Aldo Fornazieri
Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.
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Uma vitória do povo, por Aldo Fornazieri

Lula terá que compor um sólido e competente governo plural. Até porque foram forças plurais que o elegeram.

Ricardo Stuckert

Uma vitória do povo

por Aldo Fornazieri

A verdade dessa duríssima campanha foi pronunciada ontem à noite por duas vozes: uma a de Lula e outra de Alckmin. Lula afirmou que a vitória não era dele, nem do PT e nem dos partidos que o apoiaram. A vitória foi do povo, foi da democracia, foi das mulheres e homens que a construíram. Alckmin proclamou que somente a liderança de Lula poderia derrotar a máquina da mentira, a medonha máquina do Estado que foi posta em movimento em benefício de Bolsonaro. É verdade: qualquer outro candidato que não fosse Lula teria perdido essa eleição. Se por um lado isto engrandece ainda mais a figura histórica de Lula, por outro, não deixa de ser assustador.

De fato, essa vitória foi do povo e da democracia, foi a vitória das mulheres, dos negros, da juventude, da educação, da cultura, da ciência, dos trabalhadores. A apatia do primeiro turno foi substituída por milhares de possas nas ruas. A arrogância do “já ganhou” do primeiro turno foi pisoteada pela combatividade do segundo turno. A percepção do perigo permitiu que se construísse a vitória dos moradores de rua, dos que têm fome, dos que moram debaixo da ponte. Foi a vitória daqueles que não têm esperança e foi a vitória da esperança.

Esta vitória derrotou o autoritarismo, a violência, o ódio, a incompetência e a indiferença. Esta vitória derrotou o deboche contra os mortos e o desprezo pelos vivos. Foi uma vitória que derrotou a desumanidade e que restaurou o sentimento do humano, de que somos uma comunidade e de que temos um destino comum.

Por isso, foi uma vitória da humanidade, da vida, do planeta, da natureza. Foi uma vitória das florestas, dos rios, dos seres das águas, dos pássaros dos céus, dos animais, das flores, dos frutos, dos grãos e das sementes. Foi a vitória de todos aqueles que querem deixar como legado para as gerações futuras, um planeta no qual se possa viver, no qual se possa contemplar as belezas naturais.

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Seremos indignos da nossa existência se deixarmos como legado uma  terra devastada, ruínas e escombros, áreas improdutivas e desérticas, secas de água, vazias de esperança. Seremos indignos da nossa existência se deixarmos como legado uma terra sem flores, sem que as vinhas possam crescer e frutificar, sem vindimas possam ser feitas e sem que o vinho para alegrar os corações.

Todo esse mal foi imediatamente derrotado. Mas não está morto. Ele paira em todos os lugares como uma ameaça. Essas eleições ainda deram-lhe força no Congresso, em governos estaduais. Temos que lutar muito ainda para que possamos deixar um bom legado. Temos que lutar muito para que possamos ser realmente dignos da dádiva da vida que recebemos.

Se aplicarmos a teologia das religiões e dos deuses antigos, que é a mesma teologia bíblica do pecado e da punição de Jeová, do Deus judaico-cristão, podemos dizer que este Deus puniu Bolsonaro, a sua esposa Michelle, Damares Alves, Silas Malafaia, Edir Macedo, o pastor Valadão, o pastor Hernandes e tantos outros vendilhões do Templo. Essa teologia diz que os pecadores serão punidos pela pela ira divina com derrota, consequência dos pecados que cometeram.

Sim, toda essa gente pecou contra a Constituição e contra o povo, pronunciou palavras blasfemas o tempo todo, assassinou a inocência para conseguir votos e não teve nenhum escrúpulo. Instrumentou os iracundos para que cometessem violência, espalhando o medo. Não hesitaram em jogar granadas e dar tiros contra os agentes da lei. Estimularam um país sem lei. Assassinaram para conseguir votos nas periferias. Perseguiram cidadãos com armas em punho pelas ruas movimentadas de São Paulo.

Tudo isso foi derrotado. O mal imediato foi afastado. Haverá tempo para recuperar o fôlego, recompor os nervos, restabelecer a calma. Lula terá tarefas gigantescas pela frente. Terá que exercitar até à exaustão sua imensa capacidade de diálogo. O realismo político nos indica que a tarefa será mais de reconstrução, de religação de diálogos, de fios de esperança, de recuperação de institucionalidade esgarçada, de práticas democráticas, de procedimentos legais.

Lula terá que compor um sólido e competente governo plural. Até porque foram forças plurais que o elegeram. As figuras que mais pontificaram nessa pluralidade no segundo turno foram Simone Tebet e Marina Silva, o senador Randolfe e Janones, entre tantos outros. Terá que dialogar com parte dos congressistas que foram seus adversários. Terá que dialogar com governadores de oposição.

Por fim, louve-se o TSE e Alexandre de Moraes. Sem a firmeza e a contundência deles é até de se duvidar de que essas eleições teriam ocorrido. Ao menos não teriam ocorrido da forma que ocorreram. Muitos criticaram as medidas excepcionais que o Tribunal e o ministro adotaram, classificando-as de censura e extrapolação do Estado de Direito.

Mas a história mostra que não se pode deixar que o Estado de Direito seja destruído, que a democracia seja destruída, pelos seus próprios instrumentos. Diante da violência excepcional de que Estado de Direito e a democracia são atacados, é legítimo que os limites da lei sejam utilizados de forma excepcional para salvar a ambos. Caso contrário a democracia é assassinada e a violência pode tingir de sangue as leis, a Constituição e o Estado de Direito. Foi isto que o TSE e Alexandre de Moraes evitaram. Este reconhecimento lhes é devido. E essa honra eles merecem.

