orientar o gasto público às necessidades populares e coletivas, e não às classes médias e superiores. Tal inversão responde pela penalização do transporte individual, em benefício do coletivo: privilegiamento das vias públicas aos ônibus, investimento maciço em transporte coletivo, aumento do preço do combustível e dos impostos ao automóvel como forma de financiar o transporte público, fim dos incentivos à indústria automobilística etc. Isso implica verdadeira cruzada pró-transporte coletivo, por meio da ampliação quantitativa e qualitativa de ônibus, metrôs, trens, monotrilhos, e mesmo bicicletas, entre outras formas de inverter a lógica individualista (e poluente) denunciada pelo Movimento Passe Livre (e por grupos ambientalistas).

Para além do transporte, há uma extensa agenda social que necessita ser destravada: a redução da jornada de trabalho, a ampliação da participação dos salários no PIB, o fim da pejotização das relações de trabalho, a revisão das terceirizações – com a consequente valorização do funcionário público concursado, no caso do Estado –, a revisão do papel do BNDES perante o desenvolvimento, o que implica o financiamento a empreendimentos micro, pequenos e médios, a contrapartida das grandes empresas aos financiamentos obtidos; o fim do financiamento público ao grande sistema midiático, a institucionalização de direitos sociais, como o Bolsa Família, entre inúmeros outros.

Dessa forma, a democratização do sistema político poderá contribuir tanto para o aprofundamento da agenda social – que implica, reitere-se, inversão de prioridades – como para a reforma do sistema midiático, uma vez que fortemente responsável pela demonização das instituições e sobretudo pela criminalização dos movimentos sociais. Mais ainda, parte significativa das passeatas das classes médias tem na grande mídia privada sua principal referência quanto à concepção de mundo que proferem: daí figuras ideologicamente obtusas do jornalismo brasileiro organizarem o pensamento, a percepção…e a ação desses segmentos médios. Daí o próprio Joaquim Barbosa ser alçado a candidato pela grande mídia, uma vez ter sido inflado no episódio do “mensalão”.

Por fim, a composição de uma Constituinte exclusiva em que, por exemplo, metade dos constituintes seja oriunda dos partidos vigentes e a outra metade dos movimentos sociais – debate perdido em 1986 – torna-se mais importante que sua forma de investidura, embora não se excluam. A história não perdoa os que perdem o momento de agir que, agora, significa pautar, em torno dos valores democráticos profundos e transformadores, o movimento social, os partidos e os movimentos organizados na perspectiva de uma agenda democratizante. O momento é esse, mas os riscos são enormes!

* Francisco Fonseca, cientista político e historiador, é professor de ciência política no curso de Administração Pública e Governo na FGV/SP. É autor de “O Consenso Forjado – a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil” (São Paulo, Editora Hucitec, 2005) e organizador, em coautoria, do livro “Controle Social da Administração Pública – cenário, avanços e dilemas no Brasil” (São Paulo, Editora Unesp, 2010), entre outros livros e artigos.

Luis Nassif

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