Facções ampliaram atuação em garimpo e em crimes ambientais na Amazônia

Estudo divulgado pelo Fórum Nacional de Segurança Pública traz dados sobre violência e presença de organizações criminosas na região.

Na foto acima, detalhe da cela de presídio em Boa Vista, Roraima (Foto: Thiago Dezan / Farpa/ CIDH).

do Amazônia Real

Facções ampliaram atuação em garimpo e em crimes ambientais na Amazônia

por Elaíze Farias


Manaus (AM) – As facções criminosas estão presentes em 23% dos municípios da Amazônia Legal. Um estudo inédito de especialistas do Fórum Nacional de Segurança Pública divulgado nesta quinta-feira (30) identificou que 178 de 772 municípios têm presença destas organizações. Nestas cidades, vivem 57,9% dos habitantes da região. São 22 facções que disputam territórios em todos os estados da Amazônia, mas não há um grupo considerado hegemônico. De acordo com o estudo, o grupo que mais chega neste patamar é o Primeiro Comando da Capital (PCC), que também está presente na Bolívia, Guiana, Guiana Francesa, Suriname e Venezuela.

“Algo como 1/3 dos habitantes da Amazônia Legal está em áreas conflagradas e em disputa, sujeitos às dinâmicas de violência extrema e sobreposição de ilegalidades e crimes”, diz o estudo “Cartografias da Violência na Amazônia”.

Nos últimos quatro anos, estas facções ampliaram suas frentes, atuando em ilícitos ambientais, com forte presença em áreas de garimpo ilegal, como é o caso da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. De acordo com o estudo, a incidência de facção nas zonas de garimpo provocou o aumento de tensão e conflitos na estrutura da atividade no território, as chamadas “corrutelas”.

Estes espaços “são locais onde tradicionalmente há o consumo excessivo de álcool por parte dos garimpeiros e do uso de substâncias ilícitas, principalmente a cocaína. De modo geral, portanto, a dinâmica violenta nas zonas de garimpo é uma marca histórica e decorrente das próprias características do fenômeno. A exploração sexual de meninas e mulheres é uma dessas facetas”, diz o estudo.

As facções passaram a atuar dentro das terras indígenas na última década, mas conforme Aiala Colares Couto, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA) e um dos coordenadores do estudo, tudo leva a crer que a presença do PCC na TI Yanomami se fortaleceu em 2019, quando houve uma fuga do sistema prisional em Roraima. Os primeiros fugitivos entraram no território porque é uma região de difícil acesso.

“A partir dali eles observaram que seria interessante manter toda a organização da estrutura. Antes da chegada das facções, o que havia era venda de drogas. Agora, vai ter um canal de comunicação mais organizado que passa a controlar as corrutelas, passa a trabalhar com contrabando de armamentos e munição e a utilizar a estrutura do garimpo para atender as demandas do narcotráfico”, disse o pesquisador em entrevista à Amazônia Real. Aiala Colares Couto é quilombola e Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA.

Conforme Couto, o garimpo é estratégico porque tem estrutura, com pista de pouso, que ajuda a transportar droga. “Não é apenas para carregar ouro, mas comercializar e carregar droga. Comercializar droga dentro do garimpo e ouro é vantajoso do ponto de vista econômico”, disse.

Em maio de 2021, a Amazônia Real noticiou com exclusividade que membros do PCC atacaram uma aldeia Yanomami na região de Palimiú, iniciando ali uma escala de violência que se expandiu para outras áreas do território. O avanço da facção também foi relatado no especial “Ouro do Sangue Yanomami”, publicado em 21 de junho de 2021.

O pesquisador também alertou para a expansão das facções a outros territórios indígenas, não limitando-se à TI Yanomami, como é o caso das terras Munduruku, no Pará, em especial nas cidades de Itaituba e Jacareacanga.

“São áreas com invasões de terras indígenas e o tráfico de drogas vem crescendo nos dois municípios. Esses grupos se aproximam das áreas de garimpo. Já houve apreensões de drogas dentro de áreas de garimpo em pista de pouso”, afirmou o pesquisador.

Para Couto, apesar das operações do atual governo federal na TI Yanomami, não há sinais de que a exploração ilegal de ouro se enfraqueceu.

“O contexto é muito complexo. Primeiro que não se deve associar todos os garimpeiros a facções, isso é uma inverdade. Muitos vivem em situação análoga à escravidão, são precarizados. Se quer substituir o garimpo, qual a alternativa que se coloca no lugar? É uma atividade que tem mais de três décadas na região amazônica”, afirmou.

Para ele, os modelos de desenvolvimento para a Amazônia até agora foram equivocados, resultando em desmatamento, queimadas e violência. Estes modelos “antigos” presençam ser repensados e ser instituída uma nova proposta de desenvolvimento para envolver os povos da floresta de forma sustentável.

“As contradições são construídas pela presença de uma estrutura desenvolvimentista que nega a existência dos povos da floresta. E isso serviu pra criar fissuras sociais que resultam em contradições e hoje acabam retroalimentando toda essa dinâmica de violência e de ilegalidade”, diz Couto.

O pesquisador, que é quilombola do Pará e referência nacional em estudos sobre facções na Amazônia, destacou também que no governo de Jair Bolsonaro (PL) houve constantemente negação sobre o tema da segurança pública, o que acabou impactando na ação de garimpo e na exploração de madeira ilegal.

“Ele incentivava a atividade predatória na região. Esse fato político contribuiu para que as forças de segurança pública se negassem a apontar a presença de facção em terras indígenas e áreas de garimpo, etc. A demora em admitir essa presença é resultado sobretudo de um contexto político que atendia os interesses do setor”, afirmou.

Territórios em disputa

Na feira da Panair, em Manaus, pichação com menção à facção criminosa Comando Vermelho (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real).

Conforme os especialistas e autores do estudo, as facções criminosas se instalaram na região para estabelecer o controle dos fluxos e das relações de poder que garantam o escoamento para o território nacional.

O estudo constatou que as chamadas “disputas territoriais” se apresentam com mais intensidade no Acre, Amazonas, Roraima e Amapá. O Comando Vermelho detém o maior controle no Acre, ocupando áreas de facções locais como Bonde do 13 e Irmandade Força Ativa, mas disputando em outros municípios com o PCC.

No Amazonas, a disputa também é intensa e constante. Segundo o estudo, há “uma disputa intensa e coexistência de mais de duas facções ao longo das rotas do narcotráfico, destacando-se os rios Solimões, Içá, Japurá, Envira, Negro e Javari”.

Nas calhas dos rios, “convivem e por vezes se enfrentam” as facções brasileiras Comando Vermelho, Os crias, Primeiro Comando da Capital, Cartel do Norte; as facções peruanas Clã-Chuquizuta, Comando de Las Fronteiras e Los Quispe-Palamino; e facções colombinas, Dissidentes da FARC – Frentes Armando Ríos, Frente Carolina Ramírez e Frente Segunda Marquetalia.

Os pesquisadores também identificaram que ao longo do rio Solimões existe a presença de um grupo local denominado “piratas do Coari” ou “piratas do Solimões”, que atua como sicários das facções e outras vezes cometendo roubo aos carregamentos de drogas de facções inimigas.

Em Manaus, o atual domínio é do CV, mas com FDN, CDN e PCC em menor quantidade. Outros municípios do Amazonas onde a presença de facções é forte são Coari, Tefé e Itacoatiara. “O domínio dos dois primeiros [Coari e Tefé] garante a fluidez na rota ao longo do rio Solimões. Já Itacoatiara, assim como Manaus, é um município que recebe navios que se deslocam para o exterior”, diz o estudo.

Em Roraima, o contexto da violência e fortalecimento das facções aconteceu nos últimos cinco anos, com a chegada do PCC, do CV e da facção venezuelana Trem do Aragua, que disputam o controle territorial no estado. A força destas organizações criminosas se expandiu até zonas de garimpo dos territórios indígenas Yanomami e Raposa Serra do Sol, conforme o estudo. No primeiro momento, estas áreas eram consideradas “refúgios de sentenciados do sistema prisional”, diz o estudo.

Posteriormente, os criminosos viram a possibilidade de “acumulação de dinheiro com o controle da extração e comercialização do ouro e passaram a invadir e controlar os garimpos do estado”.

“Soma-se a esse cenário a intensa migração de venezuelanos que estão sendo aliciados pelas facções PCC e Trem do Aragua, onde as cidades de Boa vista e Pacaraima apresentaram aumento considerável do quantitativo populacional e também da violência. Além de Trem do Aragua, há indícios de novas facções venezuelanas presentes em Boa Vista, como Trem de Guayana e Sindicato, que atualmente estão disputando o controle de bairros da capital Boa Vista”, diz o documento.

No Pará, a dinâmica do crime organizado envolve cinco facções: CV, PCC, CCA, FTA e o Bonde dos 157, que é um grupo dissidente do CV. “O estado se caracteriza por ser importante corredor logístico para o escoamento de drogas, sobretudo pela presença de portos, aeroportos e rodovias que conectam a região amazônica ao restante do Brasil e ao mundo”, diz o estudo.

Na avaliação dos autores do documento, o processo de expansão e consolidação das facções criminosas na Amazônia Legal está diretamente vinculado às dinâmicas de funcionamento do sistema prisional.

