Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]
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Ruy Castro, imortal, por Daniel Afonso da Silva

No dia 3 de março de 2023, esse cidadão brasileiro, carioca, mineiro e homem de letras tomou posse na Academia Brasileira de Letras.

Ruy Castro, imortal

por Daniel Afonso da Silva

Viragens entre anos evocam meditações, reflexões, lembranças. Temas, versões e situações do ano que passou voltam fortes à retina, à memória e à imaginação. Alguns acontecimentos mereceriam o esquecimento imediato. Mas, por infortúnio, seguem, insistentes, aporrinhando, impertinentemente. Outros, por desleixo, ficaram esmaecidos pelo turbilhão de faits divers. Mas, em respeito aos dias bons, deveriam, quem sabe, virar moldura.

É, sim, subjetivo. Como o belo. Trata-se de afeição. Tem, sim, ciência. Mas nem sempre e quase nunca a ciência é algo exato. Rápido e devagar ensina. Quem souber lembrará. Sim: existe métrica e critério nas escolhas. Mas nada universal. Tem feitos que marcam uns e não outros.

Não, nada de falar do retorno de Lula da Silva ao poder. Nada de voltar à rampa, à Janja e à Resistência.

O embaixador Rubens Ricupero escreveu o artigo mais bonito sobre esse tema. Lembrou-nos que somente Getúlio Vargas fez algo similar ao voltar ao poder em 1951 após um hiato na planície. Lira Neto, noutro artigo, também formidável, fez, em contraponto, uma comparação macabra entre os renascidos iguais ao Lula da Silva. No caso, Getúlio, De Gaulle, Churchill e Perón. Comparação não faz razão. Mas o sempre competente Lira Neto nos lembrou situações controversas.

O coração de Perón parou com ele no cargo. Churchill teve um derrame também no cargo. De Gaulle foi defenestrado do cargo e morreu de desgosto ano e pouco depois. Getúlio de matou no Catete em plenas funções.

Bom, que Lula da Silva não siga essa gente.

Mas, não. Não é o caso de falar de Lula da Silva.

O feito mais marcante de 2023 em nosso prisma teve por nome Ruy Castro.

No dia 3 de março de 2023, esse cidadão brasileiro, carioca, mineiro e homem de letras tomou posse na Academia Brasileira de Letras. Fernanda Montenegro e Gilberto Gil já haviam lavado a alma dos brasileiros ao serem aceitos nos anos anteriores. Eduardo Giannetti da Fonseca sempre foi muito mais que um economista – e, talvez, também por isso, o mais talentoso de sua geração – e que lê Trópicos Utópicos ou Autoengano nota bem isso. Ailton Krenak – mesmo que fortemente controverso – também marcou espíritos e foi algo bonito e bom. Mas a chegada – ou melhor, a presença – de Ruy Castro foi algo diferente.

É difícil, hoje, no Brasil, encontrar-se alguém de mais letras.

Silviano Santiago, talvez.

Quem lê seu Machado não consegue não voltar a reler. É, simplesmente, um primor. Aliás, seu autor, Silviano Santiago, mereceria a imortalidade. Todos sabem. Por que não acontece segue um mistério. Ele retirou a candidatura em 2022 e alegou “foro íntimo”. Como diria o alagoano de Esquinas “sabe lá”. Ele poderia voltar agora em lugar de Alberto da Costa e Silva. Seria bom. Bonito. Machadiano.

Mas o tema é Ruy Castro.

Quem lê a Folha abre o jornal procurando as suas crônicas. E isso anos a fio. O homem, Ruy Castro, é um vulcão de ideias. Competindo com ele nesse periódico paulista, talvez, somente, o Elio Gaspari – aliás, outro que mereceria a imortalidade. Poucos jornalistas praticantes das palavras possuem maiores credenciais que ele. No Estadão, jornal concorrente, similar em cultura e estilo ao Ruy Castro, entre os vivos, talvez, apenas Sérgio Augusto. Outro imortalizável. Mas, talvez, mundial demais para uma posição tão nacional. Entre os que viviam do Estadão já partiram, João Ubaldo Ribeiro – que, aliás, neste ano tem sua ausência completando dez anos.

Mas sobre Ruy Castro, não é o caso de voltar à Carmen, ao Garrincha, ao Nelson Rodrigues. Tampouco de evocar as suas impressões sobre Sinatra, Hitchcok, Doris Day, Billie Holiday. Todos perfis fatto a mano. Tipo pintura. Quem sabe escultura. Coisa de oleiro. Obras plásticas.  Fantásticas. Envoltas em precisão alucinante. Se fosse no medievo dir-se-ia coisa divina. Quem entende um pouco de pesquisa sabe que ali tem horas infinitas em arquivos humanos. Quem aprecia um pouco a língua portuguesa sabe que ordenar, organizar e hierarquizar esses dados todos em linguagem, além de tudo, bonita, não é para mortais.

Par do Ruy Castro nesse aspecto do ofício talvez somente Fernando Morais – outro imortalizável. Outro também mineiro. Outra cobra criada. Um cidadão que deixa qualquer um sem palavras desde o primeiro contato com Olga, Chatô, Corações Sujos, Os últimos combatentes da guerra fria. Quanta dedicação. Ninguém lê Chatô, por exemplo, sem querer reler.

