Após 30 anos, torturadores finalmente entam no banco dos réus

Artigo publicado na Folha comenta o ineditismo de colocar torturadores da época da ditadura no lugar de acusados, colocando a tortura pela primeira vez no banco dos réus. Para os articulistas, depois de quase 30 anos da transição democrática,Brasil finalmente vive o início de um processo mais amplo de responsabilização histórica constituído tanto pelas inúmeras Comissões da Verdade como pelas primeiras ações penais.
 
Da Folha de S. Paulo
 
A tortura no banco dos réus
 
Inês Prado Soares e Renan Quinalha*
 
Nos dias 9, 10 e 11 de dezembro foram realizadas audiências para ouvir as testemunhas de acusação na ação que o Ministério Público Federal (MPF) move contra Carlos Alberto Brilhante Ustra, Carlos Alberto Augusto e Alcides Singilo, agentes públicos a serviço da ditadura militar (1964 – 1985), pelos crimes de sequestro e privação da liberdade de Edgar de Aquino Duarte, corretor de valores preso pela polícia política da ditadura em 1971 e até hoje desaparecido.
 
Esta poderia ser apenas mais dentre as incontáveis ações penais que tramitam em nosso sistema de justiça. No entanto, o que se verificou nesse processo criminal foi um marco histórico: pela primeira vez, agentes públicos notoriamente tidos como torturadores da ditadura brasileira ocuparam o lugar inédito de acusados. A tortura finalmente tomou assento no banco dos réus.
 
Os ex-presos políticos testemunharam torturas e outras graves violações de direitos humanos que sofreram no DOI-CODI e no DEOPS de São Paulo. Também reportaram ao Juiz os atos nefastos cometidos pelos acusados ali sentados, Augusto e Singilo, e também por Ustra, que não compareceu às audiências.
 

 
As poucas perguntas formuladas pelos defensores tiveram o claro intuito de imputar às testemunhas uma condição de marginalidade durante a ditadura militar, realçando que suas formas de resistência seriam ilegais sem considerar, contudo, que o regime de 1964 foi fundado justamente na ruptura da legalidade que se deu com o golpe de Estado. A narrativa de dor e de sofrimentos das vítimas também foi totalmente desprezada pelos advogados dos acusados, que chegaram a pedir a intervenção do Juiz para que fossem interrompidos os relatos sob a alegação de que não tinham relação com o objeto da causa.
 
Até aí, nenhuma surpresa: os ex-presos vêm denunciando há tempos as atrocidades a que foram submetidos. Além disso, tanto a perpetuação do silêncio como a reprodução do discurso de que as violações de direitos humanos foram um “mal necessário” são expedientes utilizados em diversas partes do mundo pelos perpetradores para justificar suas ações e garantir a impunidade.
 
A novidade, agora, é que a arena judicial criminal começa a se abrir para escutar a voz das vítimas. Se é verdade que a política encontra-se cada vez mais submetida aos ritos e procedimentos jurídicos, era já esperado que esses conflitos em torno da verdade e da justiça em relação aos crimes da ditadura assumissem também essa dimensão judicial. Espera-se que o Poder Judiciário tenha maturidade e senso democrático para afastar o negacionismo dos acusados, como já ocorreu em nossos vizinhos Uruguai, Chile e Argentina.
 
Interessante notar a feliz coincidência de tais audiências terem ocorrido justamente poucos dias após as declarações de Navi Pillay, Alta Comissária para os Direitos Humanos da ONU, sobre o Brasil. Ela ressaltou que a impunidade dos crimes da ditadura não pode prosperar e que a Lei de Anistia de 1979 “é um obstáculo para que a Justiça seja feita às famílias”.
 
Mas há ainda vários percalços nessa trajetória. As audiências deste dezembro aconteceram após a tentativa dos acusados de trancamento dessa ação penal junto ao Tribunal Regional Federal (TRF) de São Paulo. Em novembro, ocorreu uma vitória para a impunidade: o TRF de Brasília trancou a ação penal contra o coronel da reserva Sebastião Rodrigues Curió por crimes praticados na Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Essa ação visa cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Estado brasileiro já há três anos a responsabilizar penalmente os autores dos crimes da ditadura.
 
Apesar das dificuldades, depois de quase 30 anos da transição democrática, nosso país finalmente vive o início de um processo mais amplo de responsabilização histórica constituído tanto pelas inúmeras Comissões da Verdade quanto pelas primeiras ações penais nessa matéria de autoria do MPF.
 
Com a palavra, agora, está o Poder Judiciário que deverá decidir, nesse e em outros processos criminais, se o Brasil permanecerá como um país “fora da lei” do ponto de vista do direito internacional. Teremos a oportunidade de dar uma resposta judicial contundente no sentido de que a impunidade e o esquecimento não mais encontram abrigo na nossa democracia.
 
* Inês Prado Soares é Procuradora Regional da República e coordenadora, com Flávia Piovesan, do livro “Direitos Humanos Atual: direito à Verdade e à Justiça”.
 
