Violência política contra parlamentares mulheres, por Flávio de Leão Bastos Pereira

Mulher que ousa desafiar a estrutura patriarcal e machista, passa a sofrer ofensas, assédios, violências de natureza misógina, dentre outras

Violência política contra parlamentares mulheres: disfunção e déficit de legitimidade na Câmara dos Deputados e seu Conselho de Ética

por Flávio de Leão Bastos Pereira

            É amplamente conhecida a hiperendemia de violência de gênero que assola o país com altos índices e de modo constante (por tais razões, uma hiperendemia). A violência contra as mulheres se projeta sob distintas e variadas formas, buscando mantê-las restritas a específicas e hierarquizadas posições sociais, econômicas e políticas.

            Para além de direitos fundamentais à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, dentre outros, também os direitos políticos das mulheres são, já de há muito tempo, alvo de ações voltadas a impor à sociedade e às vítimas mulheres a ideia de que algumas carreiras, incluída a política-partidária, somente devem ser exercidas, por homens.

            Neste sentido, a mulher que ousa desafiar referida estrutura patriarcal e machista, passa a sofrer ofensas, assédios, violências de natureza misógina, dentre outras, inclusive no âmbito de instituições e dos Poderes da República, sob a omissão e ineficácia de seus mecanismos internos de controle.

            Assim, afirma Araújo que na política, onde as mulheres se expõem ao debate público e confrontam de forma mais direta os estereótipos de gênero impostos pelo histórico do cisheteropatriarcado, a violência de gênero pode se manifestar com maior intensidade, visto que as poucas que “ousam” desafiar as barreiras eletivas se tornam alvos preferenciais de ataques misóginos que podem partir tanto de eleitores desconhecidos, como de adversários políticos, e até mesmo de colegas de partido e do parlamento, no caso das eleitas. (ARAÚJO, Gabriela Shizue Soares de Araujo. Mulheres na Política Brasileira: Desafios Rumo à Democracia Paritária Participativa. Belo Horizonte, Arraes Editora, 2022, p.186).

            O recente episódio exposto a todo o país pelo qual as deputadas federais Célia Xakriabá (Psol-MG), Sâmia Bomfim (Psol-SP), Talíria Petrone (Psol-RJ), Erika Kokay (PT-DF), Fernanda Melchionna (Psol-RS) e Juliana Cardoso (PT-SP) tornaram-se alvo de processos disciplinares após requerimento protocolado pelo Partido Liberal (PL) perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, sob a alegação de que teriam infringido o decoro parlamentar ao protestarem contra a aprovação, em regime de urgência, do então Projeto de Lei n° 490/2017, bem demonstra o quadro acima descrito, em mais um exemplo que não permite outra interpretação senão a de que o Conselho de Ética daquela Casa Legislativa, atua seletivamente.

            O mencionado PL 490/2007 (hoje PL 2903/23, no Senado Federal), busca impor, por via legislativa, a proposição do famigerado marco temporal, que restringe o reconhecimento das terras tradicionais indígenas apenas aos povos que comprovem a sua posse ou a litigância em juízo, em 5 de outubro de 1988, contrariando frontalmente a Constituição Federal de 1988 e com consequências efetivamente genocidas para os povos indígenas do Brasil, uma vez que a supressão de suas terras ancestrais fará desaparecer suas culturas e demais referenciais existenciais, como os econômicos, religiosos, linguísticos, seus modos de vida, usos e costumes.

            Assim é, que, as mencionadas Deputadas Federais, indígenas e não-indígenas, eleitas mediante árduos e desiguais testes nas urnas em 2022 (uma vez que as mulheres, na prática, não usufruem das mesmas condições para desenvolverem suas campanhas eleitorais que privilegiam os candidatos homens brancos), no calor da discussão sobre o citado PL n° 490/07 passaram a gritar para os deputados favoráveis ao referido PL, assassinos do nosso povo indígena.

