Brasil, um país genocida

 
 
 
“Recebi um telefonema de um policial da família às oito horas da manhã pedindo para avisar para as pessoas de bem, e não para lixo, que quem estivesse no meio da rua era inimigo da polícia. Então eu saí dando esse aviso para as outras famílias, só não imaginava que isso sobrecairia sobre mim. Quando foi onze e trinta da noite meu filho foi assassinado”. 
 
O depoimento é de Débora Maria da Silva, fundadora e coordenadora do Mães de Maio, movimento formado por mulheres que perderam seus filhos durante o toque de recolher imposto pela polícia do Estado de São Paulo, em maio de 2006, quando ocorreram ataques aos agentes e equipamentos públicos provocados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital), grupo do crime organizado nascido nas penitenciarias. Em apenas uma semana cerca de 600 pessoas foram assassinadas, todas com perfis muito semelhantes: jovens, negros ou pardos, moradoras de bairros da periferia. 
 
No dia em que recebeu a ligação do policial, seu filho decidiu ir ao trabalho, mesmo tendo atestado médico por ter operado a boca. “Ele passou em casa, então avisei sobre o que o policial falou, mas ele respondeu ‘ó mãe, eu não devo nada para a polícia’. Ainda repetiu isso duas vezes e continuou: ‘só vim buscar a amoxicilina porque está tudo fechado”. 

 
De noite, enquanto abastecia sua moto em um posto de gasolina, duas viaturas da polícia encostaram e perguntaram o que estava fazendo na rua. Sua resposta – “eu não devo nada para vocês” – foi também sua sentença de morte. 
 
“Quando o meu filho falou isso eles começaram a espancá-lo. Deram chutes, murros no peito, tapa no rosto e disseram: “Você é um trabalhador até morrer. Morreu, você é um bandido”. Todas as informações que Débora conseguiu reunir para investigar as causas do assassinato de seu filho foram conseguidas por conta própria, a partir de depoimentos das pessoas que viram a ação policial. Seu filho foi morto pelas costas, com cinco tiros. Ela conta que a polícia fez apenas uma revista física e não olhou os documentos de quem nunca teve passagem em uma delegacia.
 
Ela descobriu também indícios fortes de que os mesmos policiais que ela acredita terem realizado a execução do seu filho, o socorreram e protocolaram o boletim de ocorrência. Não ouve exame balístico por falta de balas na cena do crime. Apenas uma ficou alojada na coluna cervical do rapaz e há dois anos Débora conseguiu que fizessem a exumação do cadáver para retirarem o projétil.
 
“O médico legista me chamou no Ministério Público Central e disse que em princípio era um projétil de calibre 38, que na época os policiais militares usavam. Achava que essa era uma esperança de investigação por parte do Ministério Público, mas acabou não dando em nada. O projétil está arrolando (sic) no inquérito do meu menino, em um saco plástico, porque não tem a arma para fazer exame balístico”, e assim o caso foi arquivado.  Débora participou do programa Brasilianas.org (TV Brasil) sobre a responsabilidade direta e por omissão do Estado pelo elevado número de mortes registrado todos os anos.
 

O debate também contou com a participação do jurista Luiz Flávio Gomes, defensor da proposta de que o Brasil deve ser enquadrado como um Estado genocida. “Quando você tem um conjunto de homicídios dentro de uma estrutura de poder, que neste caso é o Estado, claro que é um genocídio. Pois o que é um genocídio? Significa tentar eliminar uma raça, uma cor, uma etnia, uma religião ou matar gente de determinada categoria socioeconômica”, completa.
 
O Brasil é um país violento. Dados publicados do último Mapa da Violência, neste ano, apontam que de 1980 até 2012 o volume de assassinatos cresceu 148,5%. De 2003 até 2012, 556 mil homicídios aconteceram no país, somente em 2012 mais de 56 mil pessoas foram mortas por outras, contabilizando algo em torno de153 assassinatos por dia, números bem superiores a qualquer outro registrado em zonas de guerra pelo mundo. A título de comparação, em quase um mês de conflito entre Israel e Palestina, cerca de 2 mil pessoas foram mortas na Faixa de Gaza.
 