Renan Honório Quinalha é advogado e autor do livro “Justiça de Transição: contornos do conceito”
 
Redação

4 Comentários

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  1. A questão fundamental aí será a prova

    Em termos jurídicos, o que importará para a validade do processo e posterior condenação dos réus será o quanto a acusação conseguirá provar a autoria da prática do crime de sequestro, por exemplo, que não chega a ser coberto pelos efeitos da anistia, pois é um crime que se protrai no tempo (crime permanente).

    Enquanto o sequestrado não aparece, o crime ainda está sendo cometido.

    Neste caso, a tese do STF, elaborada no julgamento da ADPF que discutia a validade da lei de anistia para alguns crimes cometidos por agentes do Estado, não ajuda em nada o autor do crime.

    A tese ali é outra. É a do efeito imediato da anistia para crimes que se consumaram antes da entrada em vigor da lei, já que a lei da anistia foi equiparada a um ato administrativo de efeitos concretos. Todos foram anistiados no exato momento em que a lei entrou em vigor. Isso significa que, tecnicamente, a lei de anistia entrou em vigor e esgotou o seu objeto quase que imediatamente.

    Para crimes como o de sequestro, cuja consumação se prolonga no tempo, a anistia não serve para nada. O autor do crime ainda se encontra praticando o delito e, dessa forma, pode ser punido normalmente pelas leis atualmente vigentes.

    Se as provas carreadas ao processo comprovarem a autoria do sequestro, o resultado não poderá ser outro senão a condenação dos réus.

  2. A esquerda precisa se

    A esquerda precisa se decidir

    Ora a justiça é aliada das elites para perseguir petistas e similares

    E derrepente quando convem é uma força que age de forma inedita para enquadrar assassinos da direita

    Ser incoerente é mesmo uma merda né? rs

    tem que ficar mudando o disco ao sabor do assunto deve ser tao cansativo…

    1. relembrando

      Dizem que a esquerda defendeu o estado de direito, foram muitos os presos e torturados e executados por isto, crime de sangue da esquerda tiveram condenação execução etc. Dizem que mentes livres de direita quando do equivoco neste apoio funesto à redentora do primeiro de abril seguiram o caminho da revisão dos conceitos. Até a rede globo tardiamente fez o mesmo reconhecimento público deste equivoco, sem convencer ninguem. A “merda” como bem mencinastes são os leonidas.

  3. Mas tem um ponto que é inconveniente nisso tudo

    Crimes mais graves, como homicídio e tortura (a pena para o sequestro por vezes atinge patamares semelhantes à da tortura, que é normalmente de 2 a 8 anos – art. 1º da Lei nº 9.455/1997 – , mas apenas excepcionalmente, como no caso do § 2º do art. 148 do Código Penal, onde o sequestro, desde que resulte à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral) desde que praticados antes da entrada em vigor da lei de anistia, permanecem impunes, a valer a tese endossada pelo STF. O problema é que a tortura não era tipificada antes de abril de 1997.

    A brecha, por enquanto, é enquadrar pela prática do crime de sequestro. Até mesmo porque muitos dos crimes cometidos antes da entrada em vigor da lei de anistia podem ser considerados prescritos. Falo aqui em termos teóricos e pressupondo uma hipótese em que a persecução penal tivesse se iniciado sem que a prescrição dos crimes pudesse ser levantada (ainda tem mais esse obstáculo para quem defende punição para os que cometeram crimes durante a ditadura militar). Mas há quem defenda que os crimes poderiam ser considerados terrorismo de estado, crimes contra a humanidade etc, e, por isso, seriam imprescritíveis. O debate é amplo.

    Eu considero isso inconveniente em termos de política criminal. O certo mesmo era enquadrar tudo. Não faz muito sentido punir sequestro e não punir homicídios e torturas, por exemplo. Existe uma clara desproporção nesse cenário.

    Essa é uma realidade jurídica que abre espaço inclusive para discutir se não estará havendo uma violação aos princípios da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade.

    Ambos os lados podem se valer dessa alegação.

    A acusação poderá argumentar que será injusto pretender punir apenas os que cometeram sequestros, visando com esse argumento ampliar o espectro dos puníveis.

    E a defesa poderá argumentar que será injusto pretender punir apenas os que cometeram sequestros, visando com esse argumento diminuir o espectro dos puníveis.

    Uma mesma premissa servindo para conclusões diametralmente opostas. Pura dialética.

    Do meu ponto de vista, eu considero mais justo, pelo princípio maior da justiça, que todos os crimes pudessem ser punidos, tanto os sequestros quanto as torturas (neste último caso, pelo menos num tipo penal que pudesse enquadrar os atos de tortura, mas aí haveria o óbice da proibição da analogia, plenamente superável, é verdade, pois torturar alguém, pelo puro prazer de infligir dor física e psíquica, pode ser enquadrado como lesão corporal, maus-tratos), os homicídios e etc.

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