Segundo, ainda, o PL, as deputadas teriam usado as redes sociais para manchar a honra de diversos deputados. (Fonte: Agência Câmara de Notícias).

            Chama a atenção para o caso acima a rapidez e seletividade com que os aludidos processos disciplinares tiveram curso, com sorteio de relatores, enquanto diversos outros pedidos de instauração de processos disciplinares em face de Deputados homens, ainda aguardam trâmite. Aliás, Deputados homens que também proferiram as mesmas declarações sequer foram objeto de pedido de instauração de processo disciplinar, perante o aludido Comitê de Ética e Disciplina.

            Análise do histórico mais recente do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, parece demonstrar que a rapidez com que se imprime o curso dos processos éticos parece ser diferente quando os supostos parlamentares ofensores são mulheres, ou homens. Via de regra, a violência política de gênero é ignorada pelo Conselho de Ética da Câmara

            Assim, podemos mencionar alguns casos, conforme estudo publicado e de autoria de Tassia Rabelo de Pinho (Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/3L8QwtCMJYN7xktYqSQsbXJ/?lang=pt).

  1. Representação n° 36/2014, motivada por ofensa de cunho misógina do então Deputado Jair Bolsonaro contra a Deputada Maria do Rosário, ao afirmar que a mesma só não seria por ele estuprada por achar, o deputado ofensor, ser ela “feia”. Logo, uma violência voltada à condição de mulher, da deputada vitimada. Apesar da repercussão do caso e de sua gravidade, o pedido de instauração de processo disciplinar apresentado ao Conselho de Ética foi arquivado por conta do fim da legislatura. O mérito jamais foi apreciado. No âmbito do Poder Judiciário, o deputado foi condenado a ressarcir a deputada.
  2. Representação nº 02/2015, impetrada em face do Deputado Alberto Fraga, que teria proferido as seguintes declarações:
    1. […] mulher que bate como homem tem que apanhar como homem também;
    1. […] mulher que participa da política e bate como homem tem que apanhar como homem também;
    1. […] Aqueles que são mais valentes me procurem logo após aqui – frase proferida após a Deputada Federal Jandira Feghali ter criticado o deputado citado em razão das afirmações anteriores, o que foi considerada uma ameaça.

Por entender que os termos empregados pelo Deputado Fraga foram utilizados no sentido “figurado”, o relator opinou pelo arquivamento do caso, o que posteriormente foi feito.

  • Representação nº 03/2015 apresentada em face do Deputado Roberto Freire em razão de, alegadamente, ter agredido a deputada Jandira Feghali ao agarrar seu braço, tendo-o forçado em direção ao chão, em ato considerado violento e que a teria lesionado no pulso. Ao propor o arquivamento, o que foi feito por unanimidade, a Deputada em tela foi qualificada com destemperada e em busca de atenção da mídia. Foi registrado, ainda, que tal situação não poderia manchar a honra do Deputado Roberto Freire.
  • Representação nº 10/2016, em face do Deputado Laerte Bessa, por ter ofendido a então Presidenta Dilma Roussef de modo machista e misógino, ao se referir a ela como “vagabunda”. Conforme informa Pinho, em sua fundamentação o relator afirmou que o fato não era atentatório ao decoro parlamentar, dado que, para ele, ofensas e xingamentos representam elementos do debate político. Além disso, entendeu o relator que o sentido conferido ao seu pronunciamento foi o de demonstrar a sua indignação com a gestão da coisa pública.

Ora, o termo “vagabunda”, quando utilizado em relação a mulheres, possui significado próprio e que tangencia a condição feminina, ao contrário de quando utilizado em relação a homens (Pinho).

Novamente, a representação foi arquivada.

  • Representação n° 26/2018, proposta em face do Deputado Alberto Fraga, ao postar em rede social que a Vereadora Marielle Franco, assassinada em 18.3.2018, fora casada com traficantes; que seria usuária de drogas e que apoiava certa facção criminosa. Não demonstrou arrependimento, mesmo após comprovado que tais informações eram falsas (Fake News). A medida foi também arquivada.

