O problema de la grieta e a ascensão do sujeito autoritário, por Camila Koenigstein

Um dos maiores equívocos que a esquerda ou a oposição fazem com frequência é explicar determinados fenômenos de maneira minimalista

Reprodução Twitter @JMILEI

O problema de la grieta e a ascensão do sujeito autoritário

por Camila Koenigstein

Sem dúvida a sociedade argentina está passando por um dos episódios mais marcantes da sua história recente. O país, reconhecido como o mais progressista região devido à sua forte tradição no que tange aos direitos humanos, se encontra atualmente em uma situação similar à de outros países que tiveram em algum momento  candidatos ou governantes vinculados ao que denominados extrema direita.  

Com um discurso inflamado, polêmico e muitas vezes violento, o candidato Javier Milei (Libertad Avanza) vem ganhando espaço na esfera pública, mostrando que nenhuma sociedade está imune aos efeitos da polarização, do desamparo social e do grande pai.

O problema da grieta e a ascensão de Milei 

Está claro que a crítica vazia a indivíduos como Milei não leva a lugar nenhum. Os inúmeros adjetivos pejorativos utilizados para definir o candidato mostram certa precariedade em expor as causas que possibilitaram sua ascensão.

Um dos maiores equívocos que a esquerda ou a oposição fazem com frequência é explicar determinados fenômenos de maneira minimalista, atribuindo a culpa à ignorância popular. Essa visão limitada sobre o funcionamento social não auxilia nos estudos e na compreensão da vertiginosa expansão da extrema direita em diversas partes do mundo.

Precisamos entender qual o papel que corresponde aos governos anteriores, principalmente os governos ditos de esquerda, para que a população busque alternativas radicais. 

Os problemas são velhos, tão velhos quanto as saídas rápidas e oportunistas que surgem, mas que ainda encontram espaço na sociedade. 

Nos últimos cinquenta anos a Argentina vem enfrentando uma espécie de alternância de poder entre governos neoliberais e outros com um apelo mais voltado à esquerda, que se faz presente por meio do peronismo.

A alternância, que deveria ser positiva dentro de sistemas democráticos, se mostra ineficiente quando os projetos políticos são extremamente diferentes. 

A falta de planos políticos coesos que visem ao bem-estar social gera uma espécie de “balança” que sempre pende mais para um lado que para o outro, provocando desequilíbrio e mudanças bruscas no corpo social. A cada novo governo, há um eterno recomeço que não produz avanços concretos. Essa questão cria problemas intensos quando o bem-estar da maioria da população está em jogo. 

Nos últimos anos, a polarização entre o kirchnerismo e o macrismo acirrou ainda mais tais diferenças, não somente sobre o manuseio dos aspectos econômicos da sociedade, mas também sobre as famosas “pautas de costumes”, que trouxeram uma nova tônica à cena política.

O kirchnerismo, filho do peronismo mais vinculado à esquerda, angariou apoio dos setores mais empobrecidos da sociedade através de políticas públicas mais inclusivas, o que de certa forma sempre gerou algo de ressentimento nos setores mais abastados que, por sua vez, sempre atrelam seu bem-estar ao famoso mérito próprio. Por outro lado, Mauricio Macri incorporou o típico liberal conservador que representava essa camada da sociedade que rechaça com bastante facilidade os princípios democráticos ou entende democracia como desejo individual, sendo o liberalismo econômico sua máxima expressão.

Sem dúvida, essa divisão acentuada de interesses, que sempre esteve presente, mas que ganhou novos contornos, gerou um abismo (la grieta) onde os anseios de grupos sociais díspares foram intensificados. A hostilidade e o ódio intenso contra aquele que pensa diferente ou pertence ao meu grupo opositor foram completamente naturalizados. Diante de tal cenário não há possibilidade de mudanças ou reformas sociais, pois sempre haverá o obstáculo: o outro.

A década de la grieta é a verdadeira década perdida: a economia argentina cresceu pouco nesse período, não conseguiu criar empregos privados de qualidade nem romper o piso de pobreza de 25%. Como sustentam os ensaístas Martín Rodríguez e Pablo Touzon em seu livro, La grieta desnuda, a polarização é uma aposta para preservar o governo em troca da paralisação da gestão: implica, em suma, manter o poder renunciando à vontade de mudança e desbloquear a situação. Além da adesão apaixonada de um setor minoritário, ambos suscitam uma forte rejeição do restante da sociedade.
José Natanson

Tal fenômeno foi sentido intensamente no Brasil, onde o desgaste político causado pela esquerda e sua impossibilidade de mostrar saídas dentro de um cenário de crise que começou em 2013 possibilitou anos depois o surgimento do bolsonarismo.