Enfim, foi uma vitória dura e, em vários aspectos, amarga. O gosto mais amargo foi a derrota de Haddad em São Paulo. Mesmo que amarga, ela pode e deve ser comemorada. E nisto também está a sua doçura.

Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.

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Aldo Fornazieri

Cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política.

2 Comentários

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  1. O Sol há de brilhar mais uma vez
    A luz há de chegar aos corações
    Do mal será queimada a semente
    E o amor será eterno novamente…
    (Nelson Cavaquinho / Élcio Soares)

    Parabéns ao presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
    A sua vitória também significa a ratificação, pela maioria dos eleitores, da sua inocência e da sua absolvição sobre a covarde e criminosa trama praticada por, talvez, a mais poderosa coligação de forças que já se formou no país contra um político, contra a esquerda brasileira e contra a democracia.
    Porém, talvez o mais surpreendente em todo este finalizado processo eleitoral, certamente foi a constatação de que pouco menos da metade do total de eleitores, que votaram na data de ontem, destinaram seus votos a Bolsonaro.
    O que houve? Já esqueceram, ou não concordaram com as denúncias e com a flagrante indiferença governamental com o Covid 19, por todo país?
    Realmente eu entendo que se faz necessário que as autoridades, cujos profissionais se identifiquem e se dediquem ao estudo das reações humanas, se debruçam sobre este inexplicável fenômeno.
    Também entendo que o futuro governo Lula deve estar atento e forte, para colocar entre as suas prioridades um trabalho constante e evolutivo, para tornar o Brasil imune, blindado e preparado para que nunca mais nenhuma ameaça de inimigos da democracia e do bem estar social possam obter qualquer sucesso em seus futuros objetivos.
    ….. quero ter olhos pra ver
    a maldade desaparecer.

  2. Durante algum tempo nessas últimas semanas, cheguei a cogitar a possibilidade de estar, hoje, 31 de outubro de 2022, escrevendo um réquiem, mas, felizmente, o que sai é uma nota de alívio.
    Porque o mínimo que podíamos fazer, nós que ainda pretendemos – senão nós, pelo menos os nossos descendentes – viver em um país mais justo e menos desigual, já foi feito: remover do lugar o maníaco depravado que ora ocupa o Planalto.
    Mas o que vem aí é, ainda, terrível. Estamos voltando a uma situação já vivida, as pautas-bomba, a sabotagem do judiciário e do legislativo; livres do maníaco depravado, os grandes impérios de mídia retornarão à cloaca do ódio, da mentira, do achincalhe impune. Não se iludam quanto a isso.
    O bolsonarismo passará, pela absoluta mediocridade, incapacidade, e retardamento mental (apesar da inegável esperteza, mas esperteza não é inteligência) de seu protagonista, de seus herdeiros, e dos que o cercam; lembremos que é possível enganar bastante gente durante um tempo, mas impossível enganar a todos o tempo todo.
    O que vai ficar é o que sempre esteve entre nós: o fascismo. Este retornará ao armário, de onde espiará, como sempre o fez, a democracia e seus agentes legítimos, à espera da próxima oportunidade de entrar sub-repticiamente no quarto e mudar totalmente a sua arrumação, com as consequências que todos conhecemos.
    Pois o fascismo é menos uma questão referente aos atos que praticam seus seguidores, e mais à consciência, à essência humana de seus fanáticos – e não há como derrotar o que as pessoas são, apenas o que representam. Não deixarão de sê-lo. O fascismo é um caso único de um agrupamento de indivíduos que mantém como propósito objetivos individuais e não coletivos, e, não obstante, são capazes de crescer em número, como vem acontecendo na Europa; mas lá a pobreza e desigualdade extrema não estão presentes, mantendo fechados os olhos dos neófitos que parecem estar inflando os contingentes de neofascistas do velho continente. Só a ambição de ser, individualmente, próspero, os une. Podem ser indiferentes à pobreza, já que esta não se apresenta ostensivamente aos seus olhos; é preciso olhar para o distante terceiro mundo para tomar conhecimento dela, e até que isso aconteça, a parcela de culpa do Velho Mundo e da América rica por esta situação fica igualmente distante e bem disfarçada. É necessário mostrar à população em geral como o fascismo, acusando seus “inimigos” de corruptos, pratica largamente a corrupção; como o fascismo, recorrendo à apelação do uso do sentimento religioso das pessoas, pratica largamente exatamente o contrário do que reza o cristianismo; como o fascismo, pregando a paz, arma a população; pregando a democracia, suprime-a através do aparelhamento dos postos-chave do regime democrático; pregando a liberdade, escraviza a população na armadilha fácil de apontar culpados concretos, facilmente identificáveis, pelas mazelas, pobreza e miséria do povo, ocultando seus verdadeiros carrascos: não por acaso, e como exemplos, o agronegócio – que fatura bilhões enquanto a fome volta a assolar milhões de brasileiros – , a Religião – sim, cultuando o Deus do Antigo Testamento, senhor terrível, ávido por punição e vingança, como se fosse o Deus do Novo Testamento, Pai misericordioso e do Amor – e os ‘velhos políticos’, os mesmos de sempre, chamemo-los de baixo clero, centrão, o que for, travestidos agora de nova política, sem conchavos, sem tomá-lá-dá-cá, apenas rebatizando essas práticas de orçamento secreto, e dando-lhe o verniz da legalidade.
    58 milhões de brasileiros caíram – e seguem caindo – nessa esparrela. Fora mais alguns milhões, ao que parece, absolutamente indiferentes ao que acontece no país – e que tem que ser contados na mesma esparrela. Como tirá-los de lá?

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