Termo “Holocausto” não é prerrogativa de um único episódio histórico, dizem estudiosos

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Escravidão é genocídio comparável ao holocausto judeu e a bomba de Hiroshima, diz historiador; TVGGN aborda os "holocaustos esquecidos"

"A gente precisa parar de hierarquizar genocídio. Genocídio é genocídio", diz historiador. Reprodução/TVGGN
“A gente precisa parar de hierarquizar genocídio. Genocídio é genocídio”, diz historiador. Reprodução/TVGGN

Mesmo sem ter citado a palavra “Holocausto” no discurso em que comparou a guerra do governo sionista de Israel contra palestinos na Faixa de Gaza com o que o nazista Adolf Hitler fez com o povo judeu, o presidente Lula conseguiu chamar a atenção do mundo e, no Brasil em particular, abriu um debate sobre o emprego do termo “holocausto” para descrever outros genocídios.

Nunca será possível determinar o total exato de mortos pelo regime nazista. Especialistas trabalham com um número entre cinco e seis milhões de judeus. Mas o dado extravagante, associado a outras características peculiares do extermínio judeu, são suficientes para que alguns defendam que o termo Holocausto seja usado exclusivamente para se referir a esse episódio trágico da história da humanidade.

Para a antropóloga Lucia Helena Rangel, esse ponto de vista está equivocado. “Os israelenses e judeus tomaram para si a palavra Holocausto como um substantivo, [como se] Holocausto fosse o que Hitler fez com os judeus. E não é bem isso. Existem muitos holocaustos”, disse em entrevista ao jornalista Luis Nassif, do GGN.

Holocausto não é prerrogativa de um episódio histórico. Todos os holocaustos são comparáveis, sim, porque eles matam das mais variadas maneiras. Fisicamente, através de guerras e embates armados; através da fome; e têm matado, atualmente, através das questões ambientais”, defendeu Lucia Helena.

Ao GGN, o historiador Flávio Henrique Cardoso criticou o que chamou de “cinismo” da população e da mídia brasileira, que supervalorizam genocídios quando estes ocorrem no Norte do Globo, esquecendo de inúmeros outros massacres praticados pelos países colonizadores em diversas partes do mundo.

“A gente precisa parar de hierarquizar genocídio. Genocídio é genocídio. Lula, quando fez a analogia, falou das semelhanças das ações do Estado de Israel com as ações dos nazistas, e há muitas semelhanças. Não dá para dizer que é a mesma coisa, mas há muitas semelhanças, pontuou.

“A história do colonialismo é a história do genocídio”

O internacionalista Bruno Huberman, especializado em colonialismo e membro de um grupo de estudo sobre conflitos internacionais, disse em entrevista ao GGN que os elementos centrais da composição dos genocídios pelo mundo são justamente o colonialismo e o racismo. “A história do colonialismo é a história do genocídio”, disparou.

Huberman citou a obra do australiano Peter Bold, que fala em “colonialismo de assentamento ou de povoamento”. Esse colonialismo é fundamentado na eliminação da população nativa de um país ou região, que pode se dar através de morte, expulsão, aculturamento, assimilação e miscigenação ou, ainda, confinamento em reservas (como no caso dos indígenas e quilombolas) ou enclaves – exatamente a situação dos palestinos na Faixa de Gaza.

Para compreender como se relacionam processos coloniais muito distintos – como o britânico nos EUA, o português e espanhol na América do Sul, ou mesmo o colonialismo israelense na Palestina – é preciso analisar a propagação de uma cultura de “desprezo pela vida da população subalterna”.

“O que a gente mais vê no Brasil desde o processo colonial é a desumanização dos povos indígenas e negros, e o mesmo se aplica no caso da Palestina. Racismo e violência motivam o genocídio. Por isso que a gente vê generais israelenses chamando palestinos de animais. Nazistas chamavam os judeus de ratos. Aqui chamam os negros de macacos. Sempre vai haver um processo de desumanização para justificar a violência mortífera. Essa necropolítica demonstra a conexão entre os diversos genocídios”, explicou.

Escravidão e massacre indígena, os holocaustos brasileiros

Flávio Cardoso, historiador e idealizado do projeto Negrociando, disse ao GGN que a história da escravidão no Brasil e no mundo já foi comparada, por organismos internacionais, ao holocausto judeu e ao bombardeamento atômico de Hiroshima-Nagasaki.

“Escravidão no Brasil foi um genocídio comparado ao holocausto e a Hiroshima. (…) Só de mortes [de escravos negros que naufragaram] no Atlântico, pelas péssimas condições da viagem, morreram 2 milhões. Isso é genocídio”, destacou.

Segundo os estudos do premiado pesquisador e escritor Laurentino Gomes, mais de 12,5 milhões de africanos foram embarcados à força para o continente americano para serem escravizados. Desse total, 40% desembarcou no Brasil, ou seja, 4,9 milhões. Quando a Lei Áurea finalmente foi assinada, existiam apenas 700 mil negros no país.

Flávio Cardoso chama atenção para o genocídio negro segue em curso, já que a população sofreu com o branqueamento e marginalização social. “A gênese da palavra genocídio – que significa matar povos, etnias, grupos – você vê em todos os dados do IBGE sobre o Brasil. Há um genocídio em movimento. Curiosamente, pode comparar os dados de 50 anos atrás e os dados de hoje, é sempre um grupo específico que morre mais.”

Para a antropóloga Lucia Helena Rangel, que é assessora do Conselho Indigenista Missionário, o massacre do povo e a exploração dos territórios indígenas também configuram outro holocausto brasileiro.

“Quando garimpeiros contaminam água e solo com mercúrio, isso é genocídio. Há dolo. Eles sabem que essa contaminação vai trazer problemas para a população”, disse.

Para Cardoso, é preciso alterar duas concepções sobre o termo genocídio, cujo conceito foi estabelecido pelos organismos internacionais na década de 1940. Primeiro, é preciso desmistificar a ideia de que massacres que aconteceram antes dessa data [como a escravidão nas Américas] não se enquadram como genocídio. Segundo, ampliar o crime de genocídio para condutas praticadas não só com dolo, mas também involuntariamente.

“Existe o genocídio inconsciente, ou seja, você pode praticar o genocídio sem ter intenção. E o Brasil tem vários exemplos dos dois”.

Flávio Cardoso, Lucia Helena Rangel e Bruno Huberman foram entrevistados por Luis Nassif no programa TVGGN Justiça, que é transmitido ao vivo toda sexta-feira, sempre às 18 horas.

Assista ao programa completo abaixo:

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

3 Comentários

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  1. Todas as colocações dos debatentes, são verdadeiras e pertinentes. Só não é verdadeira a alegação de que Israel está em guerra com o Hamas. Guerra pressupõe que ambos estejam armados e pelo que sei o Hamas não dispõe de blindados, de aviões, navios e mísseis. E os Palestinos atacam tanques de Israel com pedras e paus, isto não pode e não deve ser chamado de guerra.
    Comparar o que israel esta fazendo com o que Hitler fez, é uma inverdade, Israel está matando com requintes de crueldade, com armas proibidas, com fome, sede e mutilações, além de atacar hospitais. Hitler foi mais humano, matou de forma indolor, para ilustrar relembro o episódio dos jovens que dormiram num carro BMW com ele funcionando para usar o ar condicionado e faleceram as por vazamento do gás monóxido de carbono.

  2. O termo holocausto pode sem dúvida ser atribuído a muitos fatos históricos e ganhou significados simbólicos para muitos povos e vem ocorrendo com frequência no mundo. Da mesma forma como as tragédias humanas que ocorreram nos balcãs deu origem ao termo “limpeza étnica”. Mas cada um destes termos ganha significado quando se discute os fatos que os acompanham, mas infelizmente a discussão em cima da frase de Lula é apenas um distrator. Não querem discutir os fatos. Como sempre a extrema direita provoca a discussão transformando significados em conceitos abstratos para encobrir a realidade. Isto torna a discussão sobre o conceito muito conveniente para distanciar a discussão sobre a trágica realidade. Isto não é uma crítica a quem está no debate nem ao conteúdo do que foi escrito. O conteúdo é extremamente relevante, e diz respeito a realidades que foram escondidas e que devem ser mostradas, mas não posso deixar de me sentir dentro de uma armadilha, sendo obrigado a explicar, comparar etc… Seguindo Morin ( judeu, que lutou na resistência francesa): a minha tristeza mais profunda é que pessoas e descendentes, vítimas daquele horror não mobilizem a empatia e parem esta guerra.

  3. De maneira irreverente e superficial devo dizer que ninguém soube apropria-se com mais competência do termo “holocausto” do que os judeus eis que servos de um deus que sempre se serviu deles exigindo sacrifícios de sangue. O tempo ensina, o judeu prospera em nome do seu deus e holocausto vira holograna. Só eles conseguem tirar lucro do sacrificio dos seus com exclusividade. Por isso tomaram para sí o domínio da palavra e com ele o domínio da prática contra os inimigos de seus interesses. Se sobre eles sobrevier uma vingança sangrenta, será um holocausto, se ao contrário eles praticarem uma vingança sangrenta será apenas o divino direito à justiça e reparação.

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