Governo do PT deve revogar o Novo Ensino Médio?, por Paulo Fernandes Silveira

Para que serve a escola? Segundo José Sérgio de Carvalho, a escola é o espaço-tempo da igualdade e da emancipação

Imagem das ocupações secundaristas de 2015, retirada do facebook.

Governo do PT deve revogar o Novo Ensino Médio?

por Paulo Fernandes Silveira

Pesquiso e oriento pesquisas na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) sobre o papel da filosofia no Ensino Médio. As disciplinas de Metodologia do Ensino de Filosofia que ministro no curso de licenciatura exigem 200 horas de estágio numa das escolas da rede pública. Tenho um afilhado que estuda numa escola pública no centro da cidade de São Paulo, próxima à comunidade do Moinho, onde ele reside com sua mãe e seus irmãos, que também estão em idade escolar. Por diferentes razões, portanto, acompanho o desenrolar do Novo Ensino Médio.  

A implementação do Novo Ensino Médio ocorreu após o período de isolamento social provocado pela pandemia. Na comunidade do Moinho, por mais de um ano, crianças e adolescentes deixaram de frequentar as escolas da rede pública, perderam o convívio com outros estudantes, com os professores e professoras e com os funcionários e funcionárias. As condições e a rotina da sua alimentação foram alteradas, assim como suas possibilidades de exercícios físicos e de atividades artísticas e culturais.

As tarefas domésticas, especialmente, das jovens, foram redobradas, uma vez que seus irmãos e irmãs menores não tinham mais creches para ficar e muitas mães continuaram a trabalhar fora, mesmo durante o pior momento da pandemia. As aulas remotas não atraíram o interesse da maior parte dos alunos e alunas. Entre as consequências mais graves do período de isolamento social em comunidades pobres estão: o crescimento da violência doméstica, das gestações e dos suicídios entre adolescentes, além do acentuado aumento da evasão escolar (abandono do ano letivo).

A perseverança dos secundaristas da comunidade do Moinho que continuaram na escola após o isolamento social se justifica, sobretudo, por causa das alternativas de emprego abertas pelo diploma do segundo grau.

Em 2018, o Novo Ensino Médio obteve um financiamento de 250 milhões de dólares do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), instituição do Grupo Banco Mundial (FORNARI; DELTOS, 2021). Um relatório público feito pela Controladoria Geral da União (CGU) explicita os objetivos do Acordo de Empréstimo: “(i) a revisão dos currículos; (ii) a flexibilização curricular nas escolas; (iii) o planejamento e a operação logística da oferta dessa flexibilização; e (iv) a ampliação do tempo para escolas em tempo integral.” (BRASIL, 2019, p. 6).

Uma das principais mudanças do Novo Ensino Médio foi a adoção do tempo integral por uma parte das escolas públicas. Alguns secundaristas da comunidade do Moinho puderam se matricular em escolas com esta jornada, tendo acesso a uma diversidade maior de disciplinas e de refeições. Aqueles que já trabalhavam em meio período procuraram escolas que possuem cursos noturnos com tempo parcial.

Numa reportagem recente sobre o Novo Ensino Médio (VEIGA, 2022), o pesquisador Daniel Cara analisa as diferenças entre uma “educação integral” e a proposta de uma “educação em tempo integral”. Ainda que seja importante, o aumento da carga horária não garante uma formação integral do “cidadão humano”, como aquela pensada pelo educador e escritor Anísio Teixeira.

Num belo ensaio sobre o tema, Vitor Paro (2009) destaca a inutilidade de se investir mais tempo numa educação que se restrinja a transmitir conhecimentos e informações, uma educação que Paulo Freire nomeou de bancária. Em contraponto a essa educação, que em muitos pontos se aproxima do mero treinamento, Paro defende uma educação que compreenda o homem e a mulher como seres históricos, capazes de serem autoras de mudanças na sociedade e em si mesmas. A diversidade dos saberes e das práticas é um dos princípios dessa forma de educação:

“Se vai ser uma escola de tempo integral ou uma instituição maior e mais complexa de tempo integral não sei, mas certamente precisamos pensar num conceito para negar esse que está aí. O que está aí é uma escola na qual se vai, pretensamente, para aprender matemática, física, geografia, etc., mas à qual não se vai para aprender a dançar, a cantar, a brincar, a amar, a discutir política, a conviver com o outro, a ser companheiro, etc. E não me venham com a conversa dos temas transversais porque esses outros elementos são tão centrais quanto os conhecimentos e informações para a emancipação pessoal e para a constituição da cidadania integral.” (PARO, 2009, p. 19).  

Pelos relatos dos meus orientandos e orientandas de mestrado e doutorado que lecionam em escolas públicas, as disciplinas eletivas oferecidas no Novo Ensino Médio vão na direção dessa diversidade. Justamente porque a jornada foi ampliada nas escolas que adotaram o tempo integral, além das disciplinas já estabelecidas, as próprias docentes podem sugerir novas disciplinas. Minha orientanda de mestrado Gabriela Macedo, formada em filosofia, criou as disciplinas: “O que são as ideias”, “O que é política”, “Mulheres do fim do mundo: feminismo para quem?” e “Oficina de teatro”.

As coleções didáticas selecionadas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o Novo Ensino Médio também abrem novas perspectivas. Diferente das edições anteriores do PNLD, as coleções não recobrem os temas e conteúdos de cada disciplina, mas de cada área. A área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, por exemplo, trabalha com temas e os conteúdos de história, geografia, filosofia e sociologia.

O guia com resenhas das coleções selecionadas pelo PNLD de 2021 (BRASIL, 2021) está disponível no site da Universidade Federal do Alagoas (UFAL). Uma das melhores coleções é: Conexões: ciências humanas e sociais aplicadas. A versão digital dos seus seis volumes (COTRIM; SILVA; LOZANO; ALVES; OLIVEIRA: MOSCHKOVICH, 2020) encontra-se no site da editora Moderna.

No início dos capítulos, os autores e autoras indicam as habilidades e competências que serão trabalhadas e sugerem as disciplinas que podem incorporar cada tema e conteúdo. A coleção percorre as grandes questões e os principais debates sociais, econômicos e políticos que marcam o mundo contemporâneo: a brutalidade da colonização; o racismo e a segregação; os movimentos sociais; o feminismo; o multiculturalismo; a demarcação das terras indígenas; a democracia; os direitos humanos; a desigualdade social e a fome; as ações afirmativas; a precarização do trabalho, etc.

Uma empresa privada na região da comunidade do Moinho oferece gratuitamente às crianças e jovens cursos de contraturno: dança; futebol; artes plásticas; oficina de DJ; teatro, etc. A empresa também disponibiliza atendimento psicológico aos adolescentes. A maioria dos jovens participa desses cursos com muito interesse. As aulas eletivas do Novo Ensino Médio parecem ir por um caminho semelhante.

Para as comunidades mais pobres é extremamente positivo o aumento do tempo dedicado à educação. Como é extremamente positivo o aumento do tempo de utilização do espaço da escola. As residências da Moinho não têm espaço para mesas e cadeiras. Não há um lugar adequado para os jovens estudarem. Eles vivem com toda a família num único cômodo, onde cabem os colchões, a geladeira e o fogão.

Para que serve a escola? Segundo José Sérgio de Carvalho, a escola é o espaço-tempo da igualdade e da emancipação:

“Esse tempo-espaço igualitário e peculiar à experiência escolar é o da democratização daquilo que um dia foi o privilégio distintivo da aristocracia agrário-militar grega e que se converteu em um direito comum a todo e qualquer cidadão a partir da emergência da democracia ateniense: o tempo da scholé. Trata-se, pois, de um tempo de formação, ou seja, de um tempo voltado para um aprendizado cuja virtude não é necessariamente capacitar alguém a fazer algo – ter uma profissão, por exemplo – nem determinar seu lugar na partilha desigual das ocupações e privilégios sociais. A forma escola, historicamente vinculada ao ideal da scholé, é o tempo-espaço voltado a propiciar a todos e a cada um a oportunidade de se constituir como um sujeito singular em meio a seus iguais. Porque o tempo da emancipação não é uma promessa para o futuro; é, antes, a possibilidade de se viver o presente em diálogo com os vários mundos e tempos da experiência humana. É o tempo de viver enquanto iguais no mundo da desigualdade.” (CARVALHO, 2020, p. 12).

Esse texto contou com as contribuições preciosas da minha orientanda Gabriela Macedo e da minha ex-aluna Maria Fernanda Degan, assim como dos meus orientandos Josadaque Martins, Cristian Reichert e Reginaldo Franco.

Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e IEA-USP)

REFERÊNCIAS:

BRASIL. 2019. Relatório de auditoria nº 201902306 – Acordos de Empréstimo nº 8812 – BR e nº 8813 – BR – Projeto Reforma do Ensino Médio. Brasília-DF: Controladoria-Geral da União – CGU. Disponível em:

https://eaud.cgu.gov.br/relatorios?apenasAbertas=false&exibirColunaPendencias=false&apenasModificadasNosUltimos30Dias=false&colunaOrdenacao=dataPublicacao&direcaoOrdenacao=DESC&tamanhoPagina=15&offset=0&dataPublicacaoInicio=2019-07-22&tipoServico=2568&palavraChave=Ordem+de+Servi%C3%A7o%3A+201902306&fixos=#lista

BRASIL. 2021. Ciências humanas e sociais aplicadas – guia digital PNLD 2021.  Brasília-DF: Ministério da Educação, Secretária de Educação Básica. Disponível em: https://pnld.nees.ufal.br/pnld_2021_didatico/inicio

CARVALHO, José. 2020. Do mestre ignorante ao iniciador: forma escolar e emancipação intelectual. Educação e Realidade, v. 45, n. 2, p. 1-13. Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/91817

COTRIM, Gilberto; SILVA, Ângela; LOZANO, Ruy; ALVES, Alexandre; OLIVEIRA, Letícia; MOSCHKOVICH, Marília. 2020. Conexões: ciências humanas e sociais aplicadas. 6 volumes. São Paulo: Moderna. Disponível em:  https://pnld.moderna.com.br/ensino-medio/obras-didaticas/area-de-conhecimento/ciencias-humanas-e-sociais/conexoes

FORNARI, Márcia; DEITOS, Roberto. 2021. O Banco Mundial e a reforma do ensino médio no governo Temer: uma análise das orientações e do financiamento externo. Trabalho Necessário, v. 19, p. 188-210. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/47181

PARO, Vitor. 2009. Educação integral em tempo integral: uma concepção de educação para a modernidade. In: COELHO, Lígia. (org.). Educação integral em tempo integral: estudos e experiências em processo. Petrópolis: FAPERJ. pp. 13-20. Disponível em: https://www.vitorparo.com.br/wp-content/uploads/2019/10/Educacao-integral-em-tempo-integral.pdf

VEIGA, Edison. 2022. Novo ensino médio começa sob questionamentos e críticas, Folha de São Paulo, 1 de fevereiro de 2022. Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2022/02/novo-ensino-medio-comeca-sob-questionamentos-e-criticas.shtml?origin=folha

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Redação

2 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador