Junho de 2013, a social democracia e a ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI, por Cesar Calejon

Segundo um estudo publicado em 2013 pela Economist Intelligence Unit, Brasil, Argentina, Armênia, Índia, Espanha, Itália, Turquia, Egito e pelo menos outros vinte países tiveram grandes protestos naquele ano.

Foto Cesar Calejon

Junho de 2013, a social democracia e a ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXI

 por Cesar Calejon

No nosso contexto, em um modelo extremamente maniqueísta (desde a redemocratização do Brasil), no qual existiam basicamente a figura do Lula (PT) e do FHC (PSDB), a imensa maioria da social democracia (e amplas parcelas mais pobres e emergentes da sociedade brasileira) acreditou que desidratar o PT politicamente seria sinônimo de assumir a Presidência. Deu errado

Os protestos no Brasil em 2013, que também ficaram conhecidos como as Jornadas de Junho, formam o maior estudo de caso brasileiro considerando o direcionamento, por parte da mídia nacional e de grupos empresariais, de um ímpeto difuso e avassalador da população para que esta energia, que demandava reformas e expressava uma profunda frustração com as instituições atuais, assumisse um caráter partidário a fim de se tornar o elemento central da principal força política atuante no Brasil cinco anos depois.

Após demonstrações menores e ainda incipientes de mobilização social (em 2011 e 2012) em algumas capitais do Brasil, o ano de 2013 foi bem mais agitado. As manifestações tiveram início em Porto Alegre (RS), ainda no início de janeiro, pouco antes de as empresas de transportes públicos demandarem o aumento de 15,8% no preço da passagem do ônibus. O reajuste de 7%, que efetivamente elevou a tarifa para R$ 3,05, entrou em vigor no dia 25 de março e agravou os protestos no Sul do País.

No dia 4 de abril, a Justiça do Rio Grande do Sul concedeu uma liminar para suspender este aumento, mas as manifestações continuaram ganhando força, assim como vem acontecendo no Chile. Em 15 de maio, grupos de Natal rearticularam o movimento Revolta do Busão, que havia começado em 2012, e, no dia 6 de junho de 2013, as manifestações em São Paulo começaram a assumir um caráter histórico.

Duas fases distintas caracterizaram as Jornadas de Junho, ambas organizadas pela Internet, por meio das redes sociais, com movimentos como o Movimento Passe Livre (MPL), em São Paulo, a Assembleia Popular Horizontal, de Belo Horizonte, o Fórum de Lutas Contra o Aumento das Passagens, do Rio de Janeiro, e o movimento Revolta do Busão. Todos unidos pela mesma agenda de combater o aumento das tarifas do transporte urbano. Na primeira fase não houve ampla cobertura da imprensa, a participação popular foi pequena e aconteceram conflitos violentos entre os manifestantes e a polícia em diversas capitais. Três mobilizações, nos dias 6, 7 e 11, novamente registraram violência, o que resultou no ferimento de alguns participantes do ato e policiais.

Na quinta-feira desta mesma semana, dia 13 de junho, os protestos maciços espalharam-se de São Paulo para outras cidades, chegando a Natal, Porto Alegre, Teresina, Maceió, Rio de Janeiro, Sorocaba, entre muitas outras. Ainda no dia 13, dez mil pessoas protestaram em Fortaleza contra o abandono das políticas de segurança pública e a explosão da criminalidade no Ceará, porém, sem confrontos.

Já em São Paulo, a repressão da Tropa de Choque da Polícia Militar deixou muitos feridos nesta data, incluindo profissionais da imprensa, e mais de duzentas pessoas foram detidas para averiguação na região da Avenida Paulista com a Rua da Consolação. Giuliana Vallone, jornalista do jornal Folha de São Paulo, não perdeu a visão do olho direito porque, segundo o médico que a atendeu, estava usando os seus óculos quando foi alvejada na face por uma bala de borracha. Sérgio Silva, repórter fotográfico profissional que também estava trabalhando cobrindo as manifestações do MPL no dia 13 de junho, não teve a mesma sorte. Ele foi atingido por uma bala de borracha e perdeu a visão do olho esquerdo.