“Muitos dos homicídios não tem nada a ver com o Estado. É marido que mata mulher, vizinho que mata vizinho. Mas boa parcela é de responsabilidade direta do Estado”, explica. Entre 2005 e 2009, a polícia militar de São Paulo matou mais do que todos os agentes de segurança dos Estados Unidos. Segundo relatório divulgado pela Ouvidoria da Polícia de São Paulo em 2011, 2.045 pessoas foram mortas pela PM no período. Já um relatório do FBI, publicado no mesmo ano, apontou 1.915 mortes nos Estados Unidos em confronto com as forças policiais, entre 2005 e 2009. 
 
Flávio Gomes ressalta que é importante se estabelecer que os policiais militares também são vítimas do Estado. “Esse genocídio não vitimiza apenas os jovens da periferia, como também muitos jovens policiais que, destreinados, são mandados para as ruas sem nenhuma noção do que é direitos humanos”, analisa. Ele critica declarações públicas de representantes de governo já ditas à imprensa como “quem não reagiu está vivo”, “bandido bom é bandido morto” e lembrou que o Estado do Rio de Janeiro tem registrado na sua história recente a premiação de policiais que mais realizaram assassinatos. 
 
https://www.youtube.com/watch?v=wnNMGFavrN8 width:700 height:394]
 
O jurista compreende que o homicídio no Brasil é um problema sociológico, além de um problema jurídico. “Isso [o assassinato em massa de pessoas com o mesmo perfil, é da história do Brasil, da cúpula do poder que computa que muitos são extermináveis, sem nenhum valor”, lembrando que o direito romano já trazia o termo homo sacer para designar a figura de uma pessoa excluída de todos os direitos civis, que pode ser morta sem a impunidade do seu algoz. No caso brasileiro, o homo sacer são jovens, negros e moradores da periferia.
 
Ainda, segundo o Mapa da Violência, ocorreu uma queda anual do número de pessoas brancas assassinadas de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012, o que representa uma diminuição de 24,8%. Por outro lado, entre os negros as vítimas aumentaram de 29.656 para 41.127 durante esses mesmos dez anos, um crescimento de 38,7%. 
 
“É inaceitável que paguemos a bala que mata os nossos filhos. É como se fosse voltando no tempo dos senhores fidalgos (sic). Temos o capitão do mato que é o policial que só mudou de corpo, que tem a lei e o dinheiro ao seu favor”, diz Débora. 
 
O genocídio praticado diariamente no país tem todas as características de um crime contra a humanidade, pondera Flávio Gomes. A Comissão Internacional de Direitos Humanos, que já julgou Bolívia e Peru por casos semelhantes, é a instituição que poderia culpar publicamente o Brasil e trazer justiça aos familiares de vítimas executadas com a anuência do Estado, que já foi condenado, em 2010, pela morte de 62 guerrilheiros no conflito do Araguaia, durante a Ditadura Militar.

 

Redação

18 Comentários

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  1. Vivemos em um país em que a

    Vivemos em um país em que a taxa de juros é de 11%, enquanto no resto do mundo inteiro praticamente ela está nos níveis mais baixos da história, aliás, em alguns lugares do mundo ela está no nível mais baixo possível, i.e., ela está zerada.

    Isto significa que aqui temos uma economia em que a relação capital-trabalho é brutal, em favor do capital.

    Não discutamos aqui as causas deste nível de juros. Apenas façamos a comparacção com o resto do mundo inteiro. Em nenhum outro país que não esteja quebrado ou insolvente isto ocorre.

    Em nenhum país “saudável” isto ocorre.

    Ou seja, o Brasil é um país em que o regime só se mantém na base da força.