Mário Magalhães de Marighella e Lira Neto do Padre Cícero, Getúlio, Castello, Maísa são também cobras criadas. Mais jovens, é verdade. Mas já bem fortinhas e com guizo acentuado. Viraram, jovens, gigantes. Mas não escreveram – nem eles nem Fernando Morais – A noite do meu bem.

Ruy Castro, seguramente, não vai ler estas linhas nem vai tomar conhecimento destas impressões. Tomara que não mesmo. Pois ele, certamente, não vai gostar de saber que seu melhor livro – para um singelo leitor e apreciador de praticamente tudo que ele escreveu; livro após livro lido anotando, pesquisando, rabiscando, memorizando e comparando – não é o último nem o primeiro. Mas esse que saiu em 2015 e leva por subtítulo A história e das histórias do samba-canção.

O anjo pornográfico é um livro revelador, impactante e necessário. Mais que Chega de Saudade. Nelson Rodrigues foi incontestavelmente o empregado de jornais mais eloquente de sua geração. Uma geração que conviveu com anacondas tipo Ivan Lessa, Antonio Maria, Sérgio Cabral (o pai), Ibrahim Sued, Paulo Francis e afins. Mas a vida como ela é, obra-monstra-prima, que ambientou e foi ambientada, por exemplo, por Boca de ouro e Os sete gatinhos, vale tantas missas quanto valeu e vale La comédie humaine de Balzac. Sim: cada um tem o Balzac que merece. Ruy Castro nos informa que o nosso leva o nome de Nelson Rodrigues – esse gigante que nos deixou tem mais de quarenta anos.

Estrela solitária é um livro pesado. Muito mais complicado deu Metrópole à beira-mar. Tem um estilo límpido, mas impõe atenção a todos os instantes. Os períodos todos conduzem o leitor à amargura das personagens e aos dramas dos momentos. O núcleo da trama toda, basta se ler, não é Um brasileiro chamado Garrincha, como indicado no subtítulo. O centro de tudo, a estrela mais brilhante e completamente solitária, tem por nome Elza Soares.

As edições de Carmen saíram com letra muito miúda e espaçamento justo demais. Ruy Castro tem leitores de todas as idades. Mas uma pesquisa rápida vai indicar que a maior concentração deles está acima dos quarenta anos e com algum distúrbio na visão. O editor e o diagramador, portanto, poderiam ter deixado o livro ficar com mil páginas. Não teria problema. O texto seria devorado da mesma maneira. Sucesso é sucesso. Em 2005, quando foi publicado, Ruy Castro já era um monumento. Tanto que já estava cansado de carregar Jabuti.

Bom, A noite do meu bem.

A noite do meu bem ficou em terceiro lugar no Jabuti de 2016. É até engraçado. Quem tiver a paciência de reler Ruy Castro na sequência, livro a livro, de Chega de Saudade a Os perigos do imperador [que levou o Jabuti em 2023], vai notar e anotar que A noite do meu bem é, de longe, o seu mais fidedigno autorretrato.

Carmen salvou Ruy Castro do câncer. Excelente.

Estrela solitária lhe deu a convicção de que o álcool não era, em definitivo, para ele. Ótimo também.

O anjo pornográfico foi uma ode ao mestre maior.

Mas A noite do meu bem é um passeio guiado pelo que houve de mais bonito no Rio de Janeiro – e no Brasil – nos tempos em que o Brasil – e o Rio de Janeiro – prometia ser incrivelmente bonito com ou sem bossa. Nele Ruy Castro apanha o leitor pelas mãos, adentra os lugares, bares, restaurantes, hotéis e boates, sugere o melhor manjar, indica melhor o drink, chama os principais artistas da noite à mesa e se faz de cicerone: “Oi, Dolores Duran. Tudo bem? Boa noite. Este é fulano”; “Como vai Maísa? Sarada do último porre? Este é cicrano”.

Isto é A noite do meu bem e este é Ruy Castro.

Como não se envolver e até se comover?

Como não imortalizar um cidadão que faz gentilezas dessas?

Quem assistiu ou leu – ou assistiu e também leu – o discurso de recepção de Ruy Castro na Academia Brasileira de Letras proferido pelo Antonio Carlos Secchin no dia 3 de março de 2023 viu (ou leu) algo que raramente se vê mesmo nesse santuário das letras fundado pelo Machado de Assis: viu-se um homem literal e integralmente de letras.

Quando se lê e relê o discurso do próprio Ruy Castro tudo isso ganha ainda mais evidência. Poucas vezes se notou tamanho congraçamento entre os herdeiros de Machado. “Tudo é palavra e palavra é tudo”, lembrou o ingressante. Podem até dizer que “uma imagem vale mais que mil palavras”, mas como fazia de brocardo o Millôr Fernandes, “tente dizer isso sem palavras”.

Foi o feito de 2023.

Vida longa Ruy Castro, imortal em palavras.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Daniel Afonso da Silva

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

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