            Os exemplos acima, apresentados por Pinho propõem uma questão importante: por qual razão os procedimentos disciplinares, via de regra, são arquivados quando se cuida de ofensas e violações de direitos titularizados pelas parlamentares e, de outro lado, são preferencialmente instaurados com maior rapidez quando se trata de supostas ofensas promovidas por deputadas durante o calor de debates relacionados às suas atividades como congressistas eleitas ?

            O fato é que as mulheres e candidatas trans eleitas para exercer mandatos junto aos Poderes Legislativos, em quaisquer das esferas federativas, inclusive no contexto da Câmara dos Deputados, são constantemente ofendidas em suas condições de gênero. Instrumentos como os Conselhos de Ética são estruturados sob parâmetros machistas e patriarcais e, apesar de terem por função a fiscalização e a preservação do decoro parlamentar, tal como previsto pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, especialmente em seus artigos 4º e 5º, vem sendo utilizado como veículo para desencorajar e afastar da atuação política as mulheres que ousam desafiar os papéis sociais e políticos para elas impostos.

            A violência política de gênero define as condutas exercidas com a finalidade de humilhar, constranger, ameaçar ou prejudicar uma candidata ou mandatária em razão de sua condição feminina. As estruturas patriarcal e conservadora que predominam nas instituições e Casas Legislativas do país consolidam ambientes hostis em relação às mulheres eleitas e constituem parte das causas que impedem a presença de mulheres eleitas em quantidade correspondente à sua proporção na população brasileira (52%).

            Não sem razão, a Lei n° 14.192/2021 criminalizou a violência política de gênero como toda ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir os direitos políticos da mulher, bem como os atos de violência política contra a mulher que imponham qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo.

            Além dos termos acima, referida lei também acrescentou o inciso X ao artigo 243 do Código Eleitoral (Lei n° 4.737/65) e que estabelece como diretriz a não-tolerância quanto à propaganda eleitoral que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia.

            Referidas medidas normativas são essenciais para o combate à violência política de gênero, assim como para que mais mulheres disputem eleições e ocupem os cargos eletivos, direito fundamental assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pelo regime democrático, sob pena de prosseguirmos ocupando o vergonhoso lugar de país com baixo numero de mulheres nos cargos políticos e de liderança e, assim, com um regime democrático de baixa densidade e com evidente déficit de legitimidade, uma vez que seu Parlamento não reflete certas parcelas de sua população, em evidente disfuncionalidade.

            Segundo informa o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), após as eleições de 2022 pôde-se constatar o crescimento de 18% na bancada feminina na Câmara dos Deputados, com 91 deputadas eleitas (em 2018, eram 77 deputadas eleitas). Tal cifra significa que somente 17,7% dos parlamentares eleitos, são mulheres. A situação não é muito diferente no Senado Federal, com apenas 12,3% de cadeiras ocupadas por mulheres. (CNJ. Violência política de gênero: Brasil registra sete casos a cada 30 dias. Disponível em https://www.cnj.jus.br/violencia-politica-de-genero-brasil-registra-sete-casos-a-cada-30-dias/).

            As estatísticas são igualmente desfavoráveis em relação à composição do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, uma vez que reflete a histórica desigualdade de gênero desta Casa Legislativa.

Neste sentido, informa Tássia Rabelo de Pinho que entre a 51ª (2001/2003) e a 55ª (2015/2019) legislatura…267 parlamentares diferentes ocuparam cadeiras do Conselho de Ética da Câmara, dentre os quais 151 na condição de suplentes e 118 na de titulares. Ao longo de um período que compreende quase duas décadas, 12 suplentes eram mulheres e, dentre os titulares, apenas 9 não eram do sexo masculino. (Debaixo do Tapete: A Violência Política de Gênero e o Silêncio do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados. Disponível em https://www.scielo.br/j/ref/a/3L8QwtCMJYN7xktYqSQsbXJ/?lang=pt).

            Sem mulheres eleitas e que ocupem, de forma paritária, posições no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, disfunções e a utilização misógina e ideológica desta estrutura interna, continuarão a ocorrer.

            Tendo em consideração o caso das seis deputadas federais acima mencionadas, entendemos que qualquer utilização de termos ásperos que possam ser considerados ofensivos em situações cotidianas, no contexto das discussões que se sucedem nos debates em Plenário, são próprios de um sério debate e que envolveu a aprovação de um PL que, caso venha a ser tornar lei, provocará consequências efetivamente genocidas, uma vez que provocará a extinção de grande parcela das culturas indígenas.

            Como ensinou Raphael Lemkin, o criador do termo genocídio, referido crime não é cometido apenas pelo extermínio físico do grupo-alvo, mas também por meio da adoção de medidas variadas e fruto de planos sistematizados, como a eliminação econômica e cultural, dentre outras.

            Logo, um contexto pelo qual termos mais agressivos são lançados de forma genérica (não direcionados de modo individualizado e concreto aptos a configurar calúnia, injúria, difamação ou discurso de ódio), constituem exercício assegurado a qualquer parlamentar e sob os referenciais da imunidade parlamentar.

            Necessário é que sejam debatidas de forma sensata medidas que permitam o combate à violência política de gênero nos parlamentos brasileiros, especialmente no Congresso Nacional, com ampliação do número de mulheres eleitas, ocupando cadeiras, bem como a correta reflexão sobre o uso disfuncional da Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, que deve também contar com mais mulheres deputadas analisando, avaliando e relatando os casos que lhe são submetidos.

            A diferença de tratamento, como por exemplo em relação à celeridade com a qual os procedimentos éticos em face de deputadas são processados, quando comparados com denúncias de violação do dever de decoro parlamentar supostamente cometidos por deputados, depõe contra o próprio Poder Legislativo e fragiliza o regime democrático.

            No caso concreto, resta patente a utilização indevida de instrumentos institucionais para intimidação das deputadas imputadas por motivações político-ideológicos; de gênero e étnico-raciais, constatação de violação do sistema jurídico brasileiro e do regime democrático.

            Importante salientar que o Brasil, quanto à representatividade política por mulheres, pode ser considerado um exemplo de atraso. O sistema jurídico-normativo, assim como as políticas públicas, embora aparentemente neutros, constituem fatores de manutenção das desigualdades estruturais, institucionais e intersubjetivas de gênero.

            Não sem razão o dever do Estado em garantir a plena e efetiva participação das mulheres, assim como a igualdade de oportunidades para o exercício da liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública, compõe o conjunto de medidas para que se alcance a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas, Objetivo n° 5 da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, aprovados por unanimidade pelos Estados-membros da ONU, portanto, também pelo Estado brasileiro, que deve cumprir seus compromissos.


Flávio de Leão Bastos Pereira – Pós-doutorado em Direitos Humanos (Mediterranean International Centre For Human Rights Research – Reggio Calabria University, Italia). Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Professor de Direito Constitucional e Eleitoral na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor visitante na Universidade Tecnológica de Nuremberg Georg Simon Ohm e no programa de Mestrado da Universidade de Ciências Aplicadas da Áustria, Campus Linz. Autor da obra “Genocídio Indígena no Brasil: Desenvolvimentismo Entre 1964 e 1985” (Juruá, 2018). Coordenador dos Núcleos da Memória e dos Direitos Indígenas e Quilombolas da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP.

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Redação

1 Comentário

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  1. O problema das parlamentares, e de muitas mulheres, é ser educada, fina e sensível. Uma mulher bocuda, que fala coisas indecentes a um homem e ferem a sua suscetibilidade, conseguem se impor nos seus ambientes e deixam de ser incomodadas. Não há coisa mais humilhante para um homem que ser derrotado verbalmente por uma mulher. Falta-lhes treino, tão somente para sobreviver nesses ambientes machistas e sórdidos. Maria da Conceição Tavares, presente! Dercy Gonçalves , presente!

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