  2. A César o que é de César

    Simples assim: tratar com dureza os recalcitrantes; oferecer condições efetivas para os que querem mudar de vida. Infelizmente, no Brasil, ocorre o inverso: os piores meliantes são tratados com poesia; os que ainda podem ser recuperados são submetidos a condições que os levam para o primeiro grupo.  

     

  3. A César o que é de César

    Simples assim: tratar com dureza os recalcitrantes; oferecer condições efetivas para os que querem mudar de vida. Infelizmente, no Brasil, ocorre o inverso: os piores meliantes são tratados com poesia; os que ainda podem ser recuperados são submetidos a condições que os levam para o primeiro grupo.  

     

  4. Dada a coincidência étnica e

    Dada a coincidência étnica e territorial das vítimas não é exagero usar o termo genocídio. Aliás, o que não falta em nossa história é genocídio.

  5. Teoria & Prática

    Assisti ao programa brasilianas. Participaram um teorico e uma uma pessoa amargurada, portanto, como só poderia acontecer, apresentou uma visão unilateral sobre o assunto. Faltou um convidado que fizesse a indispensável união teoria/prática, um convidado que conhecesse o real combate a marginalidade, o dia a dia. Tivemos apenas poesia e amargura. 

  6. Teoria & Prática

    Assisti ao programa brasilianas. Participaram um teorico e uma uma pessoa amargurada, portanto, como só poderia acontecer, apresentou uma visão unilateral sobre o assunto. Faltou um convidado que fizesse a indispensável união teoria/prática, um convidado que conhecesse o real combate a marginalidade, o dia a dia. Tivemos apenas poesia e amargura. 

  7. Brasil, um pais genocida

    É indispensável que as pessoas de bons propósitos e que falam e emitem opinião, saiam da teoria para a prática, assumindo tarefas e cargos nos quais elas podem mudar o Brasil, para não ficar só no blá, blá, bla.

  8. Votaria com gosto na Dilma se

    Votaria com gosto na Dilma se ela quisesse implementar o “Bolsa-vida”. Qualquer programa mínimo de justiça social no Brasil deve começar por  realiar todos os esforços para acara com essa matança dos negros e pobres, que náo se justifica nem por uma razão de poder econômico.

  9. Anjos x Demônios

    Nassif, sou seu fã, mas ouso discordar. O título poderia ser Brasil, um país maniqueísta. Se é pobre, negro, da periferia, é sempre vítima, desde que não tenha seguido a carreira policial? Não questiono que o rapaz assassinado seja um trabalhador. Ele ignorou a situação, enquanto que na minha escola todo mundo foi dispensado e foi para casa, porque sabíamos que o caldo estava entornando. Concordo que é um absurdo a morte de tanta gente. Mas não apresentar ao leitor o contexto é leviano. O toque de recolher quem impôs foi o PCC, eu me lembro, pois vivo na periferia, não na Vila Madalena. Quem nos avisou para fechar a escola foi a bandidagem, e de moto. E nós da periferia aprendemos a dançar conforme a música. Se você está sendo assaltado, olhar para a cara do bandido ou retrucar é pedir pra morrer. Isso não justifica a morte, mas não dá pra posar de herói na frente de uma arma. O mesmo vale para uma situação de guerra como o terror imposto pelo PCC: policial na rua era alvo. Aí a vítima diz, nesse contexto, ao ser abordado, e questionado sobre o que fazia na rua, que não deve nada para o policial? É óbvio que isso não justifica nada, mas a vítima por acaso não conhece as regras da periferia? Quis posar de herói num momento de guerra, e teve o azar de topar com maus policiais. Daí vêm elocubrações como “extermínio da juventude negra”, que poderiam ser também “extermínio da população pobre”, “extermínio da população cristã”, “extermínio da população corintiana”, ou qualquer outra maioria que esteja politicamente na moda, direcionando um problema para outras causas. Nos três enquadros que eu tomei até hoje a história foi sempre a mesma: responder às perguntas, apresentar os documentos, obedecer a autoridade. Nunca posei de herói indignado. Nunca me senti ameaçado pela polícia. Mas vivo acuado pela bandidagem desde criança. Reforçando aos que por ventura não entenderem o que eu quero dizer: nada justifica tantas mortes juntas, nem o assassinato do rapaz em questão. Mas não se deve desconsiderar tudo o que estava em volta do caso. Ou alguém em sã consciência imaginaria os policiais nessa situação, respondendo de cabeça baixa, quase chorando, à falta de educação do abordado com um “desculpe aí senhor, é que estamos com medo do senhor ser do PCC e matar a gente, mas perdão, temos que perguntar isso, já estamos indo senhor, me desculpe de novo”? Creio que todos que palpitam sobre um tema devam conhece-lo de perto, caso contrário advogam em outras causas. Falar de periferia sem conhecer o que é viver na periferia, e suas regras, só com a visão distante da classe média descamba para a parcialidade. Quanto à mãe, está correta em buscar a verdade. Mas vejam: mães de jovens que são santos lutam por eles. Mães de jovens bandidos também lutam por eles. Mães de jovens comuns também lutam por eles. A dor da mãe deve ser respeitada. Mas sua visão não pode ser a verdade absoluta.

