Michel Aires
Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.
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O espírito do capitalismo, por Michel Aires de Souza Dias

Na sociedade capitalista tudo se reduz ao status de mercadoria, todas as relações humanas são reduzidas a relações entre coisas

Foto Alan White /Fotos Publicas

O espírito do capitalismo

por Michel Aires de Souza Dias

Nós só podemos compreender uma época quando somos capazes de  compreender o espírito dessa época. Zeitgeist é a expressão alemã que Hegel usou para designar o espírito de uma época. Toda época tem seu Zeitgeist,  entendendo com isso os valores, preceitos, sentimentos, comportamentos, ideologias que predominam em um determinado período histórico. Para exemplificar, podemos no referir a capa de um grande jornal, onde  aparece a imagem de um viaduto cheio de mendigos, cujo título se anuncia, em letras garrafais, “Viaduto sofre com mendigos”. Nessa capa vemos uma manifestação do espírito da nossa época. O que adquire estatuto de sujeito é o viaduto, como aquele que sofre. A “coisa” se humaniza, enquanto os indivíduos se desumanizam. Esse é o espírito da reificação.

Os filósofos de Frankfurt entenderam o espírito (Zeitgeist) de nossa época como o espírito da reificação. O conceito de reificação foi entendido por Adorno e Horkheimer como a transformação das relações humanas e do espírito humano em coisa, alterando o comportamento dos homens e tornando a mercadoria o fundamento anímico de todas as relações sociais. Na sociedade capitalista, tudo se reduz ao status de mercadoria, todas as relações humanas são reduzidas a relações entre coisas. Nessa forma de sociedade, onde as relações humanas são mediadas pelas mercadorias, a razão abandona os fins verdadeiramente humanos.

O conceito de reificação foi emprestado de Lukács, em História e consciência de classe. O que Lukács (2003) apreendeu do pensamento de Marx, expressa em O Capital, foi a ideia de que a mercadoria se tornou uma categoria universal no desenvolvimento objetivo de toda sociedade. O mundo de coisas acabadas, produzidas pelo capitalismo, criou suas próprias leis, que se tornaram poderes onipresentes, intransponíveis aos homens e que passaram a determinar toda a sociedade e todo comportamento humano. Desse modo, a mercadoria surgiu para Lukács (2003) como o problema estrutural da sociedade capitalista, em todas as suas manifestações. As relações mercantis condicionam não somente a vida social, mas também a subjetividade e todos os produtos do espírito humano, como a arte, a literatura, a moral e a religião. Assim como o sistema capitalista produz e reproduz a si mesmo, econômica e incessantemente num nível mais elevado, a estrutura da reificação, no curso do desenvolvimento capitalista, penetra na consciência dos homens de maneira cada vez mais profunda, fatal e definitiva.

Como observa Horkheimer (2002), a reificação é um processo cuja origem deve ser buscada no início da sociedade organizada e no uso de instrumentos. Contudo, a transformação de todos os produtos da atividade humana em mercadoria só se concretizou com a emergência da sociedade industrial. As funções outrora preenchidas pela filosofia, pela religião e pela metafísica foram ocupadas pelos mecanismos reificantes do anônimo sistema econômico. Com isso, tudo foi reduzido à forma universal da mercadoria. Até mesmo os bens culturais, como as obras de arte, a literatura e a música foram reduzidas aos ditames do mercado e se tornaram bens de consumo. Eles perderam sua força de negação e de transformação da realidade,  hoje produzem apenas emoções passageiras, divorciadas das verdadeiras intenções e aspirações que tinham nas sociedades pré-capitalistas.

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Foi a partir do contato com a cultura norte-americana, na década de 30,  que Adorno (1995) constatou que a lógica mercantil era a principal responsável por produzir personalidades reificadas. Em seu exilio nos EUA, ele observou que muitos indivíduos aparentemente normais tinham uma mente manipuladora. Isso devia-se as próprias condições objetivas do mundo capitalista. Em uma realidade extremamente hostil, onde as pessoas devem lutar para sobreviver, muitos não possuíam nenhum escrúpulo, eram frios, calculistas e manipulavam as pessoas para atingir seus objetivos. Ao refletir sobre os vários grupos sociais, principalmente aqueles ligados às organizações capitalistas,  ele percebeu que, quando fazem parte de um coletivo, os indivíduos tornam-se iguais a coisas, deixando-se manipular e servindo aos mais diversos interesses. Mas, logo que adquirem algum poder, fazem uso das pessoas como objetos para seus fins. Esse tipo de personalidade é típico de criminosos e ladrões e tem como sua principal característica a incapacidade de estabelecer experiências humanas.