“No Brasil, já está consolidada na literatura especializada a relação intrínseca entre as prisões e a criminalidade organizada. Sabe-se, portanto, que o Estado possui uma participação que não pode ser desprezada na estruturação desses grupos, sobretudo na medida em que as prisões foram os primeiros espaços de negociações que levaram à organização dos presos em grupos”, diz trecho do documento.

O documento “Cartografias de Segurança Pública” tem 175 páginas e traz também dados sobre ocorrências criminais, casos de mortes violenta, violência contra povos indígenas, análise sobre as dinâmicas criminais e as rotas de escoamento de drogas e outros ilícitos, apreensões de drogas e armas, crimes ambientais e narcogarimpo, violência contra a mulher, entre outros.

Narcogarimpo

Garimpo conhecido como Tatuzão e com dezenas de barracões na região do rio Uraricoera na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

De acordo com o estudo, o termo “narcogarimpo” foi adotado pela Polícia Federal, durante a operação Narcos Gold em 2021, mas os especialistas destacam no estudo que conexão entre narcotráfico e garimpo não é um fenômeno novo. Ele foi registrado em 1990, em um relatório do Serviço Nacional de Informação (SNI), que indicou que as frentes de garimpagem na Terra Indígena Yanomami poderiam estar sendo utilizadas pelo narcotráfico: “Admite-se a possibilidade de o ouro ali produzido servir para lavar rendimentos do narcotráfico, dadas as facilidades para cruzar a fronteira”.

Mas foi na última década, com a chegada de facções como CV e PCC, originários do Rio de Janeiro e de São Paulo, respectivamente, que surgiu um novo cenário.

“O narcotráfico já faz uso da bacia amazônica como um espaço privilegiado para produção, consumo e distribuição de substâncias ilícitas. Nesse processo, uma primeira fase de aproximação é o próprio monopólio da venda dos entorpecentes para os garimpeiros utilizarem, também como forma de aguentar as extensas jornadas de trabalho”, diz o estudo.

A outra relação ocorre a partir do “compartilhamento de estruturas construídas nas diversas frentes de exploração garimpeiras na Amazônia, tais como pistas de pouso e pontos logísticos, utilizadas para transporte de grandes quantidades de drogas”. Conforme os especialistas, são estruturas que vêm se tornando nexos entre essas redes criminosas. “Um exemplo clássico são aviões utilizados pelas facções criminosas para transporte das substâncias que param para reabastecimento em pontos de apoio do garimpo (pistas clandestinas)”.

Outro motivo para o interesse do narcotráfico pelo garimpo é a rentabilidade, uma vez que o ouro é a “moeda oficial” das transações garimpeiras. “A frágil cadeia de controle do ouro permite utilizar o minério para lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas, além da possibilidade de aplicar recursos ilícitos nas atividades de garimpo, diversificando os investimentos”, afirmam os especialistas.

“Nesses locais, oferecem segurança armada aos garimpeiros e, assim, começam a estabelecer novas frentes de atuação. Pouco a pouco, foram aprofundando a presença nos garimpos, inclusive com notícias de que estariam atuando também na atividade fim, ou seja, na própria extração do minério”, afirmam.

Nestas áreas, dizem os especialistas, onde é comum a desassistência, a precariedade e avanço da criminalidade nas regiões de garimpo da Amazônia Legal, as violências das mais diversas formas se aprofundam ainda mais na medida em que o Estado está muito pouco presente.

“A sensação geral para a população que habita nos garimpos ou nas regiões próximas é de que o Estado, quando chega, ‘fiscaliza e vai embora’. Não há uma ocupação efetiva por parte das forças de segurança ou por meio da implementação de políticas públicas perenes, o que deixa o caminho aberto para a entrada e expansão de atores do crime organizado que até pouco tempo possuíam atuação restrita aos grandes centros urbanos do país”, diz o documento.

“Cartografias da Violência na Amazônia” foi coordenado também por Renato Sergio de Lima e Samira Bueno, presidente do Fórum Nacional de Segurança Pública (FBSP). Teve participação das equipes do Instituto Mãe Crioula, do FBSP e da Universidade Federal de Roraima (UFRR).

Segundo Aiala Colares Couto, as equipes envolvidas cruzaram dados primários e secundários e montaram uma matriz cruzada na qual cada município da região foi classificado como tendo ou não a presença significativa de ao menos uma facção e, no caso da presença de mais do que uma delas, se havia indícios de disputas e conflitos em outubro de 2023, data de referência fixada.

Para os autores, é possível supor que as conclusões obtidas são uma primeira estimativa e podem estar subestimadas, o que reforça a importância dessa agenda de pesquisa para a região, na medida em que o nível de comprometimento dos municípios ante o crime organizado já é bastante alto pelos nossos dados.

O pesquisador Aiala Colares Couto (Reprodução Instagram).


 Elaíze Farias – Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, violências socioambientais e impactos de grandes obras na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

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