  10. matança

    Essa matança continua até hoje ,os jornais não cobrem a periferia ,fica valendo a versão policial o MP só investiga casos que lhe darão midia ,enquanto a policia mata sem do nas periferias da cidade .

     

  11. Morre um político e a mídia
    Morre um político e a mídia oligárquica explora o fato com a maior cara-de-pau em busca de dividendos políticos muito bem conhecidos.  Já o genocídio da população pobre, negra e parda não serve de pauta para essa mídia. Até porque os barões dessa mídia espúria sabem muito bem que eles são os maiores responsáveis por esse descalabro em curso no país ao estimular a violência policial com sua retórica medieval baseada no “olho por olho, dente por dente” que lhes rende sempre muita audiência e dinheiro.Até quando suportaremos essa tirania? Ninguém elegeu dono de jornal, revista, rádio e TV para determinar os destinos da nação, PORRA!!!!!

  12. Lamentavelmente há grandes

    Lamentavelmente há grandes possibilidades disso aumentar:

     

    Enviado por Jorge Antonio Barros – 

    14.8.2014

     | 

    10h00m

    POLÍCIA

    Guardas armadas

    A indústria de armamentos letais e não letais está sorrindo de orelha a orelha. A presidente Dilma sancionou o estatuto geral que regulamenta as guardas municipais, que estão autorizadas a usar armas de fogo. 

    Controle de manifestações… 

    As guardas, subordinadas às prefeituras, poderão empregar o “uso progressivo da força”, o que significa a atuação no controle de distúrbios civis, além de serem incluídas no sistema nacional de segurança pública.

     

    (http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/)

  13. Vemos aqui o de sempre, que é

    Vemos aqui o de sempre, que é o uso indiscriminado de termos fortes (como “genocídio”; outro que adoram é  “fascismo”) pela parte dita “progressista” do debate público. Pra quem sabe o significado dos termos, não há genocídio nenhum em curso no país. O que não torna os massacres perpetrados por agentes de segurança pública mais aceitáveis, óbvio, mas colocar o que se passa nos termos corretos tira o debate do terreno do emocional desmiolado e o traz pro domínio da razão. E é só no domínio da razão que se pode buscar soluções.

  14. o termo genocídio é meio

    o termo genocídio é meio forte 

    mas

    já que o problema existe é preicso contexxtualizá-lo

    historicamente.

    o coronelismo brasileiro já foi estudado.

    machado de assis já ironizou a elite brasileia,

     

    dizendo que ela copia tudo de bom lá de fora,

    a fiosofia iluminista, ideiais avançadas, etc e tal,

    papagueia,

    mas na hora de lidar com os seus,

    escravos, açoita-os.

    a pm, como a grande mídia

    é um entulho autoritário.

    a luta então é dissolver esses

    poderes excrescentes,como fazê-lo?

    aprofundar a democracia sob todos os angulos

     

     

     

     

     

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