Este caráter manipulador também foi observado, por Adorno (1995), no diário de Höss e nas anotações de Eichmann. Esses líderes nazistas ao seguirem ordens cegamente, convertiam-se a si mesmos em objetos, dissolvendo se como seres autônomos. Eles possuíam uma “fúria organizativa e eram incapazes de possuir experiências humanas diretas. Eles também eram altamente realistas e desprovidos de qualquer afeto, possuindo uma necessidade incontrolável para fazer coisas, independente do que seja e indiferente ao conteúdo de suas ações. Eles faziam da ação “do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo” (Adorno, 1995, p. 129). Apesar de serem movidos pela ideia de eficiência, eles eram incapazes de refletir sobre seus atos. O que Auschwitz tem de diferente de outras atrocidades humanas é, justamente, o fato de que se buscou na eficiência técnica uma racionalidade cada vez maior para levar milhares de pessoas à morte.

Em um mundo dominado pelas mercadorias, onde as relações humanas são mediadas por relações entre coisas, o sujeito deve abandonar suas pretensões mais recônditas, para se tornar um mecanismo, que reage as exigências da realidade. A reificação não se restringe apenas a organização da realidade, mas também determina as condições objetivas da formação da própria subjetividade. Com isso, as qualidades ativas do ser humano e as relações que ele estabelece na sociedade tornam passivas, fixas e automática. O processo de reificação atinge o próprio íntimo dos indivíduos, sua vida afetiva. Como observa Goldman (1980, p. 139): “Em tal sociedade, a consciência tende, com efeito, a tornar-se um simples reflexo, a perder toda função ativa, à medida que o processo de reificação consequência inevitável de uma economia mercantil se estende e penetra no âmago de todos os setores não-econômicos do pensamento e da afetividade”.

Como explica-nos Musse (2018), os efeitos da reificação ocorre de modo mais intenso em três desdobramentos distintos: atribui a generalização da relação mercantil à divisão do trabalho, que atomiza abstrata e racionalmente o processo de produção, sem se preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores imediatos; salienta que o fetichismo da mercadoria ultrapassa as atividades econômicas, impactando nas áreas do Estado e sua burocracia, no direito e na política; ressalta ainda as repercussões da reificação na apreensão dos fenômenos, afetando tanto a consciência comum como as modalidades da vida intelectual a ciência, a arte, e a filosofia, características da sociedade burguesa.

A reificação ao atingir todas as esferas da vida social não se restringe apenas as relações humanas, mas atinge o próprio amago do pensamento, da reflexão e das ciências: “O pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 33). Assim, o pensamento é reduzido ao nível do processo industrial. Ele torna-se uma parcela da produção. No positivismo, por exemplo, o trabalho científico torna-se mera organização, classificação e computação de dados. No pragmatismo, a teoria transforma-se em um esquema ou plano de ação. No neopositivismo, as proposições são reduzidas a caracteres simbólicos e operacionais, que somente adquirem seu valor de verdade no mundo empírico. O procedimento matemático torna-se o modelo de toda forma de pensamento: “Na redução do pensamento a uma aparelhagem matemática está implícita a ratificação do mundo como sua própria medida” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 34).

Hoje, enquanto as guerras são produzidas artificialmente para vender misseis que valem mais de cem milhões de dólares, cada unidade; as redes sociais estão cheias de frases de otimismo e de autoajudada. Apesar da fome, violência, criminalidade, pobreza, corrupção e mortes, as pessoas se mantêm otimistas em relação ao seu futuro.  Na sociedade reificada, os conceitos de justiça, verdade, igualdade, felicidade e tolerância perderam as suas raízes intelectuais. Contudo, eles ainda são importantes para a economia capitalista, mas apenas como resíduos usados para manter a coesão e a integração social (HORKHEIMER, 2002). Por esta razão, é comum os meios de comunicação de massa incentivar os valores da tradição, como a humildade, o amor fraternal, a justiça, a igualdade e a humanidade. Apesar da realidade ser irracional, essas ideias devem ser acalentadas para conservar e manter unida toda a sociedade. Como afirma Adorno e Horkheimer (1978, p. 98): “O mal não deriva da racionalização do nosso mundo, mas da irracionalidade com que essa racionalização atua. Os bens da civilização que nos horrorizam são os instrumentos de destruição ou os bens criados pela superprodução, que iludem os homens com sua engrenagem publicitária, tanto mais inútil quanto mais engenhosamente refinada”.

Referências

ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Cultura e Civilização In: ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 93-104.

GOLDMANN, Lucien. A reificação das relações sociais. In: FORACCHI, Marialice;

MARTINS, José (Orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: LTC, 1980, p. 137-146.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: Centauro, 2002.

LUKÁCS, György. História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

MUSSE, Ricardo. Racionalismo e reificação em História e consciência de classe. Tempo

Social: revista de sociologia da USP, v. 30, n. 3, p.5-24, 2018.


Michel Aires de Souza Dias – Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

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Michel Aires

Graduação em filosofia pela UNESP. Mestre em filosofia pela UFSCAR. Doutor em educação pela USP. Tem experiência nas áreas de Filosofia e Educação, com ênfase na Teoria Crítica, em particular, nos pensamentos de Herbert Marcuse e Theodor Adorno. Possui artigos publicados nas áreas de educação, filosofia e ciências sociais.

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