Já o segundo fator capaz de explicar a ascensão da extrema direita encontra-se na própria esquerda. Um elemento decisivo para esse basteamento conservador de 2013 foi o colapso da esquerda nacional. Era difícil à esquerda no poder entender como o povo poderia estar naquele momento nas ruas contra o governo do próprio povo. A única resposta possível era: não se tratava do povo real.
Vladimir Safatle

A incapacidade dos governos populares em manter a governabilidade expõe parte do problema. Ao não se reinventarem, abrem as portas para o oportunismo e sujeitos que põem a democracia em risco.

Isso foi sentido intensamente após o golpe que retirou Dilma Rousseff do poder, mostrando que na América Latina a democracia é entendida como o reino do indivíduo e seus anseios sobre o bem-estar geral. Nesse contexto os interesses de classe se intensificaram, a pauta de costumes ocupou um espaço inimaginável e valores que antes pertenciam à esfera individual ganharam a cena pública, com novos atores (religiosos e influencers) que expõem com cada vez mais frequência a força que exercem dentro do corpo social. 

 Dentro desse cenário de crise, divisão social profunda, insatisfação total e descrença popular nos seus representantes, surge Javier Milei como candidato à presidência, assim como surgiu Bolsonaro. De “louco”, virou o defensor da liberdade individual na sua mais alta expressão, um libertário, anarcocapitalista, como gosta de se definir, um messias que promete pôr fim à corrupção.  

É um dilema familiar do ultraliberalismo: entre uma democracia “socialista” e uma ditadura liberal, a última seria melhor. Por isso, no passado, vários “liberais” apoiaram a ditadura de Augusto Pinochet no Chile. Mas no caso de Milei não se trata apenas de cinismo ou padrões duplos. Nas suas propostas existe uma tensão entre o seu “anarquismo” e o seu “direitismo” e uma rejeição mais ou menos explícita da democracia, associada aos odiados políticos da “casta”.
Pablo Stefanonii

Embora transite no âmbito político há tempos, Milei não mede esforços em diminuir a classe a que pertence, sendo reconhecido pelo rechaço ao que ele denomina de “casta política”, algo bastante contraditório, considerando-se que deseja exercer o cargo de maior importante no âmbito político: a presidência.

A três meses das eleições, o candidato desponta nas pesquisas. Com um forte apoio popular, fruto de uma crise profunda no âmbito político/social, Milei cresceu de maneira surpreendente. .

Com propostas tresloucadas sobre temas que geralmente causam comoção social, como inflação, aborto, dolarização, impostos, venda de órgãos e privatização da educação, move a cena política, gerando uma espécie de excitação ao redor da sua figura. Bem ou mal, todos falam sobre Javier e seu chamado “plan motosierra” de governo.

Diante da atual situação, que envolve certo abandono por parte de políticos que há décadas estão na vida pública, juntamente com um cenário caótico oriundo de uma inflação que chegou a atingir 104,3% no mês de março, a sociedade mostra através das intenções de voto o total descontentamento com o que até o presente momento compôs a cena política argentina.

O desamparo social que atingiu a sociedade argentina vem de um longo processo de deterioração da política dos partidos e seus representantes. A alternância de poder que ocorreu nos últimos anos mostrou a ineficiência dos principais representantes políticos e suas ideologias.

A gestão de Alberto Fernandez, marcada pela pandemia, conflitos dentro do próprio partido sobre a forma de governabilidade, tensão entre ele e a vice-presidenta, Cristina Kirchner, e uma guerra inesperada, soterrou qualquer possibilidade de restauração da maquinaria política no país via peronismo.

A insatisfação começou a ganhar espaço até mesmo nos grupos menos favorecidos socialmente. Cansada dos velhos discursos e da eterna polarização, a população busca no radicalismo a resposta, principalmente quando a situação de desamparo se torna insustentável. Nesse sentido, não são novidade o surgimento e a possibilidade de uma vitória de Milei. Como sempre, há precedentes históricos que mostram que nada como um grande pai salvador para amenizar, ainda que temporariamente, o mal-estar da sociedade.  

Bibliografia

https://www.nytimes.com/es/2019/04/10/espanol/opinion/roberto-lavagna-y-el-fin-de-la-polarizacion-en-argentina.html
https://outraspalavras.net/outrasmidias/2013-segundo-safatle/

https://www.opendemocracy.net/es/milei-amenaza-libertaria-politica-argentina/

Ranciere, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

Saflate, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

Redação

1 Comentário

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  1. Os “liberal” e suas “bullshits” , empurrar goela abaixo de uma população conservadora pautas progressistas.

    Os eternos escandâlos também ajudam.

    Não me culpe apenas digo o que vejo nas pessoas que conheço.

    Argentina parece um caso a parte o fantasma de Perón permanece, aqui Vargas ainda assombra mas em menor grau.

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