Um estudo apresentado em 2014 pela ONG internacional de direitos humanos Article 19, que trabalha pela defesa e pela garantia do direito à liberdade de expressão, demonstrou que 837 pessoas foram feridas no Brasil em 2013, em decorrência da atuação da polícia durante as manifestações daquele ano. Fatos como estes e os relatos dos veículos de comunicação esquentaram ainda mais o clima político e houve um crescimento exponencial do número de participantes nos protestos.

A segunda fase das Jornadas de Junho foi marcada por manifestações majoritariamente pacíficas, com grande cobertura midiática e intensa participação da “classe média” brasileira (TOP 10%). No dia 17 de junho, segunda-feira, cerca de trezentos mil brasileiros saíram às ruas para protestar em doze cidades espalhadas pelo Brasil. Entretanto, a questão do transporte público começava a sair da pauta por ter sido atendida em várias cidades. Muitas capitais conseguiram a reversão dos valores das passagens, mas, em São Paulo e no Rio de Janeiro, o anúncio, que foi feito no dia 19 de junho, trazia um tom ameaçador, quando os governantes disseram que a medida afetaria outras áreas, como a saúde e a educação.

Finalmente, no dia 20 de junho de 2013, as manifestações assumiram outro tamanho e proposta. Os temas se tornaram muito menos focados na questão do transporte e começaram a surgir pautas que variavam entre as PECs 33 e 37, a “cura gay”, a qualidade do ensino e da educação, gastos com a Copa das Confederações FIFA, de 2013, e com a Copa do Mundo FIFA, de 2014, o fim da corrupção etc. Nesta data, houve um pico de mais de 1,4 milhão de pessoas nas ruas em mais de 120 cidades pelo Brasil. O que começou como um ato para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente nas maiores metrópoles, havia se transformado no movimento que reuniu o maior nível de atividade social registrado desde as Diretas Já. Vivenciar aquela atmosfera como jornalista e pesquisador foi um momento importante, ainda que a maioria da população não soubesse explicar exatamente o que estava demandando.

As Jornadas de Junho chegaram a contar com até 84% de simpatia dos brasileiros, de acordo com uma pesquisa do Ibope, feita a pedido da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e divulgada no dia 6 de agosto de 2013. O trabalho indicou também que apenas 14% dos entrevistados eram contrários às manifestações, 1% dos brasileiros eram indiferentes aos protestos e 1% não souberam opinar. Para chegar ao resultado, o instituto entrevistou 1.500 pessoas com mais de 16 anos, entre os dias 27 e 30 de julho de 2013 em todo o País. Essa energia era perceptível no ar, nas rodas de amigos, nos bares e nos locais públicos em geral naquele momento. Ainda de acordo com esta investigação, quanto mais alto era o grau de estudo, maior era o apoio dos brasileiros: 93% dos entrevistados com nível superior eram favoráveis às manifestações. Entre os que possuíam o ensino médio, foram 89%. A aprovação também aumentava conforme crescia o rendimento do entrevistado: 91% dos que tinham renda familiar acima de dez salários (R$ 6.780 na ocasião) eram favoráveis aos protestos. Outro recorte, que considerou a faixa etária, mostrou que os jovens foram os principais apoiadores da causa: 90% dos que tinham entre 16 e 24 anos incentivaram a iniciativa popular.

Segundo a pesquisa, a revolta (opinião de 37% dos entrevistados) e a sensação de abandono e descaso dos governantes (opinião de 32% dos entrevistados) foram os principais aspectos citados pela população como motivos para ir às ruas. Apesar disso, avaliando as fotos e os registros em vídeo que fiz em meio à multidão durante as Jornadas de Junho, é difícil estabelecer com precisão o que as pessoas demandavam de fato, tamanha a amplitude das exigências contidas nos dizeres lançados pelos cartazes. No dia 20 de junho de 2013, por volta de 15h30, saindo da estação Faria Lima do Metrô, em São Paulo, para cobrir as manifestações, dois garotos, com idades ente 17 e 19 anos, me chamaram a atenção. Um deles estava com um cartaz escrito “O MUNDO SE MANIFESTANDO E VOCÊ ACHA QUE É SÓ POR 00.20”. O outro estava com o rosto pintado de verde e amarelo. Após pedir para realizar o registro, tirei a foto e perguntei para eles do que se tratava aquela ideia. O garoto que segurava a placa me disse:

— O mundo está mudando. As pessoas estão mudando.

