Governo de SC adota postura “potencialmente criminosa” na TI Xokleng, diz Cimi

Renato Santana
Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.
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Para o Cimi, o episódio é uma forma de revide armado à derrota sofrida pelo governo no STF referente ao marco temporal 

Na imagem, a Barragem Norte vazia e ao seu redor aldeia afetada pela cheia gerada com o fechamento de comportas. Foto: Renato Santana

A Polícia Militar de Santa Catarina invadiu no último domingo (8) uma aldeia da Terra Indígena Laklanõ Xokleng, em José Boiteux, ocasião em que ocorreu um conflito em função do fechamento das comportas da Barragem Norte, instalada no território tradicional pela Ditadura Militar (1964-1985) em 1976, mas até hoje não finalizada e com sérios problemas de manutenção. 

Três indígenas foram baleados quando os Xokleng reclamavam que o cumprimento da decisão estava ocorrendo antes do prazo acordado pelos indígenas com as autoridades. O Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal apuram o caso – o que pode gerar a apresentação de uma ação judicial. 

Para Cleber Buzatto, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, o episódio é uma “forma de um revide armado à derrota sofrida no STF (Supremo Tribunal Federal), referente à inconstitucionalidade do marco temporal, culpando os Xokleng pelas enchentes nas cidades do Vale do Itajaí”. 

Na manhã desta sexta-feira (13), a cota máxima de 310 metros, chamada “cota 310”, está a poucos centímetros de ser atingida (assista no vídeo acima) e quando ela for atingida, uma enchente terá início afetando uma grande área de mata e casas da aldeia Plipatol – assista explicação detalhada no vídeo abaixo. Os Xokleng residentes no local foram evacuados. As águas passarão pelo vertedouro sem a conclusão das obras do canal extravasor.

As aldeias Palmeira e Figueira, também na “cota 310”, estão sob risco de inundação. Uma estrada que dá acesso à aldeia Bugio está interditada devido a deslizamentos provocados pelo fechamento da barragem. A comunidade está isolada. Caso semelhante pode ocorrer com a estrada que liga a Terra Indígena ao município de José Boiteux.

Conforme o Cimi, diante de toda a situação de perigo a que estão submetidos os Xokleng, não garantindo o fim das enchentes no Vale do Itajaí, o governo de Santa Catarina adota uma postura “irresponsável” e “potencialmente criminosa”.  

O governo estadual afirmou que o fechamento das comportas era necessário para responder às fortes chuvas que caem sobre o estado nos últimos dias. A comunidade não se opôs, mas temia que a operação, não realizada há mais de uma década, alagasse suas aldeias.

Exigiam assim o cumprimento Plano de Contingência para Eventos Hidrológicos e Geológicos da Comunidade Indígena Barragem Norte e tempo para deixar as casas em áreas de risco de alagamento. No fim da tarde de domingo, as duas comportas da barragem, abertas há mais de uma década, foram fechadas. Os Xokleng tiveram estradas inundadas e as aldeias estão sem acesso à água potável. 

A ação de fechamento da barragem ajuda a represar parte da água do rio Itajaí-Açu, minimizando os alagamentos em Blumenau, principal cidade da região, que decretou estado de emergência. A barragem nunca foi concluída. O canal extravasor, para garantir a segurança das operações, ainda não foi construído. 

Brasílio Xokleng, uma das lideranças mais velhas do povo, conta que a Barragem Norte é um trauma todos os dias visto pelos indígenas porque quando a ditadura a construiu, dividiu o povo, fragmentando-o pelo território e mudando radicalmente a organização social tradicional. Agora o governo usa a barragem para mais uma vez desalojar moradias à força.

Ocorre que em laudo datado de agosto de 2021, apresentado pelo governo do estado de Santa Catarina, na noite desta segunda-feira (9), no bojo da Ação Civil Pública (ACP) Nº 5012227-71.2018.4.04.7205, a empresa Hidros Engenharia expõe uma série de problemas de segurança na Barragem Norte, localizada no município de José Boiteux. 

Dezenas de anomalias

Conforme Cleber Buzatto, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul, a Resolução 236/2017 da Agência Nacional de Águas (ANA) determina que as barragens existentes no Brasil devem passar por Inspeção de Segurança Regular (ISR), via de regra, anualmente. A periodicidade máxima permitida para a realização dessas inspeções é de dois anos.

“Dezenas de anomalias com diferentes magnitudes e níveis de perigo foram listadas. Desde a emissão do laudo em questão, há mais de dois anos, nenhuma obra de manutenção foi realizada na estrutura da Barragem. Assim, é alta a probabilidade de que a gravidade da situação seja ainda pior”, explica Buzatto.

Para ele, o governo de Santa Catarina descumpriu o acordo e atacou o povo Xokleng para fechar uma barragem que representa perigo e leva insegurança à vida na Terra Indígena, que sofreu severos impactos quando da construção do empreendimento pela ditadura. Com 14 anomalias, a barragem leva perigo, conforme o Cimi, a toda população a jusante do rio. 

“Em função do descumprimento de acordos judiciais firmados ao longo dos anos 1990 e 2000, tem ação transitada e julgada no STF desde agosto de 2017. O Poder Judiciário condenou o governo do estado de Santa Catarina a implementar medidas compensatórias relativas à Barragem Norte, que nunca cumpriu”, declarou Buzatto. 

Plano não cumprido

O missionário do Cimi explica que o governo estadual deveria ter acionado e estar cumprindo as condições estabelecidas pelo Plano de Contingência para Eventos Hidrológicos e Geológicos da Comunidade Indígena Barragem Norte. Ao contrário, o governo acionou a Justiça para conseguir uma tutela cautelar para o Poder Público operar a barragem. 

Mesmo sem saber sobre o plano acordado pelo governo estadual e o povo Xokleng, o juiz federal Victor Hugo Anderle determinou que caberia à União fornecer o suporte operacional ao cumprimento da decisão, inclusive com o auxílio das forças policiais. Informado pelo MPF, o juiz determinou que o governo do estado cumprisse medidas de mitigação. 

Entre elas, desobstrução e melhoria das estradas, equipes médicas em postos de saúde 24 horas, três barcos e um ônibus para locomoção até a cidade, água potável, fornecimento de cestas básicas. Depois das comportas fechadas, algumas casas acabaram inundadas e deveriam ser reconstruídas longe do rio.  

“No intuito de acobertar a própria incompetência e ineficácia, na contramão dos acordos firmados e da tutela cautelar, em movimento traiçoeiro, o governo determinou o uso da própria força policial para atacar o povo Xokleng. Desastrosa e irresponsável a operação da polícia”, diz.  

Resposta da PM

A Polícia Militar de Santa Catarina afirmou, em nota, que o confronto com os indígenas foi pontual: “os policiais buscaram o entendimento com as lideranças indígenas para garantir o fechamento das comportas. A comunidade pediu o apoio do Governo do Estado, que foram prontamente atendidos com o envio de ambulâncias, barcos, médicos e milhares de cestas básicas”.

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Renato Santana

Renato Santana é jornalista e escreve para o Jornal GGN desde maio de 2023. Tem passagem pelos portais Infoamazônia, Observatório da Mineração, Le Monde Diplomatique, Brasil de Fato, A Tribuna, além do jornal Porantim, sobre a questão indígena, entre outros. Em 2010, ganhou prêmio Vladimir Herzog por série de reportagens que investigou a atuação de grupos de extermínio em 2006, após ataques do PCC a postos policiais em São Paulo.

1 Comentário

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  1. Imagino que algumas autoridades imbecis bolsonarista da extrema direita podem estar dando um tiro no próprio pé e colocar em risco, muito maior e mais grave, toda cidade de Blumenau e adjacências.

    Se não existe manutenção e as forças da natureza indicam mais chuvas na região, a forte pressão que a força da água represada exercerá sobre comportas sem manutenção e,talvez, mais fragilizadas pelo tempo e pela própria falta de manutenção e dados estatísticos,que já não devem ser tão confiáveis, certamente transfere toda a responsabilidade por qualquer tragédia que possa acontecer com um possível rompimento, para o colo dos imbecis autoritários, preconceituosos e racistas.

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