Como a sociedade chilena está se reorganizando independentemente

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Os chamados "cabildos abertos" se intensificam para a organização social e o início dos debates para uma nova Constituição no país, enquanto o presidente não reage

Foto: Patricia Faermann

De Santiago, Chile

Jornal GGN – A falta de representatividade do governo e da Constituição que regem o Chile frente à população, resistente nas ruas há 19 dias consecutivos e sem demonstrações de que pretendem parar, provocou na sociedade chilena uma série de mecanismos de auto-regulação e organização próprias.

Ao mesmo tempo que pressionam por uma nova Constituição e a validade de uma Assembleia Constituinte nas manifestações diárias, bairros, vizinhanças, organizações, clubes, universidades e movimentos sociais organizam os chamados “Cabildos”, um tipo de Assembleia Popular no qual os cidadãos são os protagonistas das decisões que querem para o país.

Estima-se que mais de 10 mil chilenos já participaram de algum dos milhares de cabildos e Assembleias auto-convocadas, organizados em todo o país nos últimos dias. Entre as demandas, além da mudança da Constituição, que é a mesma vigente desde a ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), temas específicos como a reforma da aposentadoria, a nacionalização dos recursos naturais, o aumento do salário mínimo e a melhora na habitação, saúde e educação estão presentes nas pequenas rodas que se formam em parques e espaços públicos.

Foto: Patricia Faermann/GGN

O movimento Unidade Social, que integra diversas organizações e movimentos sociais, como a NO+AFP, que luta pela mudança no atual sistema capitalizado de pensões no país, a Central Única de Trabalhadores (CUT) e o Colégio de Professores, entre outros, acompanha parte destas assembleias e divulgou um balanço, na última sexta-feira (01), sobre as atas de discussão reunidas pelo movimento.

Na história do país, os cabildos eram instâncias de organização social lideradas pelas elites, aonde os colonizadores expressavam e tomavam decisões sobre as comunidades. O principal deles que adotou maior adesão e impacto histórico, em setembro de 1810, foi o que determinou a própria independência do país, em 1818.

Diante de também uma falta de regulação dos “cabildos”, estas assembleias auto-convocadas vêm adotando algumas regras, com o objetivo de regular e se fazer legítima frente às próprias instituições de governo. Os participantes, por exemplo, entregam dados como o nome completo e o número de identidade, e os resultados destes debates são sistematizados em atas.

Nestes encontros pequenos, entre 6 e 10 pessoas, mediados por um moderador, segue-se um cronograma com perguntas-chave que devem ser debatidas pelos participantes. São alguns dos temas tratados: qual é a origem da atual crise social? Quais oportunidades se esperam com esta mobilização nacional? Como é possível avançar a uma maior justiça social? Quais são as demandas prioritárias para a cidadania? É necessário uma assembleia constituinte?

As organizações promovidas pelos próprios chilenos, que hoje se mostram empoderados e decididos sobre a sua participação e capacidade de decisão nas políticas do país, também já geraram um mapa realizado pela sociedade civil, que recopila todos os cabildos e assembleias que vão sendo realizados. O objetivo, segundo os organizadores “Geo Constituinte” é mapear “para que nossos colegas e próximos possam participar dos diferentes cabildos realizados”.

Até agora, os resultados deram conta que as demandas prioritárias discutidas nestes encontros são: Assembleia Constituinte, novo sistema de pensões, a proteção ao meio ambiente, o fim das zonas de sacrifício (regiões com alta concentração de indústrias contaminantes), a nacionalização de recursos naturais, o aumento do salário mínimo, educação pública, gratuita e de qualidade, sistema único de saúde sem privatizações, acesso e melhoria da habitação, maior imposto a grandes fortunas, igualdade de gênero em políticas públicas, e uma democracia participativa e vinculante.

Neste último ponto a categoria “vinculante” significa, na prática, que as decisões da população não somente sejam escutadas pelo governo federal e Congresso chileno, como também tenham papel determinante. Entra neste ponto a própria Assembleia Constituinte, que hoje no Chile enfrenta um vácuo legislativo, uma vez que não se considera na própria Constituição do país e, portanto, não é vinculante.

“A Constituição atual não contempla nenhum mecanismo de Assembleia Constituinte e, portanto, deve-se enviar uma lei ao Congresso, que decida como se votará [o processo constituinte] e fazer essa mudança”, explicou um informe produzido pela cooperativa de conhecimento Sur Global. “Na América Latina, quase a metade das 28 mudanças constitucionais a partir de 1947 foram feitas por meio de uma Assembleia Constituinte, o que significa 46%”, acrescentou.

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Neste sentido, existem dois projetos de reforma da Constituição que permitem a criação de uma nova por meio de Assembleia. Nos dois, apresenta-se a proposta de modificar o capítulo XV da atual Carta chilena, de 1980, que não contempla o mecanismo. Ainda está em discussão o fato de que seja necessário reformular os projetos de lei, acrescentando a possibilidade de tornar a Assembleia Constituinte um mecanismo vinculante, ou seja, que uma vez realizada obrigue o governo a implementá-la.

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Para o constitucionalista e professor de Direito da Universidade do Chile, José Francisco García, pode-se chegar a um processo constituinte por “vários caminhos”, e que todos eles estão “hoje sobre a mesa”. Um dos problemas é determinar a quem compete levar adiante este processo, uma vez que hoje a sociedade não se vê representada pelo atual governo e pelo Congresso, considerado “elitista”, que levanta o questionamento sobre “quem está sendo representado: cidadãos ou grupos de interesse, representações gremiais ou forças vivas”, disse, em entrevista à CNN Chile.

Com a falta de reações do governo, outra das demandas da população nas ruas é a queda do presidente do país, Sebastián Piñera. Em entrevista recente concedida à BBC News, Piñera afirmou que não irá renunciar e tampouco irá aceitar uma acusação constitucional, do qual hoje vem sendo acusado por crimes contra a humanidade na autorização do uso da força policial repressiva nas manifestações que já geraram mais de 20 mortos no país, desde o último 18 de outubro.

“É claro que eu vou chegar ao fim do meu governo. Fui eleito democraticamente por uma enorme maioria dos chilenos e tenho o dever e compromisso com eles que me elegeram e com todos os chilenos”, afirmou. Apesar de ter vencido com 54,4% em segundo turno, os manifestantes e movimentos sociais que pedem a renúncia do mandatário ressaltam que as eleições 2017 contaram com baixa participação (menos de 50% votaram) e, portanto, sua vitória não representou efetivamente a escolha da maioria.

Ao ser questionado sobre uma Assembleia para definir nova Constituição, Piñera respondeu que a legitimidade é do Congresso para tal mudança e não da população em si e negou que na legislação chilena não haja “instâncias” para discutir as reformas constitucionais.

“É preciso partir colocando-nos de acordo sobre o que queremos, que mudanças queremos introduzir na Constituição. Porque há alguns que, no fundo, não se importam com nada, o único que querem é o método. E eu digo que em uma democracia como a chilena há uma instância para discutir as reformas constitucionais e essa instância é o Congresso. O Congresso poderá decidir que caminho seguir”, respondeu.

Posteriormente, disse que existe a possibilidade de se discutir uma reforma à Constituição, mas somente após implementar a sua Agenda Social, proposta já rechaçada pela população à crise social atual, e “após restaurar a ordem pública”.


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Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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