— Como? — questionei novamente. Ele sorriu e complementou:

— Eu não sei exatamente. Acho que ninguém sabe.

“A democracia representativa está em crise no mundo. Os novos meios de comunicação colocaram em cheque a situação de um representante falar em nome de um representado. Isso porque hoje você sabe em tempo real o que está se votando, as pessoas ganharam um protagonismo maior, direto e, portanto, começam implicitamente a questionar a sua não participação direta na formulação das políticas públicas”, refletiu José Eduardo Cardozo, advogado e ex-ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff, durante uma conversa realizada em abril de 2019, no Pátio da Cruz, PUC SP.  “Além disso, o processo de globalização também coloca em cheque o Estado Nacional, que é, evidentemente, o ponto de partida para a formulação do Estado de Direito, porque foi a partir do Estado Nacional que surgiu a dimensão do Estado de Direito. Esse modelo de Estado está em crise no mundo”, reforçou Cardozo nesta ocasião. Esta crise, que no Brasil foi capitaneada pela social democracia, foi fundamental para a ascensão e manutenção do bolsonarismo.

Segundo um estudo publicado em 2013 pela Economist Intelligence Unit, empresa britânica do Economist Group que fornece serviços de previsão e consultoria por meio de pesquisa e análise, Brasil, Argentina, Armênia, Índia, Espanha, Itália, Turquia, Egito e pelo menos outros vinte países tiveram grandes protestos naquele ano. Intitulado Rebels without a Cause: What the upsurge in protest movements means for global politics (Rebeldes sem Causa: o que o surto de movimentos de protesto significa para a política global), o trabalho foi elaborado com base em observações de manifestações que aconteceram nessas nações entre 2012 e 2013. O prefácio do documento avança o seguinte raciocínio: “Das revoluções árabes aos movimentos Occupy, houve um aumento nos protestos populares nos últimos dois anos (2012 e 2013). A recessão econômica, a fome, a pobreza, a repressão política e a corrupção desempenharam o seu papel no fomento da agitação social. De fato, tais fontes universais de descontentamento sempre serão poderosos condutores de mudança política. Contudo, parece que estamos testemunhando uma nova tendência no surgimento de movimentos de protesto difusos e menos focados.

Estes são orquestrados de forma pouco organizada, mobilizam-se rapidamente por meio das redes sociais e, o que é mais importante, carecem de uma agenda ou manifesto coerentes. Em vez de se envolver em debates políticos sobre alternativas ao status quo, esses movimentos de protesto de novo estilo parecem principalmente expressar a desilusão com as elites políticas e empresariais. Mesmo (ou talvez especialmente) nas democracias, há uma sensação de que os interesses de grupos específicos capturaram o sistema político. Este ensaio — Rebeldes sem causa: o que o surto de movimentos de protesto significa para a política global — explora essa tendência, analisa o que é específico e novo sobre os protestos modernos e extrai as consequências para futuros desenvolvimentos políticos globais.”

No nosso contexto, em um modelo extremamente maniqueísta (desde a redemocratização do Brasil), no qual existiam basicamente a figura do Lula (PT) e do FHC (PSDB), a imensa maioria da social democracia (e amplas parcelas mais pobres e emergentes da sociedade brasileira) acreditou que desidratar o PT politicamente seria sinônimo de assumir a Presidência. Geraldo Alckmin, ex-governador do Estado de São Paulo e candidato do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), obteve 4,76% dos votos válidos, o pior resultado da história do partido. Deu errado.

Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais e escritor, autor do livro A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